COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 


 

 

 

 

Declaração de voto do MDB sobre o parecer  aprovado sobre a Lei de Anistia

“Ficou exclusivamente a proposta oficial” - Senador Teotônio Vilela 

A AUTO-ANISTIA E A FARSA DE UM ACORDO NACIONAL

    O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, afirma que a Lei da Anistia "foi resultado de um longo debate nacional", ressaltando a participação da OAB, para tentar justificar uma interpretação jurídica distorcida e manipuladora sobre a abrangência da Lei nº 6683, de 28 de agosto 1979, que vem sendo repetida desde a sua promulgação e visa deixar impunes os crimes de lesa-humanidade praticados durante a última ditadura militar no Brasil, ocorrida entre 1964-1985, tais como: sequestros de opositores, torturas, estupro de prisioneiras, assassinatos e desaparecimentos forçados. Todos bem tipificados nos acordos internacionais que o Brasil acolheu em seu ordenamento jurídico há várias décadas.

    A proposta de lei foi enviada pelo general-presidente Figueiredo a um Congresso Nacional de maioria da ARENA, partido do governo, graças à eleição indireta de senadores (os chamados biônicos, casuísmo instituído no Pacote de Abril de 1977, após notável crescimento eleitoral do MDB, partido da oposição); para se ter uma idéia do tamanho da ingerência da ditadura na autonomia do legislativo, em 1979, os senadores biônicos constituíam 32% do Senado Federal .

    A Lei de Anistia foi aprovada com 50,61% dos votos, ou seja, 206  votos da ARENA contra  201 do MDB; devemos olhar o que representa não só a aprovação da legislação, mas também seu resultado: a diferença de somente 5 votos, ou seja, com uma diferença de 1,23% a favor do governo, reflete o grande desacordo expresso nos votos da oposição contra a aprovação dessa lei que, com uma abrangência parcial, negaria a anistia a inúmeros presos políticos, por tipo de pena, e garantiria a segurança jurídica para os agentes públicos e civis que praticaram crimes comuns de lesa-humanidade naquele período.

    O fato de ter tramitado e sido votada no Congresso Nacional não garante o status de democrática, consensual e apaziguadora, apregoado nos dias de hoje para justificar a impunidade dos torturadores, como argumenta a Procuradoria Geral da República, considerando os agentes públicos torturadores beneficiários da Lei 6683/79, pois na legislação da época, o Art. 57 da Constituição Federal, desfigurada pelas emendas militares, atribuía ao presidente da república "a iniciativa de leis que concedessem anistia relativa a crimes políticos, ouvido o Conselho de Segurança Nacional," sendo o Congresso Nacional peça figurativa neste assunto. O Senador Pedro Simon esclarece bem esta questão em seu discurso de encerramento dos trabalhos na Comissão Mista:

 

 

 

 

 

Sem os biônicos, o resultado seria outro; a Lei 6683/79 é resultado da imposição e controle do executivo sobre o legislativo, que buscou, aprovando esta lei, dar uma resposta parcial e restrita às “inquietações sociais” da época e, através do termo crimes conexos, cuja definição não é clara, ao se referir a estes crimes como "de qualquer natureza", deixou impunes os torturadores e excluiu centenas de militantes de organizações de esquerda que resistiram contra o regime militar, evidenciando o caráter de auto-anistia contido nesta lei, dado o contexto de sua aprovação.

    A Lei de Anistia foi votada e aprovada no Congresso Nacional, com seus membros eleitos e não eleitos pelo povo, através de parecer emitido por uma Comissão Parlamentar Mista, cuja composição era de 59% dos membros do partido do governo, que garantiu a maioria dos votos e portanto o controle do texto, à ARENA. Esse trâmite legal é a justificativa que a Procuradoria Geral da República usa hoje para perpetuar a impunidade de crimes de lesa-humanidade no país. Mas qual foi o fruto do suposto “debate parlamentar”? O que realmente haveria de “acordado” no texto final, que contemplasse a posição da sociedade civil organizada nos Comitês Brasileiros Pela Anistia, assumida pelo MDB da época?

    No Prefácio à Anistia registrado nos Anais da Comissão Mista do Congresso Nacional, as palavras do Senador Teotônio Vilela, presidente da Comissão Mista da Lei de Anistia, testemunha e ator deste momento de nossa história, não deixam dúvidas quanto ao “diálogo social” realizado e o “acordo” estabelecido, afirmando que no parecer aprovado “ficou exclusivamente a proposta oficial”.

    Radiografia do “Diálogo” e a concretização da auto-anistia.

    O procurador-geral da república, Roberto Gurgel, ao apontar a necessidade de abrir os arquivos referentes ao período da ditadura militar, para que o país conheça a sua história, busca minimizar o parecer  equivocado que emitiu em relação à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 153, em que a OAB e a Associação Juízes para a Democracia solicitam uma definição sobre a abrangência da Lei de Anistia, no que tange à impunidade dos torturadores e a punição dos crimes de lesa-humanidade praticados no Brasil.

    Se houvesse consultado os arquivos do Senado Federal referentes à comissão criada para debater o assunto em 1979, saberia que o argumento de que houve um grande acordo social realizado através da Lei da Anistia não se sustenta com a apuração do que de fato ocorreu na Comissão Mista, no Congresso Nacional, no Gabinete do Ministro da Justiça e no país, naquele ano.

