COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Na Reserva da Costa do Descobrimento, eucalipto e do café disputam espaço pela redução de pastagens e concorrem com a necessária expansão da floresta

Por Fernanda Cozumenco | O Eco 

O Espírito Santo é um dos únicos três estados cobertos exclusivamente pelos domínios da Mata Atlântica. Como em outros locais, as florestas capixabas perderam espaço para o avanço das cidades, das monoculturas e da exploração predatória da natureza. Ainda assim, o estado abriga 46% das florestas da Reserva de Mata Atlântica da Costa do Descobrimento, título concedido pela Unesco em 1999 à região compreendida entre a vila de Regência, na foz do Rio Doce, até o município de Una, no sul da Bahia. O Sítio do Patrimônio Mundial Natural representa uma importante faixa contínua de floresta remanescente.

Destaca-se, nessa paisagem, um bloco florestal considerado o maior fragmento da Mata Atlântica de Tabuleiro do país, formado pela Reserva Biológica (Rebio) de Sooretama, administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com 27,8 mil hectares; a Reserva Natural da Vale, com 22,7 mil hectares; além de duas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), que somam 2,6 mil hectares. Ao redor deste bloco, vastas áreas de monoculturas de pastagem, café e eucalipto, salpicadas de pequenos fragmentos florestais. Alguns remanescentes são protegidos por unidades de conservação, que somam menos de uma dúzia no norte capixaba, cada uma com dois mil hectares em média. 

Os quatro principais usos do solo no Espírito Santo mantêm uma mesma dinâmica há um bom tempo. A mata nativa se estabilizou em torno de 20% há mais de trinta anos – pelo menos desde 1985 quando a SOS Mata Atlântica iniciou o mapeamento nacional – atendendo ao percentual mínimo, ainda que insuficiente, segundo inúmeros especialistas,  estabelecido no novo Código Florestal para o bioma. 

As pastagens decrescem, ano após ano, há duas décadas, segundo levantamento do MapBiomas, mas continuam sendo o uso mais comum. Enquanto isso, café e eucalipto avançam. 

A primeira edição do Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo, lançada em 2018, traz registros da evolução das paisagens nos 78 municípios capixabas entre 2007/2008 e 2014/2015. O levantamento aponta que o eucalipto foi o uso do solo que mais cresceu na média estadual nesse período, subiu de 5,8% para 6,8%, num aumento efetivo de 45,3 mil hectares. O café vem em segundo lugar, saltou de 8,6% para 9,4%. O pasto foi a cultura que mais retrocedeu, caiu 2,5% (116,2 mil hectares).  

Nesse meio-tempo houve a criação do Programa Reflorestar, a política pública carro-chefe em recuperação florestal do governo capixaba, lançada em 2011 pelo então governador Renato Casagrande (PSB). Durante os primeiros dez anos da iniciativa, dez mil hectares de floresta nativa foram reconhecidos com o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). E outros dez mil hectares foram plantados com espécies nativas.  Os plantios são majoritariamente em forma de Sistemas Agroflorestais (SAFs), que correspondem a 60% do que foi plantado até o último edital, publicado antes da pandemia. 

Nessa primeira década do programa, foram investidos quase R$ 67 milhões em mais de 3,8 mil projetos, segundo o Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes) – braço financeiro do Reflorestar e executor do planejamento da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama). A região do Caparaó atraiu 35% dos recursos. As regiões Noroeste e Nordeste do estado, apenas 10% e 9,5%, respectivamente. 

Floresta encurralada

Coloque na equação a área de dez mil hectares reflorestada nessa década,  os 45,3 mil hectares de novos plantios de eucaliptos, e mais aproximadamente 36 mil de café nos últimos oito anos, e o resultado deixará claro o quanto a biodiversidade continua perdendo espaço para as monoculturas. Somente neste período de menos de uma década monitorado pelo Atlas, a expansão do deserto verde de eucaliptos e cafezais foi oito vezes maior que a de vegetação nativa.

Adicione no cálculo o agravante de que a manutenção desse percentual de mata classificada como nativa tem se dado, em toda a Mata Atlântica, a partir da substituição de florestas maduras por matas secundárias, mais pobres em biodiversidade e em carbono estocado.

