Com representantes das 76 famílias da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira e das 20 famílias da comunidade de Santa Fé, foi realizada uma Audiência Pública organizada pela Câmara Municipal do município de Costa Marques, em Rondônia, no dia 26 de janeiro de 2018, para denunciar as violações de direitos dessas pessoas. O evento contou também com a presença de autoridades municipais, estaduais e federais, como Antônio de Oliveira, responsável nacional pela demarcação de territórios quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e Juvenal Araújo Junior, secretário especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) do Ministério de Direitos Humanos.
(Fonte/Imagem: CPT Rondônia)
O presidente da Associação Quilombola do Forte Príncipe da Beira e membros das comunidades relataram as dificuldades impostas pelo Exército, como a superposição da área territorial tradicional da comunidade quilombola do Forte. O Exército colocou uma corrente limitando o acesso das pessoas ao porto do Rio Guaporé, que foi construído pela comunidade do Forte para receber a Romaria do Divino. Os quilombolas sempre são revistados, impedidos de transportar grandes cargas e de ir com veículos até às margens do rio, mesmo os equipamentos de pesca dos membros das comunidades não são permitidos e as pessoas têm dificuldade para banharem no rio. O Exército tenta submeter os moradores a todo tipo de fiscalização, inclusive dificultando a venda de produtos extrativistas, como a Castanha-do-Pará, que este ano teve uma boa colheita. Inicialmente, o comandante do Exército pretendia restringir a atividade tradicional a uma saca por família, depois passou a exigir pagamento das famílias, e, por último, impediu a entrada de compradores de castanha.
Há anos que o Exército dificulta a manutenção das roças tradicionais e, por duas vezes, impediu o trator da Prefeitura de Costa Marques de preparar as roças das comunidades. Uma consulta foi feita à Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEDAM) em setembro de 2017 sobre a autorização ambiental das atividades tradicionais, porém, até o momento, não houve resposta, o que deixa as famílias sem exercer sua agricultura. As famílias quilombolas denunciam também que para construir qualquer edificação e para reformar as casas precisam de autorização do Exército. Outra denúncia, conforme a comunidade do Forte, é que o Exército tentou impedir a instalação de aparelhos da academia popular, obtidos por meio de uma Emenda Parlamentar.
No âmbito da saúde, a comunidade depende do Pelotão por causa de uma antiga parceria com a Prefeitura, que delegou ao mesmo os recursos para atender os quilombolas. A comunidade já solicitou a construção de um posto de saúde próprio, o que ainda não foi feito. Assim, o Exército, que tem um médico e enfermeiros no Pelotão do Forte, atende a comunidade apenas em situações de extrema emergência e restringe a quantidade de consultas, realizadas apenas dois dias por semana. E na época de seca, a comunidade sofre com o abastecimento de água e foi impedida de furar poços artesianos.
A cerca do Quartel do Exército foi avançando ao longo dos tempos, o que deixou a escola, posto de saúde, quadra de esportes, e o museu, dentro da área do Pelotão, dificultando o acesso de alunos e professores. A comunidade também é impedida de realizar atividade hoteleira e atendimento aos numerosos turistas que se deslocam para a região para conhecer a Real Fortaleza do Forte Príncipe da Beira – principal monumento histórico da presença portuguesa em Rondônia. No mesmo local onde foram atendidas autoridades e representantes da comitiva da SEPIR, poucos dias depois da Audiência, moradores relataram que fregueses de uma lanchonete foram obrigados a abandonar o local por um oficial do Quartel.
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Foi consenso entre todos os presentes na Audiência Pública que a demarcação dos territórios da comunidade quilombola do Forte é a única solução para essas problemáticas. Porém, a Ação Cível que o Ministério Público Federal (MPF) move há três anos contra o Exército não tem avançado na Justiça Federal de Ji-Paraná. Entra e sai juiz e procurador federal, e o assunto permanece sem decisão, pois o INCRA é impedido de entrar na área e realizar o estudo antropológico (IRTD) da Comunidade do Forte. As autoridades presentes na Audiência apresentaram a proposta de, junto à Casa Civil e o Ministério da Defesa, pressionar para que a ação movida pelo MPF seja julgada rapidamente. O representante do Incra Nacional, Antônio de Oliveira, anunciou que verificará com a Procuradoria do Incra os meios jurídicos para conseguir a autorização. Já o secretário nacional da SEPPIR também se comprometeu a conversar sobre o assunto com o ministro da Defesa.
A titulação do território quilombola abre espaço para as políticas públicas. Contudo, foi explicado que a certificação como comunidade remanescente de quilombo, outorgada pela Fundação Palmares, já confere direito nas comunidades quilombolas de ser atendidos por programas como o PRONERA e outros benefícios dos assentamentos de reforma agrária. Segundo o secretário da SEPPIR, a Secretaria de Educação de Rondônia (SEDUC) já foi notificada para a implementação das diretrizes de educação quilombola no estado. Essas diretrizes orientam a permanência da escola na comunidade e de seus professores, o que já foi aceito e garantido pelos representantes da Prefeitura de Costa Marques, o que foi considerado uma importante vitória da comunidade, que há anos via ameaçada a permanência da escola e dos professores na Comunidade do Forte.
Na Comunidade da Santa Fé, o Incra anunciou que já foi emitido o título da área da comunidade, e está sendo realizado o processo de desintrusão de terceiros, que têm chácaras de forma indevida no território quilombola. Após terem sido notificados, representantes do Incra anunciaram que a autarquia está recorrendo à Justiça para reintegrar estas terras em favor dos quilombolas, despejando os posseiros de má fé que se negam a deixar a área da comunidade, pois o órgão quer entregar o título da comunidade livre de intrusos. Mesmo assim, lideranças da comunidade, como Dona Mafalda, relataram as dificuldades que continuam a enfrentar na área da saúde e outras para serem atendidas pelas políticas públicas oferecidas às comunidades quilombolas.
Agentes da Comissão Pastoral da Terra em Rondônia (CPT-RO) também participaram da Audiência Pública e manifestaram apoio às comunidades quilombolas. A equipe de agroecologia da Pastoral também procura apoiar as atividades de pesca e de agricultura das comunidades. Os mesmos também visitaram a única comunidade quilombola titulada até o momento em Rondônia, a Comunidade de Jesus, situada às margens do Rio São Miguel, no município de São Miguel do Guaporé, que este ano foi contemplada com a chegada da energia elétrica. O Vale do Guaporé continua a escrever a história de uma região de resistência, liberdade e dignidade para os afrodescendentes, como tem sido durante séculos, em tempos da liderança legendária de Tereza do Quariterê, muito antes da Lei Áurea vigorar no Brasil.