Entidades apontam que “marco específico de direitos coletivos dos povos indígenas” deve ser respeitado e pedem esclarecimento sobre incidente em Boa Vista (RR).
(Fonte: Cimi | Imagem: Elaine Moreira)
Organizações da sociedade civil emitiram uma nota sobre as medidas de acolhimento e proteção dos indígenas dos povos Warao e E’ñepá, provenientes da Venezuela. As entidades apontam que mais de 700 pessoas de ambos os povos estão atualmente abrigadas em um ginásio na capital de Roraima, Boa Vista.
A trajetória de migração destes povos iniciou em 2015 e, segundo as entidades, até agora o Estado brasileiro “resiste em reconhecer as famílias Warao e E’ñepá como povos indígenas sujeitos de direitos específicos e coletivos reconhecidos na Constituição Federal do Brasil e em instrumentos de direito internacional”.
As organizações que assinam a nota solicitam mais transparência e diálogo com a sociedade civil por parte das instituições encarregadas da gestão do abrigo e o respeito aos direitos específicos dos povos indígenas em situação de migração.
“Toda ação do Estado em relação a estas famílias deve pautar-se, não apenas pelas normas próprias relacionadas com a mobilidade humana e a migração, mas também pelo marco específico de direitos coletivos dos povos indígenas”
Também destacam que o direito – reconhecido internacionalmente – de Consulta Livre, Prévia e Informada dos povos Warao e E’ñepá deve ser respeitado, e pedem esclarecimentos sobre uma situação de conflito entre os indígenas e membros do Exército, da Polícia Militar e da Polícia Civil, que resultou na expulsão de três indígenas do abrigo, em abril.
Confira a nota na íntegra:
Nota sobre as medidas de acolhida e proteção aos direitos dos povos indígenas em situação de migração transfronteiriça no estado de Roraima-Brasil
Mais de setecentas pessoas indígenas, dos povos Warao e E’ñepá, procedentes das regiões de Delta Amacuro e Estado Bolívar na Venezuela, encontram-se atualmente abrigadas no espaço do Ginásio de Pintolândia, na cidade de Boa Vista-RR, após uma longa trajetória migratória iniciada em 2015. As instituições Secretaria de Estado para o Bem-estar Social-SETRABES, Fraternidade Internacional e Exército Brasileiro são, neste momento, responsáveis pela administração, gestão econômica e infraestrutura logística do Ginásio habilitado como Abrigo. No entanto, esta ação de acolhida e proteção das famílias Warao e E’ñepá só foi possível pela determinação e mobilização, já nos primeiros momentos, de entidades da sociedade civil brasileira.
Depois de mais de dois anos de presença no país, o Estado brasileiro, em suas diversas esferas administrativas, resiste ainda em reconhecer as famílias Warao e E’ñepá como povos indígenas sujeitos de direitos específicos e coletivos reconhecidos na Constituição Federal do Brasil e em instrumentos de direito internacional, como a Convenção 169 da OIT e a Declaração de Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Entendemos que toda ação do Estado em relação a estas famílias, dentro e fora do Abrigo, deve pautar-se, não apenas pelas normas próprias relacionadas com a mobilidade humana e a migração, mas também pelo marco específico de direitos coletivos dos povos indígenas, incluindo, entre outros, os direitos: à consulta previa, livre e informada e à participação nas decisões que lhes afetem diretamente; a decidir livremente suas próprias prioridades; e a conservar seus costumes e instituições próprias. Nenhum destes direitos específicos pode ser desconsiderado, diminuído ou negado pela situação derivada do livre exercício do direito à mobilidade e à migração transfronteiriça.
Fatos acontecidos no dia 15 de abril ao lado das dependências do Ginásio de Pintolândia e na Delegacia do 5ª Distrito Policial, envolvendo três indígenas Warao e membros do Exército, da Polícia Militar e da Polícia Civil, ainda não suficientemente apurados, deixaram lesões corporais em um dos indígenas e motivaram, paradoxalmente, a expulsão dos três indígenas do Abrigo. Esta decisão, que significa sua exclusão da condição de abrigados passando a ficar sem proteção na rua e a consequente separação de suas famílias, nos deixa gravemente preocupados. Entretanto, diversos relatos de outros indígenas Warao confirmam que o ambiente dentro do Abrigo e a relação entre representantes das entidades responsáveis e os Warao ficou tensionada nos dias seguintes ao episódio. Além disso, entidades sociais foram impedidas de entrar ao Abrigo em diversas ocasiões nos últimos dias.
Diante desta situação, solicitamos:
A imediata e efetiva apuração dos fatos acontecidos no dia 15 de abril, a verificação dos relatos em relação à convivência dentro do Abrigo de Pintolândia e a proteção e reunificação familiar dos três indígenas atualmente expulsos;
A necessária transparência na definição das funções e competências de cada uma das três instituições que atuam, neste momento, dentro do Ginásio habilitado como Abrigo, bem como da gestão dos recursos públicos especificamente destinados à ação de acolhida e proteção no Abrigo;
A garantia e implementação efetiva dos direitos específicos e coletivos dos povos indígenas Warao e E’ñepá, assegurando-lhes o direito à consulta e à participação nas decisões sobre quaisquer medidas administrativas que lhes afetem diretamente, bem como o direito às próprias formas de organização social;
A garantia de uma gestão do Abrigo por parte do Poder Público pautada pela ação humanitária e a garantia dos direitos, a participação das famílias acolhidas e o diálogo com as entidades da sociedade civil que de forma organizada podem contribuir com as ações, assegurando também a devida formação e preparação específica a todas as pessoas, voluntárias ou contratadas, de entidades públicas ou particulares, que participem na gestão e administração do Abrigo.
A necessidade de uma discussão ampla sobre os modelos de abrigamento envolvendo os povos indígenas neste processo migratório, tema que já estava presente desde a primeira audiência pública realizada em Boa Vista em 2017 e em pareceres técnicos produzidos pelo MPF. O modelo do Abrigo atual reúne um grande número de pessoas, fato incomum entre as comunidades indígenas Warao e E’ñepá, que possuem formas de organização e convivência diferenciadas e pautadas por laços de parentesco.
Assinam:
Associação Brasileira de Antropologia – ABA
Cáritas Diocesana Roraima
Cátedra Sérgio Vieira de Mello / UFRR
Centro Migrações e Direitos Humanos – CMDH
Centro Estudos Bíblicos – CEBI
Coletivo Rede Migração Rio
Comissão de Assuntos Indígenas – CAI/ABA
Comissão Pastoral da Terra – CPT Roraima
Conectas Direitos Humanos
Conferência Religiosos Brasil – CRB Núcleo Roraima
Conselho Indígena de Roraima – CIR
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Conselho Regional Psicologia – CRP 20
Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras – GEIFRON/UFRR
Instituto Autonomia – INAU
Laboratório de Estudos e Pesquisas em movimentos indígenas, política indigenista e indigenismo – LAEPI/UnB
Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas – OBIND/UnB
Pastoral Familiar Diocese de Roraima
Pastoral Indigenista Diocese de Roraima
Pastoral da Juventude Diocese de Roraima
Pastoral do Migrante Diocese de Roraima
Pastoral Universitária Diocese de Roraima
Projeto Apoio aos Refugiados em Roraima / UFRR
Seção Sindical dos Professores da Universidade Federal de Roraima – SESDUF
Serviço Jesuíta Migrantes e Refugiados – SJMR
Rede Um Grito pela Vida Roraima