A Comissão Pastoral da Terra no Mato Grosso (CPT-MT), mais uma vez e com muita preocupação, vem a público denunciar a situação de injustiça e desumanidade que estão sofrendo as famílias do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Nova Conquista II, onde residem 60 crianças/adolescentes de 0 a 14 anos; 10 jovens de 15 a 19 anos; 76 adultos e 32 idosos, no município de Novo Mundo (MT). O histórico de sofrimento e impunidade é longo e já demonstrado em diversas Notas da CPT. Aqui, queremos precisar, ainda que brevemente, a situação jurídica de direito dessas famílias, que não está sendo considerada, em função de fazendeiros que querem se apossar de uma grande área de terras da União.
(Imagens: Elizabete Flores)
Importante saber que a área em disputa já foi palco de uma das maiores libertações de pessoas em situação de trabalho escravo em Mato Grosso, com 139 trabalhadores libertados, como também palco de intensa destruição ambiental, principalmente desmatamento e garimpo, ou seja, uma área de intensa vulnerabilidade humana e ecológica.
Em relação ao processo, no dia 21 de janeiro de 2009, a Advocacia-Geral da União (AGU) propôs uma Ação Reivindicatória contra José Iris de Souza, sua esposa Maria Joelma Andrade Nunes, e Agropecuária Monjolinho para a retomada de uma área de mais de 9 mil hectares (Fazenda Recanto), situada dentro da Gleba Nhandú, que possui mais de 211 mil hectares, localizada no município de Novo Mundo (MT), visando obter a imissão na posse da área. Em sentença de 22 de março de 2017, o juízo de primeiro grau reconheceu a propriedade da área como sendo da União e antecipou a Tutela de 2.000 hectares para o assentamento das 96 famílias.
A AGU junta no processo documentos que comprovam que os réus não fazem jus à Regularização Fundiária, por não atenderem aos requisitos exigidos pelo ordenamento jurídico vigente, posto que os mesmos possuem diversos imóveis rurais, não residirem no imóvel e a fazenda possuir um elevado passivo ambiental. Também o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou no mesmo sentido, alegando ainda que o imóvel em questão “não cumpre a função social, por ser palco de exploração ilegal de minérios e da prática de trabalho escravo”.
Para agravar este cenário de conflitos, aparecem, ainda, outros supostos “ocupantes” (Geraldo Aires de Souza Nunes, Vanderley Alves da Silva, Geraldo Francisco de Morais e Gilberto Alves da Silva), que entraram com ações judiciais requerendo a área, acirrando ainda mais os problemas e as violências contra as famílias. Todos esses processos, após vistoria do INCRA, foram julgados improcedentes. Tal fato revela uma organização bem montada entre diversos fazendeiros no intuito de protelar o processo judicial e dificultar o acesso à terra pelas famílias.
Diante da persistência das famílias em reivindicar seus direitos, foi realizado em fevereiro deste ano um acordo entre União (AGU) e os embargantes, acordo este homologado pelo Juiz Federal da Comarca de Sinop, Murilo Mendes, para o assentamento dessas famílias. Com isso, criou-se o PDS, conforme Portaria nº. 607 de 18 de abril de 2018, e o INCRA cortou, demarcou e sorteou os lotes para as 96 famílias, que já estão lá residindo, produzindo alimentos e criando pequenos animais para o seu consumo e comercialização.
Mesmo diante disso, o fazendeiro Geraldo Francisco de Morais, conseguiu no Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região uma decisão favorável. No recurso apresentado, o fazendeiro não noticiou o acordo feito para o assentamento das famílias, como também omitiu a criação do PDS. Assusta a decisão da desembargadora Daniele Maranhão, que num recurso anterior de um dos fazendeiros (José Iris de Souza Nunes) negou o pedido, alegando o fato da União ser proprietária do imóvel e, agora, aceita o recurso do fazendeiro Geraldo Morais, em detrimento do direito coletivo das famílias na mesma área da União.
Há ainda o fato de que este mesmo fazendeiro alega no processo que tem a posse somente de 1.200ha (um mil e duzentos hectares). No entanto, a decisão da desembargadora suspende a execução da sentença de toda a área da Fazenda Recanto, qual seja, 9.658.8740 hectares. Assim, ela decide a favor do fazendeiro numa área muito maior do que o próprio exige, e emite ordem para o despejo das famílias que já construíram suas casas e plantam seus alimentos, impondo medo e inseguranças. Assim, nos questionamos sobre qual foi o parâmetro de Justiça que a magistrada utilizou?
Acompanhamos há 15 anos a luta incansável dessas famílias por um pedaço de terra numa das regiões mais violentas do país, dominada pelo latifúndio e pela grilagem de terras. Muitos já morreram no caminho, muitos, em situação de vulnerabilidade, passaram nesse período pela condição de escravo, passaram fome, frio e medo. Mas, mesmo assim, mantiveram fé, esperança e a certeza que um dia conseguiriam a terra, por isso continuaram na luta por esse direito. E a consequência dessa luta foram violências físicas e emocionais, ameaças de morte, perseguição, torturas, queima de barracos, envenenamento por agrotóxicos, etc. Hoje, estas famílias, em mutirão, estão recuperando as nascentes que foram degradadas (são mais de 15 nascentes totalmente destruídas) pelos antigos detentores da área, produzindo mudas para essa recuperação, plantando feijão, milho, mandioca, abacaxi, melão, pepino, abóbora, melancia (duas famílias plantaram manualmente mais de 1.600 pés), banana, diversas plantas frutíferas, além da criação de pequenos animais.
Não queremos acreditar que, após estarem vivendo a felicidade da terra conquistada, essas famílias retornarão para barracos na beira das estradas.
Não queremos acreditar que o Judiciário, responsável por fazer valer o direito e a Justiça aos cidadãos e cidadãs, seja o defensor de alguns fazendeiros grileiros de terras da União que, de acordo a nossa Constituição, devem ser destinadas à Reforma Agrária.
Queremos sim Vida plena a estas crianças, a estes jovens e a este povo que só sabe viver na terra, que já fizeram brotar a semente e o fruto onde só havia destruição e violência.
Cuiabá-MT, 18 de junho de 2018.