Essa reportagem é resultado de uma parceria entre a Comissão Pastoral da Terra e o Initium Media, veículo de comunicação sediado em Hong Kong, que se dedica à produção de reportagens investigativas e ao jornalismo de dados para análises aprofundadas da região da Grande China. Neste artigo, publicado originalmente em abril deste ano, os jornalistas Ning Hui e Cao Jingyi analisam três grandes projetos de investimento chinês em outros países, que tiveram sua viabilidade questionada durante suas etapas de avaliação de impacto ambiental (EIA).
Entre eles, o "caso 3", está o projeto Bloco 8, da mineradora Sul Americana de Metais S.A (SAM), empresa brasileira adquirida pelo Grupo Honbridge, chinês, ainda em 2010. O complexo de mineração de ferro, projetado para a região do Vale das Cancelas, no Norte de Minas Gerais, prevê a construção da maior barragem de rejeitos do país e o segundo maior mineroduto do mundo, ameaçando a existência de dezenas de comunidades tradicionais na região do município de Grão Mogol, Padre Carvalho, Fruta de Leite, Josenópolis e pelo menos outros 20 ao longo de uma extensão de 482 km, até Ilhéus, na Bahia.
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"Por que os empreendimentos foram embargados justamente nesta fase?", esse é o questionamento principal que guia os apontamentos sobre os processos de licenciamento ambiental do projeto Bloco 8 da SAM, cuja viabilidade vinha sendo negada há pelo menos dez anos, e de outros dois projetos estrangeiros. Leia a reportagem completa:
Por que alguns projetos de investimento estrangeiro da China foram "embargados" na fase de avaliação de impacto ambiental?
O ideal seria que as avaliações de impacto ambiental pudessem prever, avaliar e mitigar o potencial de impacto de atividades de desenvolvimento antes que decisões-chave fossem tomadas.
Texto: Ning Hui e Cao Jingyi
Cards: Luiz Almeida
Em dezembro de 2020, o Ministério da Ecologia e Meio Ambiente da China, com o objetivo de prevenir impactos ecológicos e ambientais relacionados aos projetos de investimento nos países da iniciativa Belt and Road, adotou um sistema de classificação de risco estilo "semáforo” [1]. O sistema “semáforo” é bastante intuitivo: as cores vermelha, amarela e verde indicam o grau de impacto ambiental, climático e à biodiversidade de cada projeto. Os projetos classificados como "verde" atendem aos padrões internacionais de avaliação de risco, enquanto os "amarelos" são passíveis de melhoria. Já nos “vermelhos” o fator de risco é tão elevado que estes projetos precisam ser interrompidos ou rigorosamente regulamentados.
À medida que se eleva a consciência coletiva acerca dos impactos ambientais e sociais de atividades de desenvolvimento, projetos extrativistas, de geração de energia e de infraestrutura tornam-se cada vez mais complexos, principalmente no tocante às tratativas com agentes externos, como órgãos regulatórios, governamentais, públicos, socioeconômicos e ambientais. Estes fatores são denominados riscos "não-técnicos”, uma definição usada pela indústria extrativista para englobar todos os riscos decorrentes das interações de uma empresa com agentes externos. De acordo com um relatório [2] de 2017, mais da metade de todos os projetos de extração no mundo, avaliados em mais de US$ 500 milhões, estão atrasados, e mais de 80% desses projetos enfrentam riscos não-técnicos.
Os projetos de investimento externo da China, concentrados nos setores de energia e infraestrutura, e também em vários ramos da mineração, não são exceção. De acordo com um relatório [3] de 2018 sobre a avaliação de impacto ambiental e de vulnerabilidade social de projetos de investimento de empresas chinesas no exterior, o descumprimento de procedimentos de salvaguarda ambientais e sociais ou a existência de fatores de risco, estão entre as razões frequentes para a suspensão de projetos de empresas chinesas no exterior por parte dos governos onde estão localizados os empreendimentos.
