O início do ano demonstrou que a violência contra os povos originários permanece estrutural e exige do governo ações enérgicas para proteger as vidas indígenas e impedir a impunidade
Via: Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
Em janeiro de 2003, vinte anos atrás, Lula subia a rampa pela primeira vez como Presidente da República. O país abraçava esse novo momento político com muitas expectativas, porque a esperança tinha vencido o medo. Os povos indígenas aguardavam medidas urgentes que sinalizassem avanços significativos na garantia de seus direitos. Dentre outras, esperava-se a homologação imediata da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Entretanto, no dia 3 de janeiro, apenas dois dias depois da posse, o indígena Aldo Mota Macuxi desapareceu dentro dessa mesma terra indígena e seis dias depois seu corpo foi encontrado semi-enterrado; tinha sido assassinado por fazendeiros invasores, que deixaram claro que a violência pretendia permanecer. O certo é que, depois disso, o governo Lula demorou mais dois anos e meio para homologar a TI Raposa Serra do Sol, cuja demarcação ainda precisou percorrer um complexo caminho de judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF) até ser plenamente regularizada.
Vinte anos depois, em primeiro de janeiro de 2023, a esperança do povo brasileiro e, particularmente, dos povos indígenas, subiu de novo a rampa no Palácio do Planalto. Desta vez, a esperança tinha vencido ao terror do fascismo e do genocídio dos últimos quatro anos. O novo governo incorporou na primeira linha decisória de políticas públicas o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério da Igualdade Racial e resgatou a prática de ocupar com perfis políticos e competentes a direção de pastas fundamentais como educação, saúde e direitos humanos.
Decisões começam ser tomadas, as perspectivas de justiça e democracia começam amanhecer de novo e o mundo celebra o retorno do Brasil às discussões globais mais estratégicas, como meio ambiente e direitos humanos. Contudo, a violência contra os povos indígenas voltou a mostrar suas garras de intimidação e morte; o inimigo não dorme, continua matando porque se habituou à garantia da impunidade por parte do Estado.
No dia 9 de janeiro, pistoleiros a mando do patrão dispararam contra dois jovens do povo indígena Mura, no município de Autazes (AM). Os jovens estavam coletando castanhas dentro de seu território tradicional, que se encontra invadido por fazendas. A situação é de conhecimento do poder público e as denúncias de ameaças e violações acumulam-se impunemente.
No mesmo dia 9, no Maranhão, dois jovens Guajajara foram alvejados quando caminhavam por uma rodovia que corta a TI Arariboia. Ambos foram atingidos por disparos na cabeça e tiveram que passar por procedimentos cirúrgicos de emergência. O atentado repetiu as mesmas características de outros ataques que, em setembro de 2022, vitimaram três indígenas deste mesmo território.
No dia 17 de janeiro, os jovens Samuel e Nauí, do povo Pataxó, foram brutalmente assassinados com disparos de arma de fogo no extremo sul da Bahia, em um contexto de retomada dos territórios roubados por fazendeiros dentro dos limites da TI Barra Velha.
Em Rondônia, acirram-se as invasões e violências no interior da TI Karipuna, já demarcada e homologada, por parte de grileiros, madeireiros e garimpeiros. Além da grave situação do povo Karipuna – vulnerável e pouco numeroso, depois de ter sido quase dizimado durante o desastroso contato forçado na década de 1970 – o contexto neste território é ainda mais dramático devido à presença de indígenas isolados. Os Karipuna têm encontrado vestígios dos isolados cada vez mais próximos de sua aldeia, o que indica que estão, eles também, encurralados.
Na mesma semana, um líder espiritual do povo Guarani foi sequestrado e torturado no oeste do Paraná, conforme a denúncia do cacique do tekoha Y’hovy, de Guaíra, no contexto de conflitos derivados da falta de demarcação dos territórios tradicionais. O início do ano demonstrou que a escalada de violência contra os povos indígenas permanece estrutural e avança com seus traços habituais de crueldade e virulência.
O próprio presidente Lula e vários de seus ministros puderam testemunhar os impactos que o garimpo ilegal e o abandono no atendimento à saúde por parte do Estado ocasionaram ao povo Yanomami. Não é uma situação revelada agora; foi denunciada inúmeras vezes por organizações indígenas e aliados. Entre novembro de 2018 e dezembro de 2022, houve até seis decisões judiciais, nas diversas instâncias do Poder Judiciário, condenando ao Estado a tomar as medidas urgentes necessárias.
Em maio de 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou uma Medida Cautelar no mesmo sentido. O que aconteceu na TI Yanomami durante os últimos quatro anos foi um crime premeditado, uma operação sistemática de matar ou deixar morrer, por disparo de bala ou inanição, com o avanço impune do garimpo e o abandono absoluto do atendimento em saúde, o que configura formas concretas de genocídio contra um povo.
A já anunciada intervenção emergencial em saúde por parte do novo governo deverá ir acompanhada, o mais célere possível, de uma ação determinada e coordenada para a retirada dos garimpeiros daquele território.
O novo governo traz consigo não só uma inédita sensibilidade, mas também novos mecanismos e instituições para a defesa da vida e dos direitos humanos – e, portanto, maior capacidade de resposta. Por isso, é fundamental que atue desde o primeiro momento de forma enérgica e contundente, incontestável, para proteger a vida dos povos indígenas e enfrentar essa escalada de violência impedindo qualquer cenário de impunidade.
É imprescindível, ao mesmo tempo, que dê os passos necessários e de forma imediata para a retomada da política de demarcação e proteção dos territórios indígenas, com os recursos necessários para isso e com a superação firme e determinada da falaciosa tese do marco temporal. O desafio indiscutível de recuperar a convivência democrática no país passa, claramente, pela garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) afirma seu compromisso de somar e contribuir com este momento histórico que vive o país. Não cessará de denunciar permanentemente a violência sistemática contra os povos indígenas nem renunciará à esperança teimosa, aprendida no convívio junto aos povos, por uma sociedade livre de violência, por um país de justiça e por um projeto de Bem Viver para todos.
Brasília (DF), 23 de janeiro de 2023
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)