Estados criaram nos últimos anos grupos para “segurança da população rural”; na prática, patrulhas reforçam violência a favor dos interesses dos fazendeiros, que chegam a financiar e gerir os grupos; CPT vê “institucionalização da pistolagem”
Por Julia Dolce - De Olho Nos Ruralistas
Foto principal: Esequias Araújo/Governo do Tocantins
Moradores da Gleba Tauá, uma região de 20 mil hectares no município de Barra do Ouro (TO), foram surpreendidos no início do ano com placas anunciando uma nova força policial criada na Polícia Militar de Araguaína: a Patrulha Rural. As sedes de Araguaína e Barra do Ouro estão a 100 quilômetros de distância. A força foi criada para “proteger a população rural”, mas seus policiais têm atuado para reprimir camponeses, a favor dos fazendeiros locais. De Olho nos Ruralistas reuniu histórias de perseguição, ameaças e agressões por parte da Patrulha Rural a mando de Emílio Binotto, empresário, ruralista e grileiro catarinense que disputa a Tauá desde 1992.
Ao longo dos últimos anos, os estados do Cerrado têm criado patrulhas rurais, como um braço rural de suas polícias militares, com apoio explícito do agronegócio. Entre as medidas dessas tropas está a criação de registro com georreferenciamento das propriedades cadastradas, de modo voluntário, pelos fazendeiros. Líderes e representantes de camponeses ouvidos pelo observatório apontam que essas patrulhas têm atuado para intimidá-los.
O caso do Tocantins mostra que os policiais militares têm-se identificado como integrante das patrulhas rurais nas intimidações e agressões, como mostramos em maio: “Em três anos, camponeses denunciam 20 ameaças de grileiros em Barra do Ouro (TO)“.
No dia 19 de abril, o presidente da Associação do Grupo de Produtores da Gleba Tauá, Valdineiz Pereira dos Santos, foi torturado por dois policiais da Patrulha Rural. O camponês e seu filho mais velho foram detidos, agredidos com um pedaço de pau e ameaçados. Quando perguntou o nome de um dos policiais que o agrediu, Valdineiz ouviu como resposta que ele se chamava “morte”, e que ele voltaria sem farda para “terminar o serviço”.
Apesar da gravidade da denúncia, registrada em um dos mais de 20 boletins de ocorrência (B.Os) feitos pelos camponeses da Gleba Tauá contra jagunços e policiais contratados por fazendeiros para pressioná-los a deixar o território, nenhuma atitude foi tomada pelas instituições de Tocantins.
Sindicato Rural divulga logo junto ao telefone da Patrulha
Um fator que dificulta a denúncia da ligação indevida entre os policiais e os fazendeiros da região é que ela é, na verdade, institucionalizada. As placas da Patrulha Rural espalhadas pela Gleba Tauá mostram que o Sindicato Rural de Araguaína, representante de grandes ruralistas da região, é colaborador da patrulha, e tem seu logo divulgado juntamente com número de telefone da força, disponibilizado para denúncias.
Alunos do curso de patrulhamento rural do Tocantins. (Foto: Divulgação)
A natureza do vínculo colaborativo não foi explicada pela Polícia Militar do Tocantins, que não respondeu à reportagem. O que chega aos ouvidos das mais de cem famílias camponesas que vivem na Gleba Tauá é que os próprios fazendeiros da região financiam a atividade da patrulha rural, em prol de seus interesses, por meio de uma “vaquinha”.
Os resultados da instrumentalização da força começam a aparecer em outros territórios em conflito no Tocantins. Segundo Valdineiz, camponeses do município de Nova Olinda, a 54 quilômetros de Araguaína, relataram este mês, em uma reunião de associações de pequenos agricultores, novas intimidações e agressões: “A Patrulha Rural também abordou e maltratou bastante o pessoal lá, dois senhores só não foram espancados, porque um deles estava acompanhado de uma criança, mas humilharam bastante, um abuso de autoridade”.
Em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) feito pela reportagem demandando acesso a todos os boletins de ocorrência com denúncias de poder e agressão por parte de policiais integrantes dessas patrulhas, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Tocantins respondeu que o estado não tem “Patrulha Rural da Polícia Militar”, apesar de o próprio governador Mauro Carlesse (PSL) ter participado em fevereiro de uma formatura da tropa em Araguaína.