A classificação estilo “semáforo”, apoiada pelo Ministério da Ecologia e Meio Ambiente da China, ainda está longe de ser uma regulamentação obrigatória para os projetos de investimento externos chineses. Porém, esta classificação ainda serve como um parâmetro de políticas de investimento. Os investidores também assumem os riscos do empreendimento. A gestão de risco ambiental e de vulnerabilidade social praticada pelo setor financeiro internacional no tocante ao financiamento de projetos (como no caso do “Princípio Equatorial” [4]), também é uma referência para investidores na China. Desde que foi lançado em novembro de 2018, o programa Princípios para Investimentos Sustentáveis, da iniciativa Belt and Road ("Belt and Road Green Investment Principles" - GIP)[5], já conta com a adesão de 37 instituições financeiras, as quais afirmaram seu comprometimento com a capacitação voltada à gestão de riscos ambientais e climáticos.
Qual a dimensão do risco de possíveis impactos ambientais sobre os projetos de investimento externo da China? Quais são as semelhanças e diferenças nos processos de avaliação de impacto ambiental e vulnerabilidade social de diferentes países? Que tipo de gerenciamento e/ou monitoramento de risco a China pode praticar como investidora e empreiteira em projetos internacionais? Quais fatores de risco podem ser identificados, previstos e mitigados no momento da avaliação, antes que decisões-chave acerca do projeto sejam tomadas, de forma a prevenir a ocorrência de impactos ambientais e sociais e acidentes graves? Este artigo analisa três projetos de investimento chineses que tiveram sua viabilidade questionada durante a etapa de avaliação de impacto ambiental (“EIA”). Por que os empreendimentos foram embargados justamente nesta fase?
## Caso 1: Questões "ecotoxicológicas"
O Peru tem planos para a construção de uma hidrovia que visa conectar quatro grandes rios na região Amazônica do país. Denominado Hidrovia Amazônica ("Amazon Waterway"), o projeto abrangeria por um trecho de 2.687 km e ligaria o Brasil à cidade peruana de Iquitos (sem acesso terrestre), e ao norte conectaria o porto de Paita com a fronteira. O objetivo é fazer com que os rios da região sejam navegáveis durante todo o ano. O anúncio de empreendimento [6] para a Hidrovia Amazônica afirma que o investimento na construção será de aproximadamente US$ 69 milhões, além de US$ 350 milhões que serão invertidos posteriormente em operações e manutenção; em troca, o investidor receberá a concessão da hidrovia por 20 anos.
A Hidrovia Amazônica é um dos 52 projetos de infraestrutura crítica do Peru, e desde que foi proposto, em 2014, é visto como um empreendimento de interesse nacional e recebe amplo apoio do governo peruano. Quando o então presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, visitou a China em 2016, [7] esperava atrair investimentos chineses em projetos de infraestrutura em seu país. Em 2017, o consórcio Cohidro [8], joint venture 50-50 da empresa Sinohydro e da construtora peruana Casa S/A, anunciou que havia vencido a licitação e planejava que a hidrovia estivesse operando já em 2022.
No início de 2018, o Consórcio Cohidro iniciou o processo de avaliação de impacto ambiental. No entanto, o pedido de avaliação foi rejeitado pela Agência de Licenciamento Ambiental do Peru (SENACE), uma vez que esta entendeu que a população local não havia sido consultada acerca do projeto, nem tampouco havia sido solicitado o parecer das organizações indígenas da região.
Questionamentos acerca dos impactos ambientais, sociais e econômicos da hidrovia começaram a surgir.
A construção prevê a dragagem em 13 pontos rasos em quatro dos rios. A agência de parques nacionais do Peru (SERNANP), [9] relata que três dos locais de dragagem estão próximos à zona tampão de Pacaya Samiria, a maior reserva nacional do Peru, e outro ponto de dragagem está localizado na zona de acesso do Parque Nacional Cordilheira Azul. Jorge Abad, um engenheiro ecohidrológico que estuda o ecossistema do rio Amazonas há mais de uma década, observa [10] que como a dragagem é em sua essência a remoção de sedimentos, como o lodo, os sedimentos que provêm do fundo dos rios devem ser analisados antes que os trabalhos de dragagem tenham início, de forma a se analisar possíveis efeitos deletérios. A necessidade de se entender o fluxo de sedimentos no fundo de rios e os problemas a ele relacionados não é recente. No Rio Mississippi, Estados Unidos, busca-se moldar o curso das águas há 200 anos, sem sucesso.
De acordo com relatório [11] da Sociedade Peruana de Conservação da Vida Selvagem (WCS), a dragagem pode interromper a migração dos peixes. A remoção de detritos, como árvores encalhadas no rio, também pode afetar as populações aquáticas, já que estas árvores criam um ambiente propício para a reprodução de peixes e um habitat ideal para pássaros, mamíferos e répteis. Além dos peixes, dois mamíferos, o boto-do-rio-amazônico e a ariranha, também podem ser afetados. A estabilidade da cadeia alimentar de toda a região da Amazônica estaria sob ameaça. Existem também 424 [12] comunidades indígenas que dependem desses rios e temem que o projeto deixe suas margens sem vida.
Nem mesmo a promessa de se criar uma hidrovia nos moldes mais atuais se livrou de questionamentos da oposição. Assim que a concessão for aprovada, entende-se que o custo da passagem para travessia nos navios aumentará. A previsão é de que todos os navios de médio e grande porte que entrarem na bacia terão que pagar à concessionária um pedágio de US $1,69 por tonelada, acrescido de IVA de 18%. Uma das que se opõe ao projeto é Carmen Nuñez, gerente geral da Associação de Transporte Fluvial de Loreto. Ela estima que as taxas de frete hidroviário e, em decorrência, o custo da população local com alimentos aumentaria em 30% [13].
Em maio de 2018, o SENACE iniciou o processo de EIA depois que o Consórcio Cohidro listou duas organizações indígenas como partes interessadas. Ao mesmo tempo, duas organizações indígenas, AIDESEP e ORPIO, ajuizaram um mandado de segurança junto ao Tribunal Superior de Lima, demandando ao governo e ao Consórcio Cohidro que a EIA inclua também o seu parecer acerca do projeto.
Em janeiro de 2020, o Consórcio Cohidro rescindiu [14] o pedido de avaliação ambiental junto ao SENACE, citando a falta de estudo ecotoxicológico que avaliaria o impacto de substâncias tóxicas presentes no leito do rio no ecossistema da região, um dos elementos necessários para a certificação ambiental. Em função das dificuldades na obtenção de parecer favorável da EIA, a Cohidro tentou estender a concessão do projeto de 20 para 23 anos, mas o Ministério dos Transportes negou [15] a proposta.
Até o momento, o Superior Tribunal de Justiça do Peru ainda está julgando o mérito da ação ajuizada pelos órgãos indígenas. O futuro do projeto é incerto.
## Caso 2: Dúvidas sobre a autenticidade de EIA levam à suspensão do financiamento
Batang Toru, uma usina hidrelétrica em construção em Sumatra do Norte, Indonésia, é um projeto desenvolvido em 2012 pela North Sumatra Hydropower LLC (NEHS), com valor estimado de US $1,68 bilhão. No entanto, as tentativas de obtenção de empréstimos de instituições como a Corporação Financeira Internacional (IFC) do Banco Mundial ou o Banco Asiático de Desenvolvimento, fracassaram em função da fragilidade do ecossistema em que Batang Toru está localizada.
Em 2017, cientistas descobriram na região uma nova espécie de orangotango [16] , o orangotango Tapanuli (Pongo tapanuliensis), Com taxa de fertilidade baixa e extremamente sensível a mudanças no ecossistema, a população remanescente deste orangotango é de aproximadamente 800 indivíduos. A construção da usina hidrelétrica se daria em seu único habitat conhecido. Órgãos ambientais manifestaram receio de que a construção da usina hidrelétrica pudesse levar à extinção dessa espécie ameaçada.
No final, o empréstimo à NEHS foi concedido pelo Banco da China, com garantia da China Export and Credit Insurance Corporation, uma empresa seguradora financiada pelo governo chinês, e da estatal chinesa Sinohydro como contratante. Em 31 de janeiro de 2017, a Batan Toru recebeu a licença ambiental e deu-se início às obras. No entanto, a polêmica em torno da avaliação de impacto ambiental do projeto ainda persiste.
Onrizal Onrizal, pesquisador florestal da University of North Sumatra, disse que a NSHE contratou a empresa PT Global Inter Sistem (GIS), da Indonésia, para fazer uma avaliação de impacto ambiental. Em 2013, a GIS o contratou para analisar a biodiversidade no local do empreendimento. O parecer profissional de Onrizal foi de que, além do orangotango Banuri, espécie que chamou a atenção da população, 23 espécies ameaçadas de extinção, incluindo o tigre de Sumatra, o urso malaio e o gibão da ilha de Sumatra, também vivem no local destinado à construção. Onrizal disse que incluiu todas as espécies acima em seu relatório, mas que o número de espécies afetadas foi reduzido para 15 no relatório submetido pela GIS aos órgãos reguladores. Somente quando lhe perguntaram por que o tigre de Sumatra não havia sido incluído em seu relatório foi que Orizal se deu conta que a EIA sob análise não era a mesma que ele havia ajudado a redigir. Orizal também afirma [17] que, sem seu conhecimento ou permissão, a GIS o elencou como um dos especialistas envolvidos no projeto, bem como utilizou suas credenciais acadêmicas, além de ter falsificado sua assinatura. A empresa se manifestou dizendo que houve um equívoco na finalização do relatório entregue às autoridades.
