Comunidades ilhadas, estradas antes utilizadas pelos moradores transformadas em hidrovias – apenas a navegação de canoas é possível –, pastos alagados e infestados de canudos, gado abarrotado em pequenas áreas altas, inviabilizando a sobrevivência de parte das famílias de um lado. Do outro, lotes destinados aos irrigantes, cortados pelo canal de 42 quilômetros de extensão que conduzem a água potável disponível à parte alta do território. Este é o atual cenário em uma área de 124 mil hectares, cujas terras estão em disputa há pelo menos cinco décadas. As cheias do rio São Francisco agravam a situação dos povos tradicionais, ameaçados pelo faraônico Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.
Texto e Fotos: Thomas Bauer – CPT Bahia/H3000*
Edição: Paulo Oliveira/Meus Sertões
Via CPT Regional Bahia
O Baixio é o primeiro de uma série de obras previstas pelo Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), em parceria com a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf). Ele abrange um território na margem direita do rio, entre os municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia, entre os rios São Francisco e seus afluentes Verde e Jacaré, a 580 quilômetros de Salvador, capital do estado. O projeto visa a irrigação da área antes utilizadas por moradores de 18 comunidades tradicionais de Fundo de Pasto para criação de animais de pequeno e grande porte e que também servem de refúgio durante as cheias do Velho Chico.
O conflito fundiário remete aos anos 1970, quando cerca de 800 famílias que utilizavam a terra há 200 anos e retirantes que foram para a região após terem sido desalojados pela construção da barragem de Sobradinho sofreram violento processo de grilagem à mando de Ailton Moura, à época cunhado de Antônio Carlos Magalhães, que governou a Bahia três vezes – duas delas nomeado pelo regime responsável pelo golpe militar de 1964.
São inúmeros os relatos do sofrimento das comunidades nas mãos dos pistoleiros de Ailton: “Eles atiravam nos baldes das pessoas. Derramava as coisas que tinha dentro” – lembra dona Alenita Viana, 69, que hoje mora na comunidade Volta da Caatinga, no município de Itaguaçu da Bahia. Ainda criança, ela viu o pai perder terras na beira do rio, apesar de ter documentos comprovando a propriedade.
“Ailton perseguiu muito meu pai e acabou tomando as terras da gente” – relata.
Por conta das investidas dos grileiros, comunidades como a Serra de Paulo, Major, Serrotinho, em Xique-Xique, e Barreiro Velho, Fazenda Nova Pedrinhas, Ziota Sovaco, Poço Fundo Velho, Fazenda Tucum, em Itaguaçu da Bahia deixaram de existir.
FUNDO E FECHO DE PASTO
A partir dos anos 1980 a antiga Companhia de Desenvolvimento Rio Verde (Codeverde) passou a cobrar renda dos criadores de animais em parte das áreas griladas. De cada quatro caprinos, e de cada oito cabeça de gado, um caprino e uma cabeça de gado era entregue por obrigação ao gerente responsável da Companhia. Quem resistia a cobrança corria o risco de ter animais mortos e perder a fonte de renda.
Mesmo diante de todos os conflitos, os moradores das 18 comunidades, hoje certificadas e reconhecidas como Fundo e Fecho de Pasto pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi – BA), nunca deixaram de lutar pelo que consideram seu território. O reconhecimento ocorreu com base na Lei estadual n° 12.910/13, de 11 de outubro de 2013.
“Este negócio é muito incrível, né? Eles (Codevasf) dizem que aqui não existe morador nenhum. Aqui a gente nasceu e se criou desde os tempos dos nossos avôs. Aí eles dizem falam que não existe ninguém, mas eles têm que dizer a verdade” – diz dona Geni Ribeiro, 69, cujos antepassados, pais, tios e vizinhos estão sepultados no cemitério de Muquém, em Itaguaçu da Bahia.
Dona Geni com sua neta no cemitério local da comunidade de Muquém
Praticamente todos as famílias sobrevivem da pesca, do cultivo em pequenas áreas de sequeiro e principalmente do criatório. Bartolomeu Silva, 54 anos, morador da comunidade Boa Vista, em Xique-Xique, teve o pedaço de terra que herdou do pai cortado pelo canal. Ele ainda se lembra bem de um tempo recente:
“Nosso gado pastava livremente no campo. Tanto o meu como o de outros vizinhos. Aí chegou a Codevasf e invadiu nossos terrenos” – recorda.
A área alta e desmatada ao longo do canal é a única parte seca na época das cheias do rio São Francisco. Lá, os irrigantes começaram instalar imensos pivôs centrais e proibiram a pastagem de animais. De acordo com os moradores, as ameaças dos funcionários da companhia vinculada ao MDR são constantes e atingem principalmente os criadores das comunidades de Xique-Xique mais próximas do canal – Boa Vista, Roçado, Porto Franco, Curral do Meio, Carneiro, Volta da Caatinga, Muritiba, Sítio e Vista Nova.
Lote desmatado de irrigante ao lado do canal do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê com tubulações enterrados e pivô instalado
Preocupado com esta situação Bartolomeu Silva conta que em abril do ano passado ouviu um comunicado da Associação de Produtores Rurais e Irrigantes do Baixio de Irecê transmitida nos rádios da região que se o gado fosse para o projeto Baixio de Irecê, os animais ficariam retidos:
“Eles falaram que se o dono chegasse e dissesse que não ia pagar uma taxa, podia voltar pra casa porque o gado ficaria lá pra eles. Só que nós reagimos e dissemos que não pegaríamos os animais se não nos dessem uma área para que eles pastassem. Aí eles desistiram da cobrança e o gado continuou pastando na área” – explica.
Parte deste problema é causado porque a Codevasf se nega a cercar a área disputada pelo projeto. A empresa diz que os criadores são obrigados a arcar com este custo. Já os criadores humildes que sempre criaram seus animais pastando livremente não têm recursos para levantar quilômetros de cercas para impedir a entrada de animais na área do projeto.
A previsão é que o canal se estenda por mais 58 quilômetros, avançando na parte ainda preservada da caatinga e atingindo mais nove comunidades. Cada vez mais encurralados, os integrantes das comunidades tradicionais acreditam que se nada for feito o modo de vida dessa população está ameaçado.
“Desmataram tudo e não querem mais animais lá. Se continuar assim vai abalar todos nós. Se vier de lá pra cá vai acabar e afundar o resto” – teme seu Gilmar Bonfim, 43 anos, criador da comunidade São José.
Gilmar no aprisco com parte do seu criatório
Os criatórios representam uma importante fonte de renda. Juntos com as comunidades do município Xique-Xique abastecem semanalmente grande parte dos mercados e consumidores com carne das cidades vizinhas como Irecê, Itaguaçu da Bahia, Jussara, Xique-Xique entre outras.
Segundo relatos de moradores, um burburinho sobre o projeto começou nos anos 1960. Na década seguinte, recorda dona Geni Ribeiro, começaram a abrir picadas com facões e foices. O maquinário veio depois para abrir estradas e tomar as terras dos moradores. A viabilidade técnica do projeto foi assinada em 1993 e seis anos depois as obras iniciaram com a instalação do primeiro canteiro de obra na comunidade conhecida como Bode, em Xique-Xique. Entretanto, logo o projeto enfrentou uma crise financeira, as obras foram paradas e todos os funcionários foram demitidos.
Para dar seguimento aos planos, devido à pressão política de irrigantes, empresas e autoridades da região incluíram as obras no Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal, em 2003, primeiro ano do primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT). Com o investimento deste programa, as obras foram retomadas, possibilitando nesta segunda fase, finalizada em 2010, a construção de 42 quilômetros do canal principal, estações de bombeamento e escoadouros secundários. O canal principal possui de sete a 30 metros de largura e 5,75 metros de profundidade. A previsão é de irrigar área total de 59.630 hectares. Destes, 20 mil hectares de caatinga preservada já foram derrubados.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) o perímetro irrigado do Baixio de Irecê foi qualificado como projeto prioritário no âmbito do Programa de Parcerias de Investimento (PPI). Os primeiros lotes da etapa 1 e 2 foram entregues à iniciativa privada. Agora falta a concessão das etapas 3 a 9, cujo propósito seria promover o desenvolvimento da região.
INQUÉRITO E AÇÃO CIVIL
Indignados com o avanço do projeto sobre seu território, as comunidades tradicionais, através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaguaçu da Bahia, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xique-Xique, da Paróquia Senhor do Bonfim e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentaram no dia 6 de novembro de 2013 uma representação ao Ministério Público Federal requerendo providências e a instauração de um Inquérito Civil para assegurar o direito à terra, garantidos conforme a Convenção 169 da OIT e o decreto n° 6.040/2007.
Consta na representação que os imóveis adquiridos pela Codevasf para instalação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê estão situados em áreas que tradicionalmente foram ocupadas pelas comunidades rurais, notadamente comunidades de fundo e fecho de pasto, pescadores artesanais e agricultores familiares. E acrescenta que as comunidades tradicionais que tiveram suas terras usurpadas, inicialmente pelo processo de grilagem de terras, e contemporaneamente com a instalação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê não tiveram, até o momento, qualquer desses direitos respeitados.
Seu Gilmar Bonfim lembra que quando era menino morava junto com seu pai na comunidade Barreiro Velho e teve que abandonar o local:
“A gente teve que sair às pressas porque tinha um grupo de jagunços que chegava e dizia, ou você sai, ou você morre. Então nós não ia (sic) ficar pra morrer. Era muito perigoso” – conta.
Acatado a representação das entidades sindicais e religiosas, o promotor Márcio Albuquerque de Castro, procurador do Ministério Público Federal (MPF), instaurou o inquérito civil 1.14.0012.000011/2014-13, em 2016. Nele, menciona que a implementação do Projeto Baixio de Irecê causou significativos impactos nocivos ao modo de vida das comunidades tradicionais. Alertou inclusive que a disponibilização dos lotes irrigados e das estruturas correlatas engloba praticamente todas as áreas de fundo de pasto utilizados por estas comunidades tradicionais e que a continuidade da implantação implicará, inevitavelmente, no desaparecimento gradual e completo delas.
Mesmo diante de protestos dos moradores e tentativas de mediação, ao longo de seis anos, não houve avanços na resolução dos problemas. O MPF através dos procuradores Ana Carolina Castro Tinelli e Daniel Fontenele Sampaio Cunha entraram com a ação civil pública 1003704-93.2020.4.01.3312, em 2020, citando a Codevasf, o governo estadual e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema).
Na ação, pediram a “imediata suspensão de qualquer intervenção (…) na área e no entorno do Projeto Baixio de Irecê até o julgamento definitivo do feito”, “a delimitação clara, por meio de georreferenciamento e estudos topográficos, que apontem precisamente as áreas ocupadas pelas comunidades tradicionais, bem como a discriminação de terras devolutas” e a suspensão das licenças ambientais concedidas pelo Inema. A ação tramita no juízo federal da subseção judiciária de Irecê.
Importante mencionar que não faltaram tentativas das comunidades a requerer da Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) o processo de georreferenciamento das áreas. O máximo que conseguiram foi ouvir uma proposta de trocarem suas terras por uma área de aproximadamente seis mil hectares situada em um alagadiço.
NOVO EDITAL
As ações do Ministério Público Federal não conseguiram frear a implementação do projeto Baixio de Irecê. Em edital, o MDR e a Codevasf anunciaram o leilão para a concessão dos lotes 3 e 9 do Projeto do Baixio de Irecê para o dia 15 de março de 2022, na sede da B3, em São Paulo¹. A B3 é como passou a ser chamada a Bolsa de Valores do Brasil, uma das 10 maiores do mundo, a partir da fusão da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), Bolsa de Mercadorias e Futuros de São Paulo (BM&F) e Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos (Cetip). Ela fica a 2.109 quilômetros de Irecê, bem longe das comunidades tradicionais.
As novas concessões de uso de áreas públicas previstas das etapas 3 a 9 preveem contratos de 35 anos para quem oferecer o maior lance. Isso em contraposição à recomendação do MPF de que a Codevasf deveria “abster-se em promover ou permitir qualquer forma de intervenção, inclusive por meio de contratos de concessão real de uso nas áreas ocupadas sem prévia autorização das comunidades tradicionais”.
A implantação das etapas 3 a 9 estão incluindo a ampliação do projeto em novas áreas aonde a caatinga não foi desmatada. Nesta área que serve de pasto para os animais, as comunidades também se beneficiam com ervas medicinais. Sendo assim, os moradores que não foram consultados previamente sobre o projeto, serão prejudicados mais uma vez.
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(1) O Ministério do Desenvolvimento Regional adiou o leilão para o dia 1° de junho com a justificativa que os grandes produtores e empresas pediram um tempo maior para analisar os documentos do projeto e formular suas propostas.
Reportagem atualizada no dia 11 de março, às 8h50min.
Por Thomas Bauer – CPT Bahia/H3000*
(*) Edição: Paulo Oliveira/Meus Sertões
Esta reportagem foi produzida como fruto da parceria Meus Sertões/CPT