Mesmo com recurso enviado pela reportagem, que incluiu o B.O lavrado por Valdineiz, a Controladoria Geral do Estado do Tocantins, responsável por receber e repassar todos os pedidos de LAI, não passou a demanda para a Polícia Militar (PM) do estado. A SSP respondeu apenas que não existem formas de consultar via sistema de registro de B.O.s a qual “empresa – pública ou privada” pertence um suposto ator envolvido em alguma ocorrência.
Grupos se espalham nos estados com apoio do agronegócio
Nos últimos anos as patrulhas rurais vêm se espalhando pelas PMs dos estados brasileiros. Em Goiás, o batalhão rural foi criado em julho de 2019 por meio da lei nº 20.488/2019. A unidade especializada tem como objetivo potencializar as ações operacionais rurais no estado. Segundo o site da Polícia Militar do Goiás, funciona em parceria com sindicatos rurais e produtores, além da Federação da Agricultura e Pecuária do Goiás (Faeg) e do Fundo de Desenvolvimento da Pecuária em Goiás.
“Essas entidades também foram responsáveis pela reforma do espaço, que abriga o Centro de Comando e Controle Rural”, afirma a divulgação da tropa especializada no site da PM-GO. O texto aponta que a unidade especializada trará “tranquilidade e serenidade” ao agronegócio goiano e ao produtor rural. Em abril de 2019, o governador Ronaldo Caiado (DEM) participou da entrega de 50 caminhonetes para a patrulha em uma parceria com a Faeg.
No início de 2020, foi criada a Patrulha Rural da Polícia Militar em Eunápolis (BA), onde a empresa nórdica da celulose Veracel está envolvida em conflitos territoriais com aldeias dos povos Pataxó e Tupinambá. No oeste da Bahia, desde 2013, a PM realiza a Operação Safra de policiamento ostensivo na zona rural. “O que devemos ter em mente é que se o agronegócio vai bem, a economia também”, afirmou o então secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Barbosa, no lançamento da quinta edição do plano, em outubro de 2018.
A ouvidoria geral do estado da Bahia não respondeu ao pedido da reportagem, pela Lei de Acesso à Informação, sobre dados de policiais da patrulha rural envolvidos em ameaças contra camponeses.
‘É assustador’, diz promotor, ‘o Maranhão está virando barril de pólvora’
No Maranhão, foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa Estadual, em julho de 2019, um projeto de lei que estabelece o patrulhamento rural com o objetivo de “buscar soluções resolutivas para problemas de ordem pública na zona rural”. Haroldo Paiva de Brito, promotor agrário do Ministério Público do Maranhão, afirma que há notícias cada vez mais frequentes do aumento de milícias em diversas regiões do interior do estado.
“É bem volumoso mesmo, assustador, o Maranhão está virando barril de pólvora”, afirmou. Porém, o promotor não tem informações sobre a atuação da Patrulha Rural no estado. “O que sei são casos isolados de PMs atuando a mando de empresários e fazendeiros para expulsar camponeses”.
O advogado Sérgio Barros, que representa a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema) na região dos Cocais e do baixo sertão maranhense, revela que os fazendeiros têm cada vez mais feito “uso descarado da PM e da polícia civil para amedrontar lavradores no estado”. Barros diz que, “sem dúvida nenhuma” a milícia no campo do Maranhão cresceu nos primeiros anos do governo Jair Bolsonaro.
“O caso mais visível que tive conhecimento aconteceu em Matões, onde delegado e forças da PM foram à comunidade tradicional sem nenhuma ordem judicial e acompanhados de um fazendeiro para pressionar os camponeses”, afirma. A Secretaria de Segurança Pública do Maranhão não respondeu ao pedido da reportagem, novamente pela LAI, sobre o envolvimento de policiais da patrulha rural em ameaças de camponeses.
Projeto em Ribeirão Preto discute segurança e cana-de-açúcar
No interior paulista, no segundo semestre de 2020, o Sindicato Rural de Nuporanga, na região metropolitana de Ribeirão Preto, criou o Projeto Patrulha Rural, em parceria com a prefeitura e com a Polícia Militar local. No evento de inauguração, a produção de cana-de-açúcar, uma das principais culturas da região, também foi tema discutido entre os palestrantes. A SSP-SP respondeu ao pedido de LAI sobre B.O.s envolvendo policiais da Patrulha Rural afirmando que não há como sistematizar os supostos infratores na base de boletins de ocorrência.