“O estudo também comprova o desmatamento contínuo das florestas nativas mais antigas, com maior biodiversidade e carbono estocado, principalmente para ampliação da agricultura e plantio de florestas exóticas. Apesar dessa dinâmica de perda e ganho de florestas nativas ter mantido a quantidade de floresta praticamente estável nos últimos 20 anos, esse rejuvenescimento das florestas pode ser extremamente danoso para a conservação do bioma”, declarou em fevereiro passado o coordenador do MapBiomas Marcos Rosa, ao divulgar o artigo publicado na revista Science Advances por um grupo de cientistas brasileiros, sob sua liderança.

Em 2020, o governo do Estado realizou um novo levantamento para atualizar o Atlas, mas as imagens ainda não foram classificadas. Uma análise estatística, por amostragem, foi feita apenas da mata nativa. A tendência, conta o gerente do Reflorestar, o engenheiro florestal Marcos Sossai, é a mesma: mata em estágio avançado de recuperação com crescimento muito pequeno, praticamente estável, e mata em estágio inicial de recuperação também estável, mas com pequena queda. Essa pequena redução, explica Sossai, não decorre de corte, mas sim do amadurecimento dessas matas em recuperação, fazendo com elas sejam classificadas como mata nativa.
 
Os demais usos do solo, ao menos os principais – como pasto, café e eucalipto – também devem manter, no período de 2015 a 2020, a mesma dinâmica verificada no primeiro Atlas. “Acredito que dá pra cravar as mesmas tendências”, vislumbra o gerente.

 
“A ocupação dessa região foi muito mal planejada. Os principais fomentadores foram a exploração de madeira e o plantio de eucalipto”, avalia Aureo Banhos, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) doutor em Genética, Conservação e Biologia Evolutiva e coordenador do Projeto Harpia no Corredor Central da Mata Atlântica – que envolve todo o Espírito Santo e o sul da Bahia.

Essa história está documentada no livro “Conservação da Mata Atlântica no Estado do Espírito Santo – Cobertura Florestal e Unidades de Conservação”, publicado pela ONG Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica (Ipema) em 2005.

 
“A Lei Federal nº 5.106, publicada em 1966, estabelece incentivo fiscal, com abatimento de Imposto de Renda para o reflorestamento [plantio de eucaliptos]. Entre 1967 e 1986 surgem então os grandes projetos de reflorestamento homogêneo para atendimento da demanda industrial”, destaca a publicação, ao abordar o crescimento da silvicultura no estado.

O texto narra como o eucalipto, principal matéria-prima para a produção de celulose, passou a ocupar significativas parcelas de terra na região das bacias dos rios São Mateus, Barra Seca e Itaúnas, “onde inclusive áreas de floresta nativa foram substituídas por grandes extensões de plantações homogêneas”. 

“O ideal seria ter um esforço forte de conectividade dessas reservas, mas que essa conexão, através dos esforços de reflorestamento e da criação de novas unidades de conservação e restauração ecológica, não fosse substitutivo para perda de biodiversidade pela ação antrópica e desmatamento das florestas maduras e áreas que já são protegidas, porque essas áreas vão ser justamente a fonte da diversidade que vai povoar essas outras áreas que se pretende restaurar e conectar às reservas”, enfatiza Aureo.  

Nesse sentido, a prioridade para aplicação dos recursos deveria dar mais ênfase à estratégia de conectividade entre os grandes fragmentos, pondera o coordenador. Ele enfatiza que o restabelecimento das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e áreas de Reserva Legal são estratégias assertivas para conduzir a conectividade entre unidades de conservação e outros remanescentes mais antigos. 

Fragmento de Mata Atlântica no interior da comunidade quilombola Angelim II. Foto: Paulo Silva

Conectar pessoas e florestas

O argumento do professor consiste basicamente no conceito básico de corredor ecológico, cujo projeto oficial de governo, homônimo, foi lançado nacionalmente em 2002. Na avaliação do biólogo e mestre em Ecologia Fabiano Novelli, último coordenador do projeto no território capixaba, a iniciativa honrou o slogan “conectar pessoas e florestas”, ao ser encerrada em 2014. “Instrumentalizou essa conexão”, observa Fabiano, citando leis, estudos e planos, como o decreto que regulamenta a criação de RPPNs, o plano de ecoturismo e a instrução normativa que regulariza a coleta dos frutos da palmeira jussara. 

