Temendo derrota de Bolsonaro, fazendeiros usam homens armados e grilagem para expulsar comunidades tradicionais em zona de expansão do agronegócio. Ausência do Estado é prato cheio para criminosos, denuncia organização.
Por Nádia Pontes, via Deutsche Welle
Nas últimas semanas, o medo de cruzar os caminhos conhecidos há mais de um século pelos moradores de comunidades tradicionais de Correntina, na Bahia, se intensificou. Relatos de tiros, cercas destruídas, ranchos e casas queimadas vêm de vários povoados desde que homens armados passaram a circular na região.
"O meu bisavô já ocupava aqui. Meu pai com seis anos saía de cavalo por aqui. Agora, alguns moradores precisam ser escoltados para irem da comunidade até o centro da cidade porque estão sendo ameaçados", afirma uma das pessoas da comunidade de fecho de pasto de Tarto ouvidas pela DW, cujo nome será omitido por questões de segurança.
A cerca de 150 quilômetros dali, a família de Maria é ameaçada de morte quase diariamente. Eles moram no quilombo Barrinha, em Bom Jesus da Lapa, e estão cercados por loteamentos que tomam pedaços de terra da comunidade. "Estão tentando tirar minha família para fazer esse empreendimento", diz Maria, que recebe um nome fictício nesta reportagem.
Por trás da violência está a corrida para a conclusão de transações potencialmente ilegais. A disputa é pelas terras usadas por dezenas de comunidades tradicionais há gerações no oeste baiano, invadidas por fazendeiros que agora tentam vender partes da área.
"O que a gente está vendo é que esses fazendeiros estão usando homens armados para aterrorizar e expulsar essas comunidades. Eles estão aproveitando o momento político, já que existe um temor de que outro governo vença. Por conta desse temor, os fazendeiros estão vendendo as fazendas que eles acreditam estarem perdidas pelo litígio", explica Samuel Britto das Chagas, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do centro-oeste da Bahia, fazendo referência à eleição presidencial.
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"A ausência do Estado virou um prato cheio para os criminosos", afirmou Ronilson Costa, da coordenação nacional da CPT, em entrevista recente à DW.
Grilagem e desmatamento
Em Correntina, a região sob ataque é usada por chamadas comunidades de fundo e fecho de pasto há pelo menos sete gerações. Nessas modalidades de uso coletivo da terra, os comunitários criam gado de forma extensiva e cuidam da preservação ambiental. Atualmente, elas estão organizadas em 66 associações.
Embora sejam consideradas prioritárias na Constituição baiana, de 1989, comunidades de fundo e fecho de pasto continuam invisíveis para o Estado. Sem os territórios devidamente reconhecidos, elas veem a grilagem avançar enquanto esperam uma definição da Coordenação de Desenvolvimento Agrário, que integra a Secretaria de Desenvolvimento Rural do estado.
Segundo apontam relatórios técnicos citados por promotores do Ministério Público que acompanham o caso, os fazendeiros que se dizem donos da terra não têm propriedade legítima. Essas zonas de pastos naturais, no meio do Cerrado, seriam terras públicas do governo estadual que ainda não receberam uma destinação, as chamadas terras devolutas.
"A gente está sofrendo. A gente não pode contar com as autoridades. A gente sabe que o Estado está contra a gente, o estado da Bahia vive violentando os nossos direitos", diz uma das pessoas que denuncia as agressões.
Questionada, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário da Bahia informou que acompanha os conflitos em Correntina. Segundo o órgão, os casos que envolvem as comunidades denominadas Capão do Modesto, Porcos e Guará encontram-se na Procuradoria Geral do Estado em processo de judicialização.
As comunidades de Cupim, Vereda da Felicidade, Boi Arriba Abaixo estariam sobrepostas a propriedades certificadas no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), afirma a coordenação.
Isso não significa, no entanto, que os títulos sejam legítimos, mas que há pessoas alegando serem proprietárias, explicam advogados que acompanham a questão ouvidos pela DW. Além disso, o SIGEF entrou em vigor apenas em 2013, enquanto as comunidades tradicionais estão no território há mais de um século.
"As comunidades de Capão Grosso, Bonito, Fecho do Tibúrcio e Fecho do Alegre estão com processos conclusos na CDA/SDR, entretanto, se recusam à formalizar a regularização fundiária por meio do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso", diz a nota.
A CPT, que acompanha há anos as comunidades mencionadas, diz desconhecer que o processo tenha sido concluído.
A dificuldade de resistir à pressão
Os antepassados de Maria chegaram ao quilombo Barrinha há pelo menos 200 anos. Quando perceberam que parte do terreno estava sendo cercado por pessoas que não faziam parte da comunidade, os moradores buscaram um reconhecimento oficial.
Em 2006, a comunidade, que conta atualmente com 86 famílias, foi certificada como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, mas a titulação ainda não foi concluída.
"Os fazendeiros descobriram que a gente estava buscando a titulação oficial e começaram a cercar a área, a expulsar as pessoas. Muitas não resistiram à pressão e saíram", lamenta Maria. "Estão grilando as nossas terras, e tem segurança fazendo escolta para eles", denuncia Maria, citando ainda o crescente desmatamento na área.
Às margens do rio São Francisco, Barrinha recebe visitantes que fazem turismo religioso em Bom Jesus da Lapa. "A comunidade é aprazível, tem sido foco da especulação imobiliária por causa da beleza. Pretensos fazendeiros que tinham terras lá resolveram lotear suas fazendas e fazer lotes de chácaras, o que acirrou muito o conflito", detalha Samuel Britto das Chagas, da CPT.
Assédio e coronelismo
No oeste da Bahia, onde comunidades tradicionais plantam e criam gado coletivamente no Cerrado desde o século 19, a expansão da fronteira agrícola industrial tem mudado rapidamente a paisagem. Esta região está dentro da Matopiba, zona formada principalmente por Cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, para onde grandes plantios, como o de soja, avançam.
Segundo a CPT, o assédio de empresários que cobiçam o território contra os povos e comunidades tradicionais do médio São Francisco, embora ocorra desde a década de 1960, vem se agravando.
"Quando esses empresários não agem por conta própria, evocando sua legítima defesa, trazem de fora milícias armadas, que, pelo modo de agir, devem contar com algum agente público, da ativa ou da reserva, que se presta a um serviço que remonta aos tempos do coronelismo, no Império, quando as 'forças públicas' foram criadas para proteger os latifundiários, ou seja, na prática não eram públicas", alega a entidade.
Vidas em jogo
Para a pesquisadora Ludivine Eloy, do Centro Nacional de Pesquisas Científicas na França e professora colaboradora do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (Unb), há risco de toda uma cultura tradicional desaparecer e gerar mais crises. Ao longo dos séculos, os comunitários criaram sistemas de cultivo engenhosos, com base em conhecimento tradicional, que resistem ao longo período de seca do Cerrado.
"A grilagem de terra e o bombeamento de água quase sem limites pelas fazendas do entorno colocam em jogo todo um sistema agrícola tradicional que alimenta milhares de pessoas", comenta Eloy o resultado de estudos que coordenou na região.
Cercadas por "mares de monocultura", como classifica Eloy, zonas verdes onde vivem essas comunidades se destacam em imagens de satélites como verdadeiras "ilhas de agrobiodiversidade". "São como florestas alimentares", explica.
Além do medo de serem expulsos à força, os comunitários em Correntina sofrem com a morte dos animais de criação em consequência do conflito.
"Agora é o momento de levar o gado para os gerais, para o fecho de pasto, porque o capim na parte baixa do território acabou. E a gente se encontra impossibilitado de fazer isso porque os pistoleiros ameaçam atirar na gente. O nosso gado está morrendo de fome porque não tem o que comer", conta, aos prantos, uma das pessoas ouvidas pela reportagem.
Além da CPT, Ministério Público e Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (Aatr) denunciam os abusos sofridos pelas comunidades. "O Estado finge que não sabe o que está acontecendo aqui. Eu temo pelo derramamento de sangue nestas áreas", comenta Maria.