Walhi, a maior organização de defesa ambiental da Indonésia, atesta que o projeto hidrelétrico representa uma grande ameaça ambiental e exige a que o governo revogue a licença ambiental do empreendimento, argumentando que houve uma série de omissões administrativas durante o processo de obtenção da licença ambiental pela NSHE, e que o parecer e assinaturas falsificados de Onrizal são justificativas suficientes para a suspensão ou até mesmo o cancelamento do projeto. O advogado da Walhi, Golfrid Siregar, comunicou à mídia que se o governo local continuasse se recusando a revogar a licença ambiental, a organização tomaria em juízo o depoimento de Onrizal de que ele não havia participado da redação final da EIA submetida aos órgãos responsáveis, nem tampouco assinado o documento, como forma de auxiliar a polícia federal a construir o inquérito.
Em 6 de outubro de 2019, o advogado Siregar sofreu um ataque que causou ferimentos em sua cabeça, e veio a falecer. A polícia diz que o falecimento de Siregar ocorreu devido a um acidente de moto ocasionado por embriaguez, mas sua família não acredita nessa versão.
Além da ameaça à biodiversidade, foram feitos questionamentos acerca da viabilidade de projetos hidrelétricos “sustentáveis”, tendo em vista os impactos sísmicos na região [18]. Um estudo descobriu que os reservatórios localizados em regiões tropicais produzem uma grande quantidade de gases de efeito estufa em seus primeiros anos de operação, fato omitido na declaração de impacto ambiental. Além disso, a região da Sumatra tem sofrido vários terremotos de alta magnitude. A Comissão Internacional de Grandes Barragens (ICOLD), recomenda que as barragens construídas na região sejam resistentes a terremotos de até 7,7 pontos na escala Richter. A NSHE reconhece que existem falhas geológicas ativas a 4 km do local da construção, mas argumenta que como a barragem não foi construída em uma dessas falhas, o empreendimento foi projetado para resistir a terremotos de até 6,7 pontos na escala Richter.
Em meio a críticas prolongadas, o Banco da China emitiu uma declaração [19] em março de 2019, afirmando que "tomou ciência das considerações expressas por algumas organizações ambientais" e se comprometeu a "revisar cuidadosamente o projeto".
Diversas organizações ambientais, incluindo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), também questionaram a viabilidade do projeto. Em abril de 2020, a IUCN emitiu um relatório de verificação de fatos [20] que refutou detalhadamente os relatórios de EIA publicados pela NSHE.
Em junho de 2020, de acordo com Muhammad Ikhsan Asaad, chefe do projeto responsável pela Corporação Nacional de Energia da Indonésia (PLN), a usina hidrelétrica Batan Toru, programada para entrar em operação em 2022, “poderá ser adiada para 2025 [21] devido a considerações ambientais e ao impacto da COVID-19, que fizeram com que o Banco da China suspendesse o financiamento. ”
## Caso 3: Uma estratégia para "burlar" a EIA
Em março de 2010, o Grupo Honbridge (Hong Bridge Capital Limited), com escritório central Hong Kong, adquiriu a Sul Americana de Metais S/A (“SAM”), uma empresa de mineração brasileira. Tendo como principais acionistas o Geely Holdings Group, uma empresa Fortune 500, e o Shagang Group, os investimentos da Honbridge se concentraram principalmente no setor de novas fontes de energia para baterias. A aquisição da SAM foi sua estréia no setor de mineração. Na época, a SAM detinha 83 licenças de exploração de minério de ferro no Brasil, incluindo a região do “Bloco 8” em Minas Gerais, um estado no sudeste do Brasil. Estima-se que o Bloco 8 contenha cerca de 2,6 bilhões de toneladas de minério bruto.