Os demais estados que compõem o Cerrado também possuem atuação de tropas rurais. No Mato Grosso do Sul, o modelo da Patrulha Rural do município de Paranaíba envolve o monitoramento de propriedades rurais através de placas indicativas de “área monitorada” e georeferenciamento. Ele começou a ser expandido para diferentes municípios do estado em fevereiro de 2020.
“Voluntariamente, os proprietários rurais, funcionários, veículos e maquinários da propriedade rural são cadastrados num aplicativo que alimenta um banco de dados que subsidia as ações dos patrulheiros rurais”, informou uma reportagem da JPNews sobre a expansão do modelo, homologado e institucionalizado pela PM do estado. A SSP do MS afirmou não haver nenhum B.O. que tenha policiais das patrulhas rurais como supostos infratores.
A SSP do Piauí, estado que participa e sedia há alguns anos módulos e estágios de patrulhamento rural na sua PM, não respondeu ao pedido da reportagem pela Lei de Acesso à Informação. A SSP de Minas Gerais, primeiro estado a implementar tropas de Patrulha Rural, no início dos anos 2000, respondeu que o pedido da reportagem foi “genérico” e que seria necessário “vasto esforço” para levantar denúncias envolvendo policiais da força.
PATRULHA RURAL DO MT PARTICIPA DE EVENTO ORGANIZADO PELA CNA
O Mato Grosso foi um dos primeiros estados no Brasil a criar a patrulha rural na Polícia Militar. A tropa teve início no município de Rondonópolis. De acordo com o site da Polícia Militar do Mato Grosso, ações preventivas e ostensivas realizadas pelo patrulhamento específico foram iniciadas em 2014 e aprimoradas em 2017 por meio do 4º Comando Regional em Rondonópolis.
Em 2019, a PM do estado foi convidada para participar do 2º Painel sobre Segurança Rural, organizado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), em Brasília. O painel reuniu especialistas das Polícias Militares de outros 14 estados e do Distrito Federal. Na ocasião, o comandante do 5º Batalhão da Polícia Militar de Rondonópolis e da 14ª Companhia Independente de Força Tática, tenente-coronel Gleber Cândido Moreno, afirmou que o patrulhamento rural de Rondonópolis levou à queda de índices de criminalidade.
A percepção de movimentos e organizações que trabalham com a população camponesa no Mato Grosso é outra. O relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela que existem 564 conflitos entre povos tradicionais e o agronegócio no Mato Grosso, envolvendo 63.525 famílias.
Em Rondonópolis está localizada a Terra Indígena (TI) Tadarimana, na qual vivem 165 famílias do povo Bororo em 10 mil hectares homologados em 1991. Os Bororo sofrem com investidas do agronegócio sobre seu território. No ano passado eles enfrentaram incêndios criminosos que, segundo o relatório da CPT, afetaram “de forma drástica” a vida da população.
Informações da CPT do Mato Grosso revelam que a “institucionalização da pistolagem” também é cada vez maior no estado. Um agente da Comissão que não quis se identificar, com medo de represálias, explica:
— As patrulhas rurais são mais um maquinário perverso para o uso do poder para o latifúndio privado, fazendo uso do aparelho de segurança pública dos estados para fins privados de um grupo. Com a articulação dos sindicatos patronais, dos atores do agronegócio, ao invés de usar um carro particular, gasolina e funcionários da fazenda você usa uma viatura e um servidor público da Secretaria de Segurança Pública dos Estados para fazer a segurança da fazenda com todo o amparo legal e financiado com dinheiro público com fins privados.
“PMs comem e dormem nas propriedades”
De acordo com o agente, durante o patrulhamento em grandes fazendas, policiais militares “comem, bebem e dormem” dentro dessas propriedades. “Tudo indica que recebem um benefício deles também”, afirma.
Em março de 2021, o governo do Mato Grosso anunciou o investimento de R$ 35 milhões na Patrulha Rural da Polícia Militar do estado. De acordo com o governo, a quantia seria investida em veículos, uniformes adaptáveis ao policiamento especializado e compra de equipamentos mais modernos para expandir a atuação dos policiais “e garantir segurança aos produtores rurais, sindicatos do setor agrícola, pequenos produtores e moradores da zona rural do estado”.
Em resposta ao pedido da reportagem, por LAI, a SSP-MT mandou um relatório que contabiliza 11.118 operações de patrulhamento rural entre janeiro de 2020 e maio de 2021 e informou que esse número começou a ser catalogado apenas no ano passado. A SSP e a PM do Mato Grosso ignoraram a informação solicitada pela reportagem e não enviaram nenhum dado ou posicionamento sobre B.Os. que acusam policiais das patrulhas rurais.
Camponês relata pressões da Patrulha no Distrito Federal
O Distrito Federal foi a única unidade federativa que respondeu à demanda do De Olho nos Ruralistas de forma conclusiva, apresentando um único B.O., lavrado em novembro de 2018, que denuncia crime de ameaça, injúria e lesão corporal praticado por três policiais do Batalhão Policial Rural (BPRural) contra um jovem de 23 anos em Ceilândia.
A pesquisa feita pela SSP do DF, no entanto, sugere subnotificação. Philip Carvalho da Cunha Leite, presidente da organização Vida e Juventude, que executa o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Distrito Federal, sabe de pelo menos mais um caso em que o Batalhão da Patrulha Rural (BPRural) ameaçou camponeses. Ele próprio foi uma das vítimas, na região do Incra 09, também em Ceilândia.
Leite é assentado da reforma agrária no assentamento Sete Estrelas, área rural de Ceilândia. Mesmo com autorização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para acamparem na área da União, as famílias enfrentaram um processo intenso e conflituoso com Alair Gonzaga do Amaral, síndico de um condomínio local, o Monte Verde, entre 2015 e 2016. Os camponeses eram constantemente pressionados pelo BPRural a desistirem de ocupar a área.
A reportagem tentou entrar em contato com Alair e com a cooperativa Monte Verde, mas os três números de telefones disponíveis na internet não estão mais ativos.
“Ele era considerado poderoso, com muita articulação com a polícia”, afirma Leite. “Policiais moravam no mesmo condomínio que esse grileiro, ele os incitava a pressionar nossa comunidade, dizendo que a gente tinha que abandonar a ocupação de terras”. Os camponeses reportaram as intimidações ao Incra e denunciaram a situação na hoje extinta Ouvidoria Agrária Nacional.
Em 2016, ainda no processo de luta pela demarcação do Sete Estrelas, Leite chegou a ser ameaçado por um tenente da PM em frente do delegado que comandava a 24ª DP da Polícia Civil de Ceilândia:
— O policial olhou para o meu rosto e disse: “Você vai me encontrar por aí”. Perguntei pro delegado se podia esse tipo de ameaça e o delegado respondeu: “Eu não vi nada”.
O acobertamento pela polícia de ameaças e violências cometidas no meio rural no contexto de conflitos agrários é praxe, segundo Leite: “Quando não é uma ameaça diretamente feita pelo policial, mas por um fazendeiro, capanga, ou gestor público, a polícia frequentemente acoberta”.
Com base na experiência e dados coletados durante mais de uma década de execução dos programas de proteção de defensores de direitos humanos, a organização Vida e Juventude tem dossiês de informações sobre ameaças cometidas por policiais contra militantes da reforma agrária no país.
“Temos vários B.Os de defensores de direitos humanos ameaçados pela polícia” explica o presidente da organização. “O que mais acontece no interior do Brasil são grupos econômicos robustos do agronegócio utilizando do poder econômico para comprar policiais e forças de segurança para que elas defendam o capital, a fazenda, os bens, e não as pessoas”.
Segundo ele, os militantes do direito à terra e território são os mais ameaçados por policiais, entre todos os defensores de direitos humanos, ativistas de diferentes causas, acompanhados pelo programa. Leite acredita que o crescimento das patrulhas rurais e sua vinculação aos sindicatos rurais provocará um aumento desse tipo de violência: “É muito ruim misturar interesses econômicos e particulares com interesses públicos, sobretudo no que tange a segurança pública”.
Ele diz que quando o fazendeiro se utiliza dessas patrulhas não é pra se defender, e sim para defender sua propriedade, por exemplo de assentados da reforma agrária que resolvam fazer uma retomada:
— Se você tem uma parceria entre agronegócio e uma patrulha rural, obviamente a patrulha não vai atender os interesses das comunidades que estão exigindo a reforma agrária, dos indígenas, dos quilombolas. Vai sempre defender um lado porque é uma instituição instrumentalizada por um segmento da sociedade.
Julia Dolce é jornalista investigativa, com atuação na área socioambiental.
Foto principal (Esequias Araújo/Governo do Tocantins): governador Mauro Carlesse durante formatura de policiais para a Patrulha Rural