    A proposta inicial, enviada pelo general-presidente, prevaleceu no texto final com alterações pífias da oposição, pois das 8 reuniões realizadas pela Comissão Mista da Lei de Anistia para compor o tão propalado acordo social para reestabelecer a paz em nossa sociedade, a primeira foi de instalação; na 2ª reunião, o MDB apresentou proposta de convocar entidades representativas da sociedade como OAB, ABI, CNBB e outras, para exporem suas posições sobre o tema, porém não houve quórum para ser votada; na 3ª reunião, a proposta foi derrotada por 13 votos da ARENA contra 7 do MDB e nenhuma entidade civil pôde se manifestar diretamente na Comissão; na 4ª reunião, a ARENA não apareceu em bloco; a proposta do Senador Itamar Franco, de convocar o Ministro da Justiça foi adiada por falta de quórum e a reunião foi encerrada, tal qual a 5ª reunião, onde a ARENA repetiu a atuação anterior e, sem quórum, a reunião foi encerrada sem decidir nada e o Ministro da Justiça nunca foi convocado.

    Na 6ª reunião, realizada em 15/09/1979, todos os membros da comissão se fizeram presentes para votar o parecer. Dada a posição do relator da ARENA, em acolher parcialmente poucas emendas do MDB, o Senador Itamar Franco pede vistas do parecer e a sessão é suspensa por 12 horas e nova reunião para discussão do parecer é marcada.

    O texto de lei apresentado pelo executivo recebeu 306 emendas para serem discutidas na construção de um acordo. O MDB apresentou  210 emendas (69%), das quais somente 42 foram aprovadas pela relatoria, totalizando 20% do que foi pleiteado, com a ressalva de que, com exceção da emenda 292, todas foram acolhidas somente pelo relator da ARENA; sendo que na maioria delas a parte acolhida foi a alteração da data que definiu o período de tempo a ser anistiado, somado ao VETO presidencial posteriormente imposto, este índice reduz-se para menos da metade. em parte

    Efetivamente, das 210 emendas que o MDB propôs para fazer um acordo nacional sobre a questão da Anistia, quase nada foi efetivado e o texto apresentado pelo general-presidente foi muito pouco modificado em seu conteúdo. Isso explica a afirmação de Teotônio Vilela em seu Prefácio à Anistia nos anais dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão Mista.

    Desconsiderando toda discussão realizada pela manhã do dia 16/09/1979, na 7ª reunião, o parecer vai a voto do jeito que foi apresentado pelo relator da ARENA anteriormente, conforme acordado nos gabinetes do executivo. Em sessão aberta no final da tarde, a última reunião da comissão é o registro histórico da farsa que agora tentam usar para garantir a impunidade dos torturadores do regime militar. Todo o “diálogo” se deu através do voto da maioria, da ARENA, derrubando tudo que não constava do parecer apresentado pelo relator e acordado com o Ministro da Justiça e o General-Presidente.

    Nas palavras do Senador Pedro Simon em seu discurso de encerramento dos trabalhos da Comissão Mista da Anistia, fica registrado o significado dessas alterações no texto da lei de Anistia:  

 

 

 

 

 

 

 

 

O parecer do relator Deputado Ermani Satyro foi rejeitado integralmente através de declaração de voto dos membros do MDB, denunciando que “a farsa dos poderosos teve acolhida”. As emendas do MDB e ARENA acolhidas pelo relator, modificaram quase nada, ou seja, no artigo 1º foi alterada a data e incluídos crimes eleitorais a serem anistiados, no parágrafo 4º do artigo 6º e no artigo 10º foi suprimida uma vírgula e o caput do artigo 8º teve outra redação, mantido o conteúdo e significado anterior.

    Este foi o "processo do diálogo" do governo Figueiredo expresso na Lei 6683/79, excluída a participação da sociedade civil e controlado o Congresso Nacional, através de parlamentares biônicos. O resultado da proposta feita durante o regime de exceção, pelo executivo desse regime, legislou em causa própria, daí ser considerada pela ótica da justiça de transição,como uma lei de auto-anistia.

     Assim, o Ministério Público Federal dizer que houve acordo em torno desta lei e que este acordo não pode ser mexido, e com esse parecer orientar o STF a desconsiderar ADPF 153, é um ataque aos avanços dos direitos humanos em nosso país, ao chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao ordenamento jurídico atual e ao direito à memória e à verdade. 

    Sem  justiça, com os crimes de lesa-humanidade reconhecidos somente para a história, perde a sociedade  brasileira, a quem são negados, em seu presente e às futuras gerações, os benefícios da justiça de transição; pois reparar os atingidos e conhecer a verdade não farão os efeitos necessários para o fortalecimento da democracia brasileira, sem que simultaneamente haja a responsabilização dos crimes de lesa-humanidade praticados e a mudança do conceito, estruturas e forma de atuação das forças de segurança do país.

    Deste modo, o parecer do procurador-geral da república é um sinal verde à impunidade de crimes de tortura e outras violações aos direitos humanos no país, é a garantia para que fatos como os vividos durante a ditadura militar se repitam, como por exemplo, os vividos durante o governo Yeda Crusyus no Rio Grande do Sul, onde, conforme relatório do Conselho Nacional de Defesa do Direito da Pessoa Humana, produzido em 2009, a perseguição sistemática aos opositores de seu governo tem causado prisões, processos, torturas e assassinatos por parte de sua polícia, e todos estes crimes seguem tal qual os de 1964-1985, impunes e acobertados por aqueles que deveriam puní-los.

    O que vemos hoje é a continuação da farsa denunciada pelo MDB em 1979. Sem dúvida, as cortes internacionais serão acionadas para que se faça, enfim, justiça aos crimes de lesa-humanidade praticados pelos agentes públicos da ditadura militar, que continuam impunes, beneficiados pela lei de auto-anistia que vigora em nosso país. Com certeza, seria uma honra muito maior que o próprio país tomasse a responsabilidade de escrever sua história. O STF ainda tem a chance de fazê-lo.

Marcelo Zelic

Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo

Coordenador do Projeto Armazém Memória

www.armazemmemoria.com.br
mzelic@uol.com.br

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