No final de 2011, a SAM acreditava que as operações da mina de ferro Bloco 8, considerada de grande porte para o estado Minas Gerais, com investimento planejado de US $3 bilhões e produção anual de 27,5 milhões de toneladas, teriam início no segundo semestre de 2014. Dez anos depois, o Projeto Bloco 8 ainda está longe de sair do papel; o pré-requisito básico para dar início à obra, o pedido de Licença Prévia de Avaliação Ambiental, foi rejeitado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
No Brasil, existem três etapas no processo de pedido de licença ambiental: licença ambiental prévia, licença de instalação e licença de operação. O Projeto Bloco 8 do Grupo Honbridge está na fase de licença ambiental prévia.
De acordo com os relatórios anuais da Honbridge, desde 2012 a SAM tem apresentado ao IBAMA o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Avaliação de Impacto Ambiental relativos ao Projeto Bloco 8. Em março de 2016, o IBAMA decidiu [23] que o projeto era “inviável sob o ponto de vista ambiental”. Após recurso da SAM e a apresentação de novo estudo de impacto ambiental, incluindo a elaboração de novos planos e mudança de escopo do projeto, o IBAMA determinou que um novo pedido de licença ambiental deveria ser protocolado.
Por ser uma das maiores regiões produtoras de minério de ferro do Brasil, todos os olhos estão voltados para o estado de Minas Gerais. O Projeto Bloco 8 é um empreendimento que pode ter graves consequências ambientais e sociais.
De acordo com relatório detalhado emitido pelo IBAMA, os principais questionamentos acerca do projeto são em relação à disposição de resíduos e rejeitos, bem como ao impacto do empreendimento nos recursos hídricos e ecossistemas da região. Para produzir os estimados 27,5 milhões de toneladas de minério de ferro ao ano, o Projeto Bloco 8 consumiria 6,2 milhões de litros de água por hora em uma região de clima semiárido onde os recursos hídricos são escassos; seria necessária também a construção de duas barragens de rejeitos [24] com capacidade de armazenamento de aproximadamente 930 milhões e 230 milhões de metros cúbicos, respectivamente. Atualmente, a maior barragem de rejeitos do Brasil tem capacidade de armazenamento de 750 milhões de metros cúbicos. Nos últimos anos o Brasil foi palco de diversos acidentes em barragens de rejeitos que resultaram em grande número de mortos e feridos, bem como na devastação ambiental das regiões afetadas, o que gerou questionamentos acerca da segurança dessas barragens. Para transportar o minério extraído da mina, o sistema de logística do Projeto Bloco 8 inclui a construção de um mineroduto subterrâneo de 482 km até o Porto Sul de Ilhéus, passando por 21 municípios e topografias e ecossistemas complexos.
Em novembro de 2017, após o IBAMA ter considerado o empreendimento ambientalmente inviável, a SAM decidiu fragmentar os projetos relativos ao Bloco 8. Os pedidos de licenciamento relativos à extração de minérios foram encaminhados aos órgãos ambientais estaduais, enquanto que os pedidos relativos à construção do mineroduto, que passa por dois estados, bem como da estação de desidratação e filtração na área portuária foram mantidos junto às autoridades federais. Para a construção do mineroduto de 482 km, a SAM e um terceiro investidor estabeleceram [25] a empresa Lotus Brasil (Lotus Brasil Comércio e Logística Ltda), que se encarregou de solicitar as licenças ambientais necessárias. A Lotus Brasil é responsável também pela avaliação ambiental, construção e operação do sistema de logística do Projeto Bloco 8.
Em outras palavras, o Projeto Bloco 8 foi fragmentado para contornar as decisões de inviabilidade ambiental emitidas pelo IBAMA, mediante solicitação de pedidos de licença diretamente aos estados que apoiam a mineração. No início de 2017, o estado de Minas Gerais, onde está localizada a mina do Projeto Bloco 8, listou o empreendimento como prioritário [26]; em 2019, o governador de Minas Gerais assinou um protocolo de intenções [27] com a SAM afirmando o estado se comprometeria a auxiliar na obtenção de todas as licenças necessárias à consecução do projeto.
A fragmentação do projeto encontrou forte oposição na sociedade civil.
