Grupo estadual em defesa da reforma agrária e da democracia brasileira foi estabelecido durante o evento
Na quinta-feira, 25, o relatório Conflitos no Campo Brasil 2022 foi lançado em Maceió (AL). A atividade, ao reunir diferentes movimentos, organizações sociais e instituições, mostrou uma das razões de Alagoas, um dos menores estados do país, estar entre aqueles que mais tiveram manifestações no ano passado: a possibilidade de realizar ações unificadas.
O evento, ocorrido pela manhã no auditório da Livraria Paulinas, no Centro da capital, foi coordenado pelo Padre Gilvan Neves, assessor das pastorais sociais da Arquidiocese de Maceió e pároco da Paróquia Nossa Senhora da Graça, situada no bairro periférico da Levada. A abertura contou com a apresentação do Coro Jovem do Ifal Maceió, regido pelo professor André Sousa. No repertório, MPB e forró de artistas como Luiz Gonzaga e Milton Nascimento.
Em seguida, o coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Carlos Lima, apresentou uma síntese dos dados da publicação, com destaque para a denúncia do crescimento das ameaças e da prática da pistolagem no campo, e trouxe as informações específicas de Alagoas.
DADOS DE ALAGOAS – Em 2022, o estado teve um aumento de 68,75% de registros de conflitos no campo em relação a 2021. O relatório anual da CPT apontou 27 registros envolvendo 9.776 pessoas. No ano anterior, foram verificados 16 casos envolvendo 17.466 pessoas.
A maioria dos dados foram enquadrados na categoria conflitos por terra. O crescimento foi de 166,66%. Enquanto em 2021 foram registrados 9 conflitos por terra, envolvendo um total de 4065 famílias; em 2022, o número chegou a 24, envolvendo 2.282 famílias.
Segundo o levantamento, Alagoas teve 3 conflitos por água nos municípios de Delmiro Gouveia, Palmeira dos Índios e Pão de Açúcar, respectivamente no Quilombo do Povoado Cruz, Quilombo Tabacaria e comunidades da região de cima. As situações são de impedimento de acesso à água, destruição e/ou poluição.
Em 2022, o relatório não registrou ocorrências de resgates em trabalho escravo rural em Alagoas.
A respeito das manifestações de resistência e luta por direitos, sejam protestos nas ruas ou ações de solidariedade, Alagoas foi o 5º estado do Nordeste e o 6º do Brasil com mais registros: foram 50 ocorrências de manifestações envolvendo 12.400 pessoas. A média é de mais de 4 ações por mês.
O estado que mais realizou manifestações no país foi o Paraná, com 84 ocorrências envolvendo 25.462 pessoas. Na sequência, todos são nordestinos: Paraíba, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Alagoas.
RELATOS DAS VÍTIMAS – O público escutou depoimentos tristes de camponeses que vivem em três áreas de conflitos na Zona da Mata, no Sertão e no Litoral.
Maurício Alexandre, posseiro na Fazenda Mônica, em Colônia Leopoldina, sofreu ameaças e teve sua lavoura envenenada por drones. O agricultor passou a receber visitas inoportunas em sua casa quando um fazendeiro, que alega ser o proprietário da fazenda, supostamente vendeu o imóvel rural para outros dois homens influentes no município.
“No dia 09 de novembro de 2022, eles meteram o drone na minha lavoura e acabaram com tudo. Mais de 7 hectares de bananas, mas também de maracujá, manga, coco e muitas outras coisas. Naquele mês eu perdi 40 mil bananas, que era a época de produção”, disse Maurício.
A maioria das famílias da comunidade de Mônica saiu da localidade devido às frequentes intimidações e ameaças. “Das 16 famílias nascidas e criadas ali, hoje só se encontra eu e mais dois, que pela misericórdia do Senhor, lutamos”, relatou o agricultor.
“A exposição do acampamento Mandacaru é muito perigosa”, falou o agricultor Welligton Lima, conhecido como Neném, da comunidade, no município de Traipu, ao iniciar seu relato. E continuou: “Desde o dia 13 de fevereiro [de 2022], a gente se sente ameaçado do dia à noite. A gente tem umas 30 e poucas famílias lá dentro e o fazendeiro disse que vendeu uma parte da terra para o Severino da Balança, o Chapéu de Palha, que eu acho que foi até candidato a deputado. Ele vendeu uma parte e disse que comprou, mas a gente sabe que é grilagem aquilo ali”.
Neném contou que as crianças da comunidade passaram a conviver com o medo desde a visita de jagunços armados ao acampamento: “A gente tem criança lá dentro. E como a gente vive ameaçado, tem criança que não quer vir mais para o acampamento”.
Sebastião Domingos, do acampamento Domingas, em Porto de Pedras, contou que as famílias ocupam a terra há mais de 20 anos. Tinham uma vida tranquila, mas, há um ano começaram a entrar na área pessoas desconhecidas pelos moradores em caminhonetes com vidro fumê escuro. Segundo ele, um homem portando duas pistolas verbalizou: “Se vocês não saírem por bem, vão sair por mal”.
“Eles chegaram lá com armas para cima da gente. Iam com a caminhoneta e moto. E a arma que a gente temos [sic] é uma enxada, uma foice. Essas são as armas da gente. E, apesar de tudo, Deus”, disse Sebastião.
O camponês emocionou-se ao relatar o sofrimento de perder sua esposa após as ameaças de homens armados à comunidade: “Muitas vezes eu ficava até 2h da manhã vigiando com medo de fazerem alguma besteira com minha esposa. E ela chegou a falecer através disso tudo que aconteceu”.
Sebastião descreveu como foi o dia do falecimento de sua companheira. Segundo ele, no dia 18 de agosto de 2022 pela manhã, homens armados chegaram no acampamento em caminhonetes. Durante a tarde, o clima permaneceu tenso. A sua esposa teve uma forte dor de cabeça e precisou ir ao hospital, mas retornou para casa, onde veio ao óbito na madrugada.
“Eu estava com ela há 36 anos. Foi a primeira namorada minha. Tenho dois filhos com ela. Quando foi de madrugada, às 3h da manhã eu ainda cheguei a ver ela viva. Quando foi umas 4h30 eu me levantei, fiz o café e fui na cama e falei: Não vai se levantar hoje não? Deixe de brincadeira. Tá aí parecendo que já morreu! – tem esse ditado, né? Quando virei e ela estava morta, toda roxa”, lastimou.
CONJUNTURA – Após os relatos, Débora Nunes, dirigente do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), fez a análise da conjuntura da violência no campo.
Segundo Débora, os dados apresentados sistematizados pela CPT são reflexo de uma formação histórica, política, social, econômica e cultural que é estruturada no tripé do latifúndio, das monoculturas e do trabalho escravo.
“É importante nós compreendemos que esse tripé estrutura nosso país em todas suas dimensões há 523 anos. Assim como na colônia, há 523 anos, quando aconteceu a invasão portuguesa, o Brasil hoje continua sendo um país agroexportador. Esse agronegócio que diz ser pop, ser tech, ser tudo, é o mesmo agronegócio que possibilita o Brasil ter hoje 33 milhões de brasileiros e brasileiras que passam fome todos os dias”, avaliou.
CPI do MST – A dirigente destacou que, apesar da derrota de Jair Bolsonaro nas urnas, o fascismo ainda não acabou. Se por um lado, Lula foi eleito numa frente amplíssima, em suas palavras; por outro, também foi efeito “o Congresso possivelmente mais conservador da história do Brasil”. “E é esse Congresso que conseguiu, na semana passada, aprovar a criação da CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que, apesar de levar o nome do nosso movimento, é uma CPI que quer atacar e criminalizar aqueles e aquelas que lutam pela terra, que lutam pela agricultura familiar e a reforma agrária no nosso país”, disse Débora.
Débora expôs brevemente a compreensão do movimento sobre a CPI. Entre os pontos abordados estão os seguintes: A CPI do MST representa a perseguição da luta popular pelo fascismo e pelo bolsonarismo; o Bolsonarismo que foi derrotado nas urnas busca manter a sua agenda ativa na Câmara dos Deputados (ódio, armamento, antidemocracia etc.); busca intimidar o governo a não atender as pautas dos movimentos sociais e constrangê-lo na intenção de barganhar o acesso a recursos e órgãos públicos, como o caso da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); não joga luz sobre os principais problemas agrários do país, como a contaminação e a destruição dos bens comuns e a violência no campo e; os protagonistas da CPT, que são ruralistas, não têm legitimidade para questionar a luta histórica do MST.
UNIDADE DO CAMPO E CIDADE – Integrantes de instituições de ensino, sindicalistas, dirigentes de organizações sociais, religiosos, professores, educadores populares e camponeses estiveram presentes e fizeram uso da palavra. Entre as entidades representativas estavam a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag), o Sindicato dos Urbanitários, o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Alagoas (Sinteal) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT. Também estavam representados a Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e o Instituto Federal de Alagoas (Ifal), pastorais sociais, Cáritas, Fórum de Saúde Mental de Maceió, Partido Comunista do Brasil (PCB) e mandato do deputado Ronaldo Medeiros (PT).
A presidente do Sindicato dos Urbanitários, Dafne Orion, iniciou sua fala pedindo um minuto de silêncio pelas vítimas da violência no campo e ressaltou que ninguém da CPI foi capaz de fazer isso. “Tamanha a atrocidade e a imoralidade desses que estão compondo essa CPI. tamanho o grau de periculosidade desses que estão compondo essa CPI, que não tem nenhum outro objetivo que não se não aniquilar e acabar com qualquer um que lute por igualdade e justiça nesse país. Então eu quero reforçar as palavras de Débora e do companheiro Carlinhos: Não é contra o MST, é uma CPI contra todos nós que lutamos por igualdade e justiça nesse país”, falou.
Dafne também lembrou que o MST é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina e isso ameaça o interesse de poderosos. Ela destacou a importância dos movimentos do campo para a cidade: “A luta nas cidades não existiria sem vocês”.
O secretário da coordenadoria de direitos humanos (CDH) do Tribunal de Justiça (TJ), Pedro Montenegro, foi enfático: “Essa CPI é uma grave violação de direitos humanos”. Segundo ele, a comissão não tem um objetivo concreto e está investigando pessoas defensoras dos direitos humanos. “Qual foi o crime? O que está sendo investigado? Está sendo investigado a luta das pessoas. Estão sendo investigados defensores de direitos humanos, porque todo militante do movimento agrário - sabendo ou não - é um defensor de direitos humanos”, explicou Montenegro.
Ao final, foi formado o grupo em defesa da reforma agrária e da democracia brasileira com a maioria das instituições presentes. O objetivo do grupo é somar forças para fazer contraponto à criminalização dos movimentos e as lutas.
Foto: Lara Tapety