COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Famílias que viviam nas chamadas “terras livres” de Minas Gerais lutam para retomar áreas que foram judicialmente apropriadas por fazendas em práticas das elites locais desde a república nas décadas de 1920 e 1930, como mostra pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP).

 

(Fonte: Jessica Mota – Repórter Brasil / Fotos: Gui Gomes, do Vale das Cancelas-MG). 

Um fenômeno peculiar atinge o norte de Minas Gerais, lá onde vive o povo contado por Guimarães Rosa: a grilagem judicial. A prática de falsificar documentos e processos para transformar terras públicas em privadas, identificada no local pela pesquisadora Sandra Gonçalves Costa, da Universidade de São Paulo, remonta as décadas de 1920 e 1930. Foi quando elites locais, com acesso ao aparato jurídico e burocrático da recém-criada República brasileira, começaram a titular como privadas as “terras livres” dos Gerais. A prática se estendeu pelo século seguinte.

O uso da expressão “terras livres” diz muito. Eram livres as terras porque não tinham cercas e eram de uso comum das comunidades camponesas. Eram livres as comunidades que viviam em uma relação de interdependência umas com as outras e com o Cerrado. São as comunidades geraizeiras, que hoje decidiram retomar seus territórios. Nas chapadas, lugares mais altos, criam o gado e outros animais soltos. É onde também buscam frutos, plantas medicinais e caça. Nas margens dos pequenos cursos de água, plantam.

Na região do Vale das Cancelas, em 13 processos analisados, de um total de 36 referentes à divisão e demarcação nas terras da Comarca de Grão Mogol, a pesquisadora Sandra identificou mais de 1 milhão de hectares de terras públicas que se tornaram privadas.

Demorou ainda para que a expulsão batesse na porta da família de Lurdes da Costa, hoje com 55 anos. Ela lembra que uma empresa de reflorestamento estava atrás das suas terras. Era 1974, segundo conta. Foi durante o regime militar, entre as décadas de 1960 e 1980, que o governo de Minas Gerais, por meio de agências de incentivo, arrendou as terras de uso comum das comunidades geraizeiras para que empresas plantassem eucalipto com dinheiro público. Sob o nome de reflorestamento, as monoculturas destinavam-se para a produção de carvão para siderúrgicas, e estão presentes até hoje.

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Com a pressão, Lurdes, os cinco irmãos e os pais saíram fugidos da região de Grão Mogol. Foram morar nas ruas de Montes Claros. Lá, o pai desapareceu. Ela se separou da mãe e dos irmãos – só os reencontrou em 1981. Invisíveis e fugindo da violência, geraizeiros e geraizeiras perderam os laços com a terra da qual viviam. Perderam a liberdade e a paz.

No caminho de buscar entender os porquês da sua história, Lurdes retornou em 2006 para os Gerais, onde montou seu barraco e uma pequena roça, com criação de animais. Quis retomar o modo de vida que foi obrigada a deixar na infância e lutar pelo seu direito à terra.

Apropriação e retomada

Em inquérito civil, o Ministério Público Federal aponta apropriação privada de terras públicas de uso das comunidades geraizeiras a cinco empresas: a Florestas Rio Doce – empresa que Lurdes nomeia como responsável pela expulsão de sua família –, a Norflor Empreendimentos Agrícolas, a Floresta Minas Reflorestamento e a Rio Rancho Agropecuária. Essa última é de propriedade do ex-governador e ex-deputado federal por Minas em três legislaturas, Newton Cardoso, e seu filho Newton Cardoso Júnior, também deputado federal (PMDB-MG).

A apropriação também é identificada em projetos de mineração. Foi assim que Adair de Almeida, geraizeiro de 43 anos, soube que perderia as terras de seus pais, “sem direito a nada”. Como nos anos 1970, por volta de 2010 manipulações, ameaças e intimidações bateram à porta dele e de seus vizinhos. As comunidades geraizeiras se viram cada vez mais encurraladas. Sem a terra, o trabalho se destinou ao corte de cana e à colheita de café, no sul de Minas e em São Paulo, ou nos próprios empreendimentos criados.

Em uma luta contra a fome, a miséria e a seca, geraizeiros e geraizeiras do Vale das Cancelas decidiram iniciar a retomada das suas terras, quando o prazo de arrendamento concedido às empresas de eucalipto expirou. Em novembro de 2015, as comunidades realizaram a autodemarcação de seu território tradicional e declararam a proteção dos cerca de 228.000 hectares de Cerrado e de suas águas nos municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis, assim como da cultura de seu povo, dos costumes e das trocas realizadas.

Um ano depois, 120 famílias geraizeiras ocuparam uma área da Fazenda Buriti Pequeno, produtora de eucalipto, para pressionar por seus direitos.

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Ali, com a retomada das atividades tradicionais, Adair começa a ver a diferença: “Quando tem muito animal, a gente percebe que está voltando ao normal”, explica. A tensão não deixa de existir. No acampamento da comunidade São Francisco, área retomada em outubro de 2017, o enfrentamento se dá há anos com a empresa AJR Energética, da família do empresário João Lima Gel e do grupo Floresta Minas Empreendimentos. Agora, as comunidades são alvo de um processo de reintegração de posse que não se difere muito do que já foi levado a cabo num passado recente.

“Todos os dias as terras devolutas vêm sendo griladas por mineradoras e empresas de reflorestamento”, denuncia Adair. Além delas, a Diferencial Energia recebeu em 2017 a licença de instalação – sem consulta prévia, denunciam as comunidades geraizeiras – ao projeto da termelétrica de Grão Mogol, que gerará energia a partir do eucalipto fornecido pela Norflor. No mesmo ano, o governo de Minas regulamentou a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais. A luta não para e a próxima é para que a lei saia do papel.

Sobre as comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas:

Onde estão: norte de Minas Gerais.

Atividades: criação de gado solto nos Gerais, roçado, coleta de alimentos e plantas medicinais no Cerrado.

Por que lutam: pela retomada de seus territórios de uso tradicional, privatizados judicialmente.

Ameaças: a grilagem, monocultura de eucalipto e empresas de energia.

Como se organizam: ocupações das fazendas que se instalaram sobre seus territórios, movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens, apoio da Comissão Pastoral da Terra e articulações com outras comunidades e atores políticos.

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