No último triênio de atuação do Corredores Ecológicos, foi lançado ainda o Programa Reflorestar. Desde o início, a prioridade foi a produção de água, o que se intensificou após a profunda seca que o estado sofreu entre 2014 e 2017. 

O edital 2021 do Reflorestar, aberto até abril/2022, investirá mais R$ 57 milhões, com expectativa de apoiar a preservação ou recuperação de mais 3,6 mil hectares. As áreas prioritárias englobam novamente, além do Caparaó, as bacias dos rios Jucu e Santa Maria da Vitória, que abastecem a Grande Vitória. A elas, foram acrescidas novas áreas em 106 microbacias de abastecimento, cruciais no fornecimento de água aos centros urbanos em todas as regiões do estado.

Esses pontos estratégicos foram identificados por meio de um relatório produzido por ONGs internacionais, ambientais e corporativas, sob liderança do WRI Brasil chamado Infraestrutura Natural para Água na região metropolitana da Grande Vitória

“A restauração de apenas 2,5 mil hectares de pastagens degradadas ao longo das duas principais bacias que abastecem a população da Região Metropolitana da Grande Vitória pode gerar uma economia de R$ 92,9 milhões nos custos de tratamento de água em 20 anos. Para tanto, seriam necessários investimentos de R$ 34,1 milhões, deixando um saldo positivo de R$ 58,8 milhões”, resume o release de divulgação do relatório. 

Uma estrada no meio da floresta

Na contramão da discussão sobre quais as melhores artérias a serem restauradas, o Espírito Santo é palco de uma disputa polarizada, política e ideologicamente, que evidencia os desafios de superar a fragmentação na Mata Atlântica. De um lado, pleiteiam a duplicação do trecho da BR-101 que passa por dentro da Rebio Sooretama e sua zona de amortecimento. Do outro, defendem a retirada da rodovia do interior da reserva, que passaria a ter um traçado alternativo.

O licenciamento ambiental para a duplicação da rodovia teve início em 2013, com o lançamento do Termo de Referência pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). No ano seguinte, um workshop internacional foi organizado por um grupo de cientistas capixabas, com objetivo de reunir informações e recomendações para guiar o licenciamento. Entre as diretrizes apontadas, estava o desvio da estrada no trecho de 25 quilômetros que corta a Rebio Sooretama e sua zona de amortecimento.

Arte: Julia Lima

O doutor Aureo Banhos compõe uma frente de cientistas e pesquisadores que defendem um contorno a oeste da Rebio Sooretama para o trecho da BR-101 que atravessa a reserva desde a década de 1970, quando ela foi instalada à revelia da legislação ambiental federal existente. 

“Toda a malha rodoviária no entorno oeste da BR-101 pode ser ascendida a partir desse contorno. E já existem possibilidades, com estradas estaduais e vicinais instaladas e planejadas”, argumenta o acadêmico, que cita inclusive a ligação do Espírito Santo com a BR-106, em Minas Gerais, já em estudo pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER-ES). “Mas o empreendedor [consórcio ECO 101, vencedor do leilão de licitação da BR-101, em 2013] não viu isso como potencialidade. Por quê? Pelos interesses de ocupação daquele território: portuário, imobiliário…”, contrapõe. 

O pesquisador ressalta que quem influenciou a decisão nesse sentido só enxergou os portos e seus empreendimentos associados, sem considerar os complicadores socioambientais. “O terreno [na região a leste de Sooretama] é mais baixo, mais úmido, ambientalmente sensível”, caracteriza. 

A proposta do contorno a oeste existe desde 2014, elaborada após o workshop internacional sobre os impactos da rodovia no complexo florestal, que reuniu entes públicos como UFES, ICMBio e ONGs como o Instituto Últimos Refúgios. No Ministério Público Federal (MPF), essa e outras propostas do grupo de cientistas e ambientalistas foram levadas à empresa, à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e ao Ibama. 

Desde então, foram publicados novos estudos sobre os danos que a estrada provoca sobre a biodiversidade da floresta, envolvendo morcegos – com o maior índice mundial de atropelamento de morcegos – e espécies-bandeira como harpia (Harpia harpyja) e onça-pintada (Panthera onca). 

