Na coluna Vozes das Mulheres, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Bahia, Maria Aparecida de Jesus Silva, agente da CPT, narra a história de Dona Judite Simoa, moradora