A Fratelli Tutti, lançada em Assis, junto ao túmulo de São Francisco, no dia 3 de outubro de 2020, é uma encíclica forte na afirmação de uma fraternidade universal onde todos e todas devem caber. Por isso denuncia, com muita veemência, a cultura do descarte e da indiferença que grassam hoje fruto do capitalismo que tudo domina. E essa fraternidade universal, a amizade social é reforçada e inculcada a partir da parábola do Samaritano, que vê o ferido caído por terra e dele se aproxima. Trata-o sem perguntar quem era, de onde vinha, para onde ia. Simplesmente era um ser humano precisando de ajuda.
Antônio Canuto* / foto: Guilherme Cavalli
A Encíclica tratou da problemática da terra?
Logo no dia seguinte ao lançamento pensei ser importante fazer uma leitura atenta pontuando os temas sobre os quais a CPT historicamente se debruça. Sobretudo, o que a Encíclica trazia sobre a problemática da terra.
Imaginava encontrar nela temas abordados pelos papas anteriores. João XXIII, na Mater et Mgistra (1961), dedicou um capítulo inteiro aos problemas enfrentados pela agricultura.
O Papa Paulo VI, na Populorum Progressio (1967), no terceiro capítulo intitulado “Ação a Empreender”, refletiu foi sobre o Destino Universal dos Bens.
João Paulo II, na Laborem Exerces (1981), dedicou um longo item à reflexão sobre o Trabalho e a Propriedade. E na Centesimus Annus (1991) dedicou o capítulo IV a refletir sobre a Propriedade Privada e o destino Universal do Bens.
O Papa Bento XVI, na Caritas in Veritate (2009), no Capítulo II, “O Desenvolvimento Humano no Nosso Tempo”, ao tratar do problema da fome e de alguns instrumentos para combatê-la, afirma: “Ao mesmo tempo não deveria ser transcurada a questão de uma equitativa reforma agrária nos países em vias de desenvolvimento” (27).
Mas na Fratelli Tutti não encontrei nada que falasse diretamente dos problemas enfrentados pelos camponeses e camponesas na sua relação com a terra, como esperava, nem sequer há qualquer menção a eles.
Analisando, porém, em mais detalhes, foi possível encontrar os temas tratados pela CPT, esparsos nos oito capítulos da encíclica.
O tema que aparece em três contextos diferentes é o do Trabalho Escravo.
Aparece com mais destaque no capítulo I “As Sombras de um Mundo Fechado”. No número 24, o papa reconhece que apesar dos avanços havidos em acordos “para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenômeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.”. Atribui esta permanência a “uma concepção de pessoa humana que admite a possibilidade de tratá-la como um objeto”. Trata esta realidade como “aberração” que não tem limites, controlada por “organizações criminosas”.
Volta ao tema no final do capítulo II, “Um Estranho no Caminho”. O papa confessa:
“Às vezes deixa-me triste o fato de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência.” E constata que hoje “ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados, pela sua fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes”.
No capítulo V, dedicado a “A Política Melhor”, afirma no nº 189 que “Ainda estamos longe duma globalização dos direitos humanos mais essenciais”. E um desses direitos “que a política internacional não deveria continuar a tolerar é o tráfico de pessoas.”.
Os Movimentos Populares
Outro ponto caro à CPT, o dos Movimentos Populares, é abordado pelo Papa em dois momentos distintos, reproduzindo o que ele tem falado nos Encontros Mundiais dos Movimentos Populares, propostos pelo Vaticano.
No Capítulo III – “Pensar e Gerar um Mundo Mais Aberto”, o papa convoca a “Ir mais além” de si mesmo, acentua o valor único do amor e que é preciso criar sociedades abertas que integrem a todos. Neste contexto, ao tratar da Solidariedade afirma: “Os últimos, em geral, praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre quantos sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido, ou pelo menos tem grande vontade de esquecer.” ... Solidariedade: “É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais.”(116)
No capítulo V, ao tratar de “A Política Melhor” ele se opõe a “visões econômicas fechadas e monocromáticas” nas quais, “parece que não têm lugar, por exemplo, os Movimentos Populares que reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos”.
Ele então propõe que uma política melhor deve incluir “os movimentos populares”. Estes animarão “as estruturas de governos locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum”. Caracteriza os movimentos como “semeadores de mudanças” e como “poetas sociais” que “à sua maneira trabalham, propõem, promovem e libertam”. Com eles, será possível um desenvolvimento humano integral, que implica superar “a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto que reúna os povos”. Sem eles, “a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade.”(169)
Repropor a Função Social da Propriedade
As questões ligadas diretamente à terra, de certa forma, estão presentes no capítulo III “Pensar e Gerar um Mundo Aberto” ao tratar da função social da propriedade. Com muita ênfase sugere “Repropor a Função Social da Propriedade”. O Papa, nos números 118 a 120, afirma o primado da pessoa sobre a propriedade: “como comunidade, temos o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral”. Nada pode “justificar privilégios de alguns em detrimento dos direitos de todos”.
Possivelmente a grande novidade que o Papa Francisco introduz seja o conceito de que o direito de propriedade é um direito secundário: “O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática.”.
*Colaborador do Setor de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT.