As autoridades não investigaram os autores das invasões do ano passado e o assentamento foi alvo de novo ataque em setembro deste ano.
(Por Moisés Sarraf - Amazônia Real / Foto: PDS Virola Jatobá, em Anapu/Associação VJ)
Nesta terça-feira, 23 de outubro, completa um mês que alojamentos e toras de madeira retiradas de atividade de plano de manejo florestal no assentamento do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Virola-Jatobá, zona rural do município de Anapu (PA), foram alvo de um incêndio criminoso e os responsáveis continuam na impunidade. Segundo os assentados, o ataque teria sido uma retaliação depois que invasores, entre eles fazendeiros, foram retirados da área em cumprimento a mandado de reintegração de posse da Justiça Federal, executado nos dias 19 e 20 do mês passado.
O Virola-Jatobá fica ao lado do PDS Esperança, onde a missionária norte-americana Dorothy Stang foi assassinada, em 2005, a mando de fazendeiros. Para os moradores, o acirramento do conflito é resultado da ocupação irregular que começou em 15 de novembro de 2017. Na ocasião, o assentamento foi invadido por cerca de 200 homens, entre grileiros e madeireiros ilegais. Armados, eles demarcaram lotes de terra medindo de 100 a 200 hectares, e estão oferecendo a posseiros.
À época das invasões, os moradores do PDS Virola-Jatobá estavam no acampamento, onde extraíam espécies vegetais que seriam comercializadas em 2018. “Nós ainda ficamos lá uns 30 dias. Ficaram ameaçando a gente pra sair. Uns iam lá falar que era pra sair. Nós saímos, estávamos em seis pessoas. Não tem conversa com eles”, disse um representante da Associação Virola-Jatobá, que preferiu não se identificar por receio de ameaças.
“Esse povo que entrou não quer manter a floresta de pé. Tem outra perspectiva. É desmatar pra fazer capim e depois vender a terra.” Já àquela época, havia ameaças de incêndio nos alojamentos da comunidade, conforme publicou a agência Amazônia Real.
No PDS Virola-Jatobá, dentre outras atividades, os assentados realizam a extração de madeira a partir do projeto de manejo, o que significa que há “pesquisa de compradores, reconhecimento, pra saber se são legais”, conta o assentado.
O representante da associação disse que a madeira que foi queimada já tinha comprador e o dinheiro obtido seria revestido a um novo inventário da floresta a ser manejada, totalizando 500 hectares, além de um percentual a ser investido na saúde da comunidade e melhorias de estradas. Segundo ele, os valores remanescentes seriam rateados entre as famílias, o que totalizaria cerca de R$ 5 mil para cada uma, resultado da extração de espécies como angelim vermelho, maçaranduba, cumaru e jatobá. O prejuízo chega a R$ 1 milhão.
Com um total de 23.558 hectares, o PDS Virola-Jatobá fica na vicinal do km 120 da BR-230, sentido Altamira-Anapu, e tem 170 famílias. A 80 km da zona urbana de Anapu, o projeto tem como objetivo aliar reforma agrária à proteção ambiental. Assentados dizem que as invasões começaram ainda em novembro de 2017. “Chegaram, abriram poucas clareiras. Naquele período, tinha pouco desmate”, conta um morador, que também não quis se identificar na reportagem. “O desmatamento começou mesmo no verão, no mês de junho.” Ele contabilizou pelo menos 80 invasores.
Histórico de violência
Apesar da invasão do PDS Virola-Jatobá ter ocorrido em novembro do ano passado, houve uma “demora muito grande para que o juiz emitisse parecer sobre o caso, somente em maio foi emitido em função de vários trâmites”, afirma Roberto Porro, pesquisador da Embrapa da Amazônia Oriental, que atua no projeto de manejo do PDS. “E, mesmo após a emissão, os oficiais da Justiça Federal só puderam levar essa decisão no final do mês de julho”, afirmou.
Com a notificação, foi dado o prazo de 30 dias para a saída dos invasores. Na ocasião, diz Porro, os oficiais de justiça “confirmaram que os invasores disseram que não iam sair de forma alguma”.
Segundo certidão sobre a reintegração de posse, assinada pelos três oficiais de justiça que acompanharam a execução do mandado, verificou-se “grandes áreas desmatadas, com quantidades incalculáveis de toras de madeira irretocavelmente cortadas, prontas para a retirada”. Ainda segundo os oficiais de justiça, eles se depararam com “um grande aglomerado de ocupantes ilegais”, que informaram haver ainda 200 famílias vivendo em barracões em áreas de floresta com acesso a pé, dentro do PDS.
Ao comunicarem a decisão da justiça, os oficiais foram contestados pelas famílias que ocupavam a área.
“Muitos deles, a exemplo do Sr. Crispim Conceição da Silva, o qual nos informou ser um dos líderes daquele movimento, nos informaram que foram ludibriados por pessoas de prenomes Domingos e Fonseca”, relata a certidão. Aos trabalhadores, teria sido dito que poderiam residir na região sob argumentos de que a “área é muito grande”, “o uso da terra seria para própria sobrevivência” e, ainda, de “existem pessoas em Brasília, um Senador, que resolveria a permanência deles ali”.
Ainda segundo relato dos trabalhadores invasores, eles estavam pagando cotas mensais de R$ 200 e R$ 750 para poder adentrar e permanecer no PDS Virola-Jatobá. Os trabalhadores retirados da área foram conduzidos em ônibus fornecidos pelo Incra para uma casa de apoio cedida pela prefeitura da Anapu. Cerca de 20 trabalhadores, entre adultos e crianças, foram alocados na casa com alimentação garantida por apenas dois dias.
Com apoio da Polícia Militar e da Polícia Federal, a reintegração de posse foi executada nos dias 19 e 20. Naqueles dias, moradores do PDS entraram em contato com pesquisadores da UFPA e da Embrapa para a retomada do projeto de manejo, mas dois dias depois, porém, relataram o ataque às áreas do projeto. “O desfecho foi o pior possível para um caso que já vinha se anunciado como muito mal conduzido”, avalia Porro.
Quem são os invasores?
Para Roberto Porro, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, o caso recente do PDS Virola-Jatobá envolve trabalhadores rurais e fazendeiros da região. Segundo ele, que atua no plano de manejo florestal comunitário do PDS, foram veiculados anúncios em rádios de municípios vizinhos, como em Novo Repartimento, informando que havia terras disponíveis na área do PDS.
“Há trabalhadores rurais que não concordam com a proposta do PDS e que acabam sendo massa de manobra de gente mais poderosa que se beneficia da inconsistência da ação do Estado”, avalia Porro. Segundo ele, trabalhadores rurais, então, eram incentivados a invadir as terras e um intermediário cobrava taxas para a ocupação das áreas. O objetivo final é que as terras sejam vendidas a fazendeiros e madeireiros.
Ainda segundo Porro, há um mercado de terras mirando a área do PDS que totaliza “quase 30 mil hectares com espécies de muito valor”. Ele afirma que não há provas para apontar quem são os mandantes, mas “provavelmente gente com condições financeiras para ocupar a terra e tirar madeira”. Para ele, o acirramento do conflito é resultado da falta de atendimento ao PDS nos últimos três anos. “Nos últimos anos, o Incra como gestor do assentamento, estava debilitado pela falta de recursos financeiros. E isso acabou gerando uma venda de direitos de usos de terras.”
Há um conflito de perspectivas na área do PDS, avalia Roberto Porro. O PDS em si é um assentamento que já faz parte da reforma agrária no Brasil. O Virola-Jatobá foi criado em 2002, “com essa característica de ser ambientalmente correto, com área comum para manejo florestal, reserva legal, respeitando a legislação ambiental”, explica Porro, ressaltando que o conflito se radicaliza uma vez que o Incra já não pode criar mais assentamentos na Amazônia.
“Por isso, existe toda uma situação de desconforto em relação àqueles que não aceitam as normas ambientais e no contexto de colonos, agricultores descapitalizados, sem assistência do Estado, quando se deparam com a situação em que não tem direito a outros assentamentos convencionais”, completa. Ele lembra ainda que a área do PDS é legalizada no Incra. Assim, o discurso dos invasores “requer esta terra como devoluta, sujeita a nova situação fundiária, mas ela já é destinada a assentamento como garantia de proteção ambiental”, diz Porro.
O que dizem as autoridades?
Segundo o delegado federal Yuri Oliveira, a Polícia Federal no município de Altamira não foi comunicada formalmente sobre o incêndio no PDS, nem pelo Incra nem por moradores do projeto. No dia 28 de outubro, ele disse que foi acionado pela Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos sobre possível violação na região. “Entrei em contato com delegado local e superintendente da Polícia Civil e fui informado de que não houve nenhuma ocorrência com relação a agressão, ameaça, na delegacia de Anapu”, informou o delegado Yuri.
Apesar disso, ele afirma que soube do assunto apenas por meio de rumores que circulam no município de Altamira. “Pelo que entendi, houve reintegração de posse. Após isso, um grupo de pessoas voltou a invadir e construiu alguns barracos de lona. Diante disso, pessoas, que não se sabe quem, foram até o local e incendiaram as madeiras”, disse o delegado.
Sobre a atuação na reintegração de posse, Yuri Oliveira informou que foi delegada à PF a função de acompanhar os oficiais de justiça, mas não a manutenção da reintegração. Também há um inquérito em curso para apurar conflitos ocorridos em dezembro do ano passado na área do PDS Virola-Jatobá.
O Ministério Público Federal (MPF) acompanha o caso desde outubro do ano passado, quando fez uma visita ao PDS no intuito de “ouvir as demandas da Associação Virola-Jatobá e ter uma melhor noção da invasão que ocorreu no final de 2017”, informou a procuradoria da República, Patrícia Daros Xavier.
A visita constatou “a omissão flagrante do Incra em adotar medidas quanto à invasão e de comunicar às autoridades competentes (como a Polícia Federal, que possui competência para investigar o caso) quanto aos fatos que ocorreram no PDS e em outros assentamentos”, completou Patrícia Daros. Após a visita, houve reunião, em Altamira, “onde voltamos a cobrar a atuação, sobretudo do Incra para que adotasse medidas quanto a isso, reforçando também a importância da investigação criminal”.
Sobre o incêndio, a procuradora afirma que os danos ambientais e autoria dos delitos serão apurados pela Polícia Federal, apesar de não haver procedimento em aberto sobre o assunto na PF. Segundo Patrícia Daros, há uma dificuldade na resolução de questões fundiárias na região, “porque não temos um Incra forte, estruturado”.
Ainda segundo ela, “quem deveria comunicar acerca do retorno dos invasores seria o próprio Incra, afinal é o autor da ação e, principalmente, proprietário da área.”
Procurado pela reportagem, o Incra se limitou a informar, por meio de nota, que a Ouvidoria Agrária Nacional (OAN) participaria de duas reuniões, com órgãos envolvidos no conflito agrário, para tratar do assunto: em Belém, no último dia 4 de outubro, e em Altamira e Anapu, no dia 10. Ainda em nota, a assessoria de imprensa do Incra lamentou não poder dar mais detalhes sobre os eventos, uma vez que “tanto o ouvidor agrário nacional quanto seu substituto estão em viagem, em locais de difícil comunicação”.
Sobre a participação da Polícia Civil na reintegração de posse, a assessoria de imprensa do órgão informou em nota que a “situação não está sendo investigada pela Polícia Civil, mas sim pela Polícia Federal”. A PC reiterou que, “após a reintegração, não houve registros de fatos criminosos novos na Delegacia de Anapu”. Segundo a Polícia Civil, sobre o ataque, “apenas foi informado que incendiaram uma madeireira que estava no local e barracos de lona, que estavam no acampamento e que foram deixados na área pós a reintegração”. E, por fim, a nota diz que “não houve mais fatos posteriores a isso comunicados à Polícia Civil”.
A Polícia Militar, por sua vez, não respondeu até o fechamento desta reportagem.