Em entrevista à Initium Media, o grupo ambiental local, Coletivo Margarida Alves, argumentou que a mudança é uma tentativa de burlar as regulamentações brasileiras e que as agências reguladoras não serão capazes de avaliar o impacto global do projeto nas populações afetadas e/ou no meio ambiente. Tádzio Coelho, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, Brasil, que tem como foco de estudo os impactos ambientais e sociais da mineração, disse ainda que a fragmentação do projeto pela SAM na tentativa de agilizar o processo de licenciamento "é uma estratégia empresarial feita em conluio com os órgãos licenciadores que dificulta a participação popular e prejudica a avaliação dos efeitos do empreendimento como um todo". “
Em 2 de dezembro de 2019, o Ministério Público de Minas Gerais e o Ministério Público Federal ajuizaram Ação Civil Pública contra o Governo do Estado de Minas Gerais, IBAMA, Lotus Brasil e SAM, argumentando que o projeto de extração Bloco 8 da SAM e o projeto de mineroduto da Lotus Brasil são interdependentes e devem ser aprovados em conjunto pelo órgão ambiental brasileiro. Em janeiro de 2020, um juiz federal emitiu uma decisão provisória suspendendo o processo de licenciamento para ambos os projetos.
De acordo com o relatório financeiro de 2020 do Grupo Honbridge [28], já foram investidos cerca de US$ 150 milhões no projeto de extração de minério de ferro, e o grupo considera que "o atraso na obtenção de licenças para iniciar as obras da SAM é lamentável". A nova previsão para o início das obras é para o final de 2026. Embora a licença ambiental ainda esteja pendente, a SAM já assinou um acordo de cooperação com a Huawei e planeja implantar na mina a tecnologia de mineração não tripulada de rede 5G; no porto de Ilhéus, está prevista a participação de um consórcio de capital chinês, e a SAM também manifestou interesse no investimento de capital após a obtenção das licenças.
De “avanço a qualquer custo” para “controle de risco”
O processo de EIA é parte das ações de controle de risco de investimento estrangeiro. Zhang Jingjing, um advogado que acompanha há anos o impacto ambiental dos projetos chineses no exterior, disse à Initium Media: “No tocante a investimentos estrangeiros, as tratativas comerciais preliminares e inversões significativas antecedem à conclusão do EIA; sendo assim, muitos investidores, como o Banco Mundial, exigem que auditorias de impacto ambiental e social sejam feitas no estágio inicial do empréstimo, com o intuito de identificar problemas o quanto antes e garantir a segurança do investimento”.
Embora os requisitos para investimento no exterior variem de país para país, os critérios estabelecidos pelo Banco Mundial têm valor de referência. Os Princípios do Equador, que representam 116 instituições financeiras em 37 países, são divididos em duas categorias: “países designados” (principalmente países desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos) cujos sistemas jurídicos ambientais são iguais ou mais rígidos que os padrões internacionais; os demais países são classificados como “países não designados”. Em “países não designados”, os Princípios do Equador exigem que o processo de avaliação ambiental e de vulnerabilidade social seja consistente com os padrões exigidos à época, por exemplo, pela Corporação Financeira Internacional e o Grupo Banco Mundial.
Em outras palavras, para gerenciar o risco, os Princípios do Equador exigem que os investidores sigam um padrão internacional mais rigoroso de EIA, independentemente da gestão e dos procedimentos do próprio país que recebe o investimento. No entanto, para muitas empresas chinesas, os padrões internacionais de EIA são desconhecidos.
O conceito de EIA foi introduzido na China há mais de 30 anos. Porém o sistema, construído gradualmente, ainda é muito deficiente. A lei que regula EIAs foi alterada em 2016 para remover a possibilidade de licenças prévias, ou seja, os procedimentos só podem ser iniciados após a emissão da licença. Após passar por processo de revisão, a EIA e ações relativas ao projeto são aprovadas concomitantemente, tornando o processo mais eficiente e fazendo com que a aprovação da EIA não seja tão crítica ao investimento. Essa metodologia aumenta a demanda por monitoramento, outra área de melhoria. A participação pública também é uma formalidade do processo.
Um relatório comparando os padrões do Banco Mundial com os padrões domésticos de EIA da China concluiu que “há diferenças significativas” nos critérios de avaliação, escopo e métodos. Por exemplo, o padrão internacional requer um levantamento de histórico ambiental e social, enquanto que a EIA chinesa não requer um levantamento de vulnerabilidade social. Além disso, as EIAs internacionais requerem maior participação das partes interessadas e uma análise de alternativas viáveis. Elementos corriqueiros de EIAs internacionais, como recursos hídricos e gases de efeito estufa, não fazem parte do escopo das EIAs na China.
Na prática, as empresas veem a obtenção de licenças ambientais como “obstáculos” que precisam ser superados e é difícil conter suas ações com requerimentos mais rigorosos que poderiam, por conseguinte, elevar os custos do projeto. Um especialista familiarizado com as regras de avaliação ambiental nacionais e internacionais disse à Initium Media que muitos projetos de capital chinês no exterior, vendo as dificuldades em se concluir projetos dentro da China, acreditam que o desenvolvimento e conclusão do projeto são os fatores mais importantes do processo. Disse inclusive, que “se os projetos de empresas estatais são concluídos, considera-se uma conquista política; caso negativo, a responsabilidade não recai sobre elas; as empresas privadas não têm tanta experiência com projetos de grande escala, onde é fácil arriscar.”
Teoricamente, e de acordo com a Associação Internacional de Avaliação de Impacto (IAIA) [29], a avaliação de impacto ambiental permite a identificação, previsão, avaliação e mitigação de impactos ambientais, físicos e sociais, dentre outros, antes que decisões-chave do projeto sejam tomadas. Em realidade, em muitos países o público não tem acesso a informações relativas a grandes projetos governamentais de infraestrutura e as EIAs são ocorrências raras. Mesmo assim, existem ao menos alguns materiais disponíveis às populações afetadas pelo projeto, o que possibilita que estes grupos participem das discussões sobre viabilidade.
Zhang acrescentou: “O capital, incluindo o capital da China, tem uma forte mentalidade de aposta, desde que consiga aprovação inicial - e a maioria dos projetos, mesmo que sejam prejudiciais, conseguem aprovação e se iniciam." Contanto que o obstáculo da EIA seja superado, os lucros são vantajosos.”
Embora o Projeto Bloco 8 esteja preso há mais de uma década na fase de licenciamento, à medida que o minério de ferro se valorizou, a avaliação de prospectos [30] da empresa aumentou, passando de US $811 milhões em 2019 para US $981 milhões em 2020.
(Este artigo é uma colaboração entre a Initium Media e a Comissão Pastoral da Terra.)
[3]: https://mall.cnki.net/magazine/Article/SXHS201804006.htm
[4]: https://equator-principles.com/
[6]: http://www.aidesep.org.pe/sites/default/files/media/documento/brief_waterway.pdf
[7]: https://www.reuters.com/article/china-peru-railways-idUSL2N1BR1FI
[8]: http://www.cohidro.com.pe/en/vision/
[9]: https://dar.org.pe/hidrov-sernanp/
[11]: https://peru.wcs.org/Portals/94/Publicaciones/DT_IMPACTOS_PESCA_HA-12.pdf?ver=2019-05-24-213032-867
[12]: https://waterkeeper.org/news/amazon-waterway-new-risks-for-the-river-guardians-under-the-pandemic/
[14]: https://es.mongabay.com/2021/01/hidrovia-amazonia-peru-consulta-previa-pueblos-indigenas/
[15]: https://es.mongabay.com/2021/01/hidrovia-amazonia-peru-consulta-previa-pueblos-indigenas/
[16]: https://news.mongabay.com/2019/02/what-does-it-take-to-discover-a-new-great-ape-species/
[19]: https://www.bankofchina.com/en/bocinfo/bi2/201903/t20190304_14882309.html?keywords=Batang%20Toru
[21]: https://news.mongabay.com/2020/07/batang-toru-hydropower-dam-tapanuli-orangutan-delay-nshe/
[22]: http://www.8137.hk/assets/Uploads/reports/cn/2011-04.pdf
[24]: http://ftp.brandt.com.br:2100/EIA%20SAM%20BLOCO%208/EIA%20SAM%20BLOCO8%20-%20PASTAS%20DE%20ARQUIVOS/
[25]: http://www.8137.hk/assets/Uploads/cw08137-2018-Annual-report.pdf
[26]: http://www.8137.hk/assets/Uploads/Honbridge-Annual-Report-2017-C.pdf
[27]: http://www.8137.hk/assets/Uploads/Honbridge-Annual-Report-2017-C.pdf
[28]: http://www.8137.hk/assets/Uploads/CW08137-AR.pdf