Contorno a oeste

“Concordamos que o remanejamento da rodovia BR-101 de Sooretama é a melhor medida para garantir a conservação da paisagem e da biodiversidade local em longo prazo”, afirmam Áureo e outros pesquisadores, em artigo sobre o atropelamento de antas na região, publicado no final de novembro de 2021.

O artigo enfoca o grave impacto do atropelamento de seis antas no período entre 2014 e 2019 sobre a população da espécie, e ressalta a importância da manutenção dos túneis utilizados por diversos animais para atravessar a rodovia, mas também a limitação dessa única medida de mitigação.

“A manutenção dos túneis utilizados pela fauna é necessária para mitigar o impacto da estrada, mas não é uma solução definitiva para o atropelamento da fauna. Medidas de mitigação de emergência [como radares de redução de velocidade, que existiram até 2017, e educação ambiental] devem ser implementadas para evitar maiores perdas devido ao impacto crônico da rodovia sobre a biodiversidade ao longo dos trechos que cruzam as áreas protegidas da região de Sooretama. Além disso, sugerimos a construção de um desvio para a retirada da rodovia BR-101 de dentro de Sooretama”.

Atropelamento de fauna é um dos problemas mais comuns na BR 101. Foto: Paulo Silva

A proposta do contorno a oeste já foi encampada publicamente por dois deputados, o estadual Gandini (Cidadania) e o federal Helder Salomão (PT). No último round, porém, em agosto do ano passado, a ANTT, o Ibama e o ministro de Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, decidiram retirar do contrato de concessão os 25 km que cortam Sooretama, sem qualquer menção à construção de um contorno. “Nós vamos duplicar da Serra até Sooretama e, após Sooretama, até o município de Mucuri, na Bahia”, anunciou, na ocasião, o deputado Ted Conti (PSB), presidente da Comissão Externa de Fiscalização do Contrato da BR-101/ES na Câmara dos Deputados. 

“A concessionária está contabilizando apenas o gasto com a obra, com asfalto. Mas quem vai pagar o ônus ambiental e climático?”, criticou, na ocasião, o professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e doutor em Ecologia Luiz Fernando Magnago, em reportagem publicada no jornal local Século Diário

“Os serviços ecossistêmicos que a Reserva oferece beneficiam toda a população, mas o cálculo [do valor monetário desses serviços] sequer foi feito, o Ibama não pediu isso no licenciamento”, apontou. 

“Amor à Mãe Terra”

O que a ciência se esmera para comprovar e defender em experimentos e artigos, mestres populares executam, dentro das áreas que lhes é permitido gerir, norteados pela intuição e o conhecimento tradicional acumulado geração após geração na convivência com a natureza. 

Francisco Orige Rossini é um desses mestres. Há quase 40 anos, S. Chico da Mata, como é conhecido, preserva, juntamente com a esposa, Edinalva Lodi Pereira Rossini, e os filhos, dois alqueires (cerca de 4,84 hectares) de Mata Atlântica dentro de sua propriedade de 21 hectares, na localidade de Jurama, município de Vila Valério. A floresta da família está a 300 metros da Rebio Sooretama, conectando-se fisicamente com ela, sendo um dos poucos elos diretos entre a grande reserva e as propriedades particulares de seu entorno direto. 

A reportagem de ((o))eco percorreu boa parte do perímetro da reserva, desde a sua sede, passando pelo limite oeste, até um ponto do limite norte, marcado pelo rio Barra Seca. Nesse perímetro, a floresta de S. Chico, conectada com a Rebio, é uma das raras exceções à regra. Na maior parte do tempo, a cerca da Rebio delimita também o fim da floresta e a invasão de monocultivos na já insustentavelmente árida paisagem do norte capixaba. Sooretama é um oásis, literalmente. 

Oásis que, durante dois anos e meio, entre 2014 e 2016, no auge da última e mais terrível seca do século no estado, forneceu água para várias localidades do município. “Eram 10 caminhões-pipa por dia”, relembra S. Chico da Mata.

Há 36 anos, quando a família adquiriu a terra, o ciclo da madeira estava se encerrando no Espírito Santo. Com o esgotamento das madeiras nobres, os grandes madeireiros começaram a se transferir para a Amazônia ou a mudar de ramo, muitos deles migrando para a mineração. 

Os que ficaram, dedicaram-se principalmente à produção de carvão, que logo também findou, e à expansão das pastagens e cafezais. Na contramão dessa tendência, S. Chico da Mata manteve a floresta intacta, deixando-a se recuperar. E, no restante, plantou café. A lavoura familiar, afirma, nunca se ressentiu dos dois alqueires cobertos de floresta. Muito pelo contrário. “Nossa senhora! Dá pra produzir e proteger. Sim, claro que dá!”, afirma. 

O padrão insustentável de produção ao redor, infelizmente, só fez acentuar o secamento dos córregos e rios ao longo das décadas. Passados quatro anos do grande pesadelo da seca, a sensação é de que a lição da restauração ainda não foi aprendida. “Pelo que eu tô vendo aí fora, não mudou nada. Plantar pé de árvore em vez de pé de café? Ah, não fazem isso não. Agradeça a Deus que tá chovendo”, diz. 

O edital 2021 do Reflorestar está no horizonte do mestre Rossini, apesar do baixo valor previsto no contrato. “Mil e poucos reais por ano? Numa área dessa? Tinha que ser isso por mês, pra cuidar de tudo. Mas é uma ajuda”, reflete.  

Com ou sem ajuda do Estado, Chico da Mata segue convicto de que tomou as decisões certas há quase 40 anos. “Eu não sou dono disso aqui não. Eu mais ela [a esposa] estamos cuidando, limpando tudo, mas a Terra deixou pra todo mundo. E tem que ter amor a isso aqui. A Mãe Terra é tudo”, declama. 

Nova geração

A alguns metros da pequena barragem, um dos filhos de S. Chico, Edson Rossini, administra uma unidade de produção hidropônica de hortaliças, uma das únicas em funcionamento na região. Técnico em Agropecuária e ex-militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Edson também cuida de um plantio de pimenta-do-reino, cultura que há mais de uma década foi disseminada fortemente entre os antigos cafeicultores. 

Edson Rossini e sua produção hidropônica de hortaliças. Foto: Paulo Silva

 

Na área em frente, está iniciando a criação de um sistema agroflorestal baseado no cacau e estuda a possibilidade de inserir o cedro. O café, avalia, não compensa: leva três anos para produzir e só colhe uma vez por ano. 

“O cacau chega a trinta, quarenta anos de vida. Pode chegar até a 60 anos”, comenta, comparando com os dez anos em média do pé de café. Outra vantagem é que o cacau pode ser substituído com planta madura ainda em pé, evitando que o solo fique exposto na renovação da lavoura. “A muda já vai ter crescido quando tiver que cortar a anterior”, acrescenta. 

O cedro também tem prazos dilatados e possibilidades de consórcio mais diversificadas: corte com 25 anos, plantio intercalado com várias culturas temporárias, como “banana, feijão, milho, aipim”, lista, deixando clara a influência benéfica da mata de S. Chico, que agora se espalha também sobre as áreas de plantio da propriedade familiar, cada vez mais agroflorestal. 

Sapê do Norte 

Há muito que a agrofloresta é uma prática primordial nos quilombos rurais do norte capixaba. Até meados do século XX, os plantios de mandioca e as casas de farinha eram elementos marcantes nos quilombos estabelecidos no hoje chamado Território Tradicional Quilombola Sapê do Norte, entre Conceição da Barra e São Mateus. 

A chegada no território do agronegócio com o eucalipto foi devastadora. Social, ambiental e economicamente. A agricultura familiar pereceu, o êxodo rural explodiu, as monoculturas se expandiram como tumores, a Mata Atlântica foi derrubada a “correntões”, como hoje ainda ocorre na Amazônia, a degradação do solo e da água se agravaram em velocidade nunca antes vistas por aquele povo, contam os antigos. 

“Essa Aracruz [Celulose, hoje Suzano, ex-Fibria] secou esses córregos tudo”, denuncia Berto Florentino, liderança quilombola no Córrego São Domingos. O quintal aos fundos da casa onde vive com a esposa, Dona Joana Cardoso Florentino, é emoldurado a oeste pela mata ciliar do Córrego Samambaia, cuja nascente é agraciada pelos cuidados de Berto. A leste, está a BR-101. A norte e sul, segue o Sapê do Norte. 

Dona Joana na varanda de sua casa. Foto: Paulo Silva

O ancião quilombola Berto é Mestre do Ticumbi de Itaúnas, uma das manifestações folclóricas mais importantes e emblemáticas do Espírito Santo, e uma das últimas testemunhas do ecocídio executado em nome do fetiche pelo plantio comercial de eucaliptos. 

“[A empresa] chegou com dois ‘trator’ de esteira, colocou um daqui outro lá do asfalto. Cada corrente, que um homem não pegava um elo daqueles. Então era um daqui outro de lá, mata virgem ia virando tudo. Depois botava o trator e ia botando fogo”, descreve S. Berto, de memória viva. 

No uso tradicional dos quilombolas, antes da invasão do agronegócio, o corte de uma grande árvore era um evento coletivo quase ritualístico. De tão frondosas eram as árvores, que era preciso “um ajuntamento de dez homens” para derrubar. “E era cantando!”, acrescenta, sorrindo. Eu mesmo nunca tirei, mas papai derrubava”, diz, do alto dos 77 anos de idade, 60 deles naquele pedaço de chão, hoje cortado pela BR-101. 

Nos versos aprendidos com o pai, ainda menino, nomes de comunidades resistentes – Santana, Angelim – rimam com capim, que era matéria-prima de colchões na época. O “trabalhar” é pra poder “na cidade comprar”, mas somente o que não era produzido no próprio quintal. Eram itens como “carne, fumo e sár [sal]”. Entoada com um balanço singelo e ritmado do declamante, a poesia quilombola descreve um universo simples, impregnado de amor à natureza. 

“Quem tinha medo de enfrentar eles, vendia sua terra e ia embora daqui!”, conta o líder quilombola. Ele mesmo foi alvo de inúmeras violências e intimidações por parte do agronegócio de eucalipto, bem como seus filhos. 

“Eu tinha uma roça de meio alqueire [cerca de 1,2 hectare] ali, que toda vida eu e minha mulher gostava de trabalhar. Aquela corrente passou na roça toda… tive que aproveitar mandioca verde. Quebrou tudo a Aracruz, a mata toda, secou os córregos tudo, os bichos do mato, mataram tudo com aquelas corrente”, narra o Mestre, sobre a primeira investida da empresa. 

À medida que o tempo reafirmava a posição de resistência de Berto, os assédios continuaram, inclusive inventando crimes – “roubo” de galhos de eucalipto para feitura do carvão, em que a empresa a Polícia e os órgãos ambientais impunham intimidações e agressões contra os moradores.  “Polícia vinha aqui pra me desorientar e eu vender. Dizia que eu vivia roubando madeira, que eu fazia isso, fazia aquilo”, lamenta. 

“Viver sem água?”

No outro lado da BR, a região do Córrego Angelim tem a jovem Flávia dos Santos como uma das lideranças. Agricultora orgânica certificada, estudante de Licenciatura em Educação do Campo no campus de São Mateus da Ufes, Flávia conhece a violência econômica, física, política, ambiental e jurídica da indústria de celulose. Na pele e na ancestralidade. 

“Me lembro que desde criança a minha avó, yayá Luzia dos Santos, vivia nos chamando a atenção para não tocar sequer nas folhas de um pé de eucalipto, porque senão ‘a Visel iria nos pegar’ – a Visel era a empresa de vigilância da época. Nossa comunidade ainda vive sob o medo das repressões”, relata Flávia, em uma “Denúncia de Abordagem Violenta”, enviada ao MPF no final de setembro passado, pedindo providências quanto a um episódio sofrido por ela e sua família. Enquanto voltavam à noite de carro pra casa, vigilantes da Prosevig, empresa que agora presta serviço de segurança patrimonial para a Suzano , intimidaram a família com o que chamaram de “operação de rotina”. 

“Vigilância de empresa tem poder de polícia sobre moradores passando na rua? Que operação de rotina é essa? (…) As vigilâncias têm o dever de vigiar o eucalipto, que é atividade deles, mas não a nossa comunidade ou a minha família!”, posiciona-se a líder quilombola no documento. 

