Análise fez parte do lançamento do relatório Conflitos no Campo Brasil 2009, no dia 15 de abril, em São Paulo.
Declarações do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) deram suporte ao alto número de despejos e também ao aumento das prisões, segundo Antônio Canuto, secretário da coordenação da Comissão Pastoral da Terra.
O número de torturados em decorrência de conflito agrários aumentou de 6, em 2008, para 71, em 2009. Os dados são da 25ª edição do relatório Conflitos no Campo Brasil 2009, lançado quinta-feira passada (15) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). A maioria absoluta dos casos de tortura (64) se deu no Rio Grande do Sul, mais precisamente em 21 embates na área rural do estado governado por Yeda Crusius (PSDB).
Os conflitos no campo, que vinham se reduzindo nos últimos anos, voltaram a crescer no ano passado. Em números, os casos aumentaram de 1.170, em 2008, para 1.184, em 2009. Em média, foram registrados mais de três conflitos por dia no Brasil, de acordo com a CPT.
A Região Norte concentrou o maior número de ocorrências (457 conflitos) e de assassinatos no campo (12 dos 25 em todo o Brasil, ou 52% do total). Destes, 22% (8) ocorreram no Pará e 11% (4) no Mato Grosso.
Do conjunto de terras em disputa, 96% (14,5 milhões de hectares) se encontram na Amazônia Legal (Região Norte, Mato Grosso e Maranhão). Foram somados 622 conflitos (dos 1.184 no país todo) e 17 assassinatos (68% dos 25) nesta mesma imensa área. A maioria absoluta das ameaças de morte - 119 (83%) de 143 - ocorreu na Amazônia Legal.
"Nos 25 anos de publicação, a situação no campo não se alterou em termos de violência e trabalho escravo. Não temos o que comemorar. Contudo, a importância da publicação desses dados se mantém, para conservar a memória desses conflitos e, ao mesmo tempo, servir como testemunha do que ocorre nos campos brasileiros", avaliou dom Ladislau Biernaski, presidente da CPT.
O número de assassinatos passou de 28, em 2008, para 25, no ano passado. Contudo, as tentativas de assassinato saltaram de 44 para 62. As ameaças de mortes também cresceram: de 90 foram para 143.
"É o chamado ´efeito Gilmar Mendes´ [presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)], que saiu a público ano passado acusando os movimentos sociais de praticarem ações ilegais. Esta intervenção foi usada como suporte para o alto número de despejos e também para o aumento das prisões", coloca Antônio Canuto, secretário da coordenação nacional da CPT, em avaliação do contexto em que estão inseridos os conflitos e a violência no campo.
As ordens de despejo atingiram 12 mil 388 famílias. Em 2008, foram pouco mais de 9 mil. Ou seja, o aumento foi de 36,5%. O número de prisões aumentou em 22% de 2008 para 2009 - de 168 para 204.
Criminalização
A 25ª edição destaca a criminalização dos movimentos sociais no âmbito do Judiciário, do Legislativo e "inúmeras vezes pelos grandes meios de comunicação". No âmbito do Poder Legislativo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 361/2009 aparece entre os 20 projetos de lei e propostas de fiscalização que, direta ou indiretamente, criminalizam os movimentos agrários ou dificultam a realização da reforma agrária.
A PEC 361 quer estender as competências constitucionais relacionadas à política fundiária para estados e municípios. "Nós sabemos muito bem que, dentro dos estados e municípios, os governantes são contra a reforma agrária", avaliou Canuto. Outros projetos propõem transferir competências do Executivo Federal para o Congresso - como a competência para aprovação de desapropriações por interesse social e de índices de produtividade da terra. Além disso, foi aprovada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) com vistas a analisar o repasse a pequenas entidades ligadas a pequenos agricultores, assentados e acampados - batizada de CPMI do MST.
Em 2009, no âmbito do Executivo, o relatório critica a Medida Provisória (MP) 458 (convertida na Lei 11.952/2009), que ampliou as possibilidades de regularização de grilagens de terra pública rural e urbana na Amazônia Legal. "A MP 458 vem com o discurso de que irão regularizar terras de posseiros, mas quem está ganhando são os grileiros de áreas médias e grandes", aponta o secretário da coordenação nacional da CPT.
Ele destaca ainda dois episódios em que o Estado foi o agente da violência contra os trabalhadores rurais, ocorridos ano passado. O primeiro, em 26 de abril, quando 18 trabalhadores foram detidos após manifestação no canteiro de obras da Hidrelétrica de Tucuruí (PA). "Os policiais militares desfilaram com os trabalhadores algemados pela cidade inteira, como um troféu e também para intimidar", relata.
No dia 1º de maio, Dia do Trabalho, um acampamento de sem-terras, localizado na Rodovia BR-230, em Pocinhos (PB), foi atacado por um grupo de homens encapuzados, que dispararam contra as famílias e torturaram sete pessoas, jogando gasolina sobre eles e ameaçando atear fogo. "Acontece que esses trabalhadores foram detidos e acusados da violência que sofreram". Nas duas ocasiões, os trabalhadores permaneceram, pelo menos, um mês presos.
As ocupações aumentaram em 15% - de 252, em 2008, para 290, em 2009. Mas foram montados menos acampamentos, 36 (2009) em comparação com 40 (2008). Aumentou, contudo, o número de famílias que participaram dos acampamentos, foram 116 famílias por acampamento, totalizando 4.176 pessoas, em comparação com uma média de 68 famílias e 2.755 pessoas, em 2008. Houve 22 atos de resistências (greves, e outras formas de protestos relacionados aos direitos trabalhistas) em 2009. Em 2008, foram 23. O número de manifestações diminuiu de 676 para 589.
A criminalização dos movimentos de luta pela terra pelo poder público teve início, na opinião de Carlos Walter Porto-Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense (UFF), com uma célebre medida provisória do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), de 2000 (MP 2.027), que excluía por dois anos a possibilidade de vistoria com fins de reforma agrária de propriedades ocupadas por movimentos. Isso ocorreu nos anos de 2001 e 2002, período no qual houve diminuição nos índices de conflito e de violência, em relação aos anos anteriores. "O Estado foi autoritário, o que fez com que o poder privado nem precisasse agir", analisa o professor.
25 anos
O período de 2003 a 2009 é considerado o de maior conflitividade em todos os 25 anos em que o relatório é publicado, de acordo com dois professores que analisaram os dados sistematizados: Carlos Walter e Paulo Roberto Raposo Alentejano, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
A série histórica foi dividida em cinco períodos para analisar essas informações. O quinto período é recordista na média anual de conflitos e o segundo em número de famílias envolvidas nesses conflitos. Também nesse período se deu a maior média de famílias despejadas: 22 mil por ano.
O relatório aponta para uma correlação entre avanços da mobilização democrática e da violência do poder privado. "Sem dúvida, a eleição do presidente Lula fez com que os movimentos sociais se mobilizassem mais, com a esperança de acontecer a reforma agrária. Em contrapartida, o poder privado, temendo que isso de fato ocorresse, passou a agir com mais violência", analisa Carlos Walter, professor da UFF.
Entre 1985 e 1990, predominou a violência sob comando do poder privado. "Com o fim da ditadura militar, houve o que eu chamo de privatização da violência. São ações que não contaram com a mediação do Poder Judiciário", analisa Carlos Walter.
O professor da UFF sublinha que esta ofensiva teve como antecedente a redução da população rural em termos absolutos. "Há uma migração em massa para áreas urbanas, tudo isso com apoio dos empresários latifundiários que adquirem muitas terras e acabam expulsando as famílias. Não é à toa que surgem movimentos como o MST e a própria CPT", avalia.
Ele lembra ainda o fato de que a violência se intensificou justamente enquanto aconteciam discussões para a elaboração da Constituição Federal (1988) e do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária. "Isso quer dizer que, enquanto o Estado está tentando minimamente cumprir seu papel, os agentes privados agem com mais violência", complementa.
Os professores elaboraram índices de violência no campo, relacionando o número de conflitos com a população rural do estado. No ranking geral da violência no campo (soma de assassinatos, famílias expulsas, prisões e famílias despejadas), o estado do Mato Grosso aparece em primeiro lugar com 22,40 pontos, seguido do Mato Grosso do Sul com 16,68 pontos.
Roraima aparece em terceiro lugar com 14,65 e o Pará, em quarto, com 12,26. "Esse ranking deixa patente o dinamismo violento protagonizado pelo agronegócio. Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são os estados que utilizam as mais modernas tecnologias na produção deixando patente que a mais alta modernidade se constrói reproduzindo o mesmo recurso à violência de sempre", analisa o 25º relatório sucessivo da CPT.