Vinte por cento é pouco

Hoje, como há três décadas, duas das três principais monoculturas continuam avançando sobre áreas despidas de Mata Atlântica no Espírito Santo. A mata nativa mantém a mesma extensão, em parte a custo da substituição de florestas maduras por secundárias. Nesse cenário, a recomendação de ampliação da cobertura florestal para além dos 20% merece uma reflexão mais aprofundada. 

Em um dos tantos estudos que apontam essa necessidade, chegou-se a um mínimo de 40% de mata nativa numa paisagem para garantir a sobrevivência de espécies florestais, ou seja, espécies que necessitam viver dentro de florestas, sendo que animais são mais exigentes, com algumas espécies exigindo 70% de ambiente florestal para prover suas necessidades básicas. 

Esse mínimo de 40% busca contemplar essa variação entre espécies, explica um dos autores do estudo, o pesquisador da Universidade Estadual de Santa Cruz José Carlos Morante-Filho. “Os grandes blocos de florestas são fundamentais. Ao menos 10% desses 40% de floresta devem estar em um único bloco principal e os demais 30%, distribuídos em fragmentos, de diferentes tamanhos”, resume. 

Essa formação básica deve ser complementada ainda por elementos seminaturais, como corredores de vegetação, principalmente em Áreas de Preservação Permanente (APPs) em beiras de cursos d’água (mata ciliar). 

Finalmente, as paisagens dedicadas a proteger a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos essenciais à sobrevivência humana precisam ter, nos 60% de áreas não florestais, um uso do solo mais amigável, como as agroflorestas. “Quanto mais diversificada a matriz agrícola, melhor. Inclusive as agroflorestas precisam ser diversificadas”, acentua Morante-Filho. 

Monoculturas, ressalta, são a antítese da sustentabilidade florestal. “Qualquer monocultura. Pastagem é muito agressiva pra uma espécie que depende de floresta. Eucalipto pode ser menos maléfica, em relação ao efeito de borda, mas desde que ele não seja cortado a cada sete anos”, pondera.

Desafios locais

Saindo do entorno direto da Rebio Sooretama, as duas principais bacias hidrográficas do norte do Espírito Santo possuem média de cobertura florestal de 10% e 14%, segundo o Plano de Ação para Restauração Florestal nas bacias dos Rios Itaúnas e São Mateus, publicado há um ano pela ONG local Sociedade Amigos Por Itaúnas (Sapi), em parceria com a WRI Brasil. 

No município de São Mateus, especificamente, o deserto verde de eucalipto saltou, em 2015, para 18%, atrás dos 31,9% de pastagem e com quase o dobro dos 9,8% de floresta primária, segundo o Atlas. De acordo com o MapBiomas, foi ainda o município capixaba que mais desmatou entre 2019 e 2020. O que explica, em grande parte, as seguidas crises de escassez de água para a população, que já convive há anos com água salgada descendo pelas torneiras quando o mar invade o rio assoreado, onde é feita a captação. 

No vizinho Conceição da Barra, já divisa com a Bahia, incríveis 37,4% do solo eram cobertos por eucaliptais em 2015, com pastagens e cana-de-açúcar ocupando mais 10% cada, restando apenas 16,6% para mata nativa.

Sem flores, sem frutos, com apenas uma espécie vegetal e pouquíssimas de animais – predominantemente formigas – os eucaliptais são refeitos a cada sete anos ou menos, mediante o monitoramento dos talhões até o ponto de corte, e são bombardeados constantemente com agrotóxicos pulverizados também por via aérea, contaminando vastas áreas vizinhas, incluindo lavouras agroecológicas, vilas e corpos d´água, como já denunciaram inúmeras vezes as comunidades e produtores rurais que vivem cercados pelo deserto verde no norte do Espírito Santo. Alguns municípios já aprovaram leis proibindo a pulverização aérea de agrotóxicos em seus territórios. 

Equilibrar as forças políticas no tabuleiro da disputa pelo poder de gestão do território é uma medida fundamental para a restauração da Mata Atlântica na porção capixaba da Reserva da Costa do Descobrimento. Os ensinamentos, súplicas e oportunidades já estão postos. 


Reportagem originalmente publicada em: https://oeco.org.br/reportagens/monoculturas-ditam-as-regras-e-encurralam-a-floresta-no-espirito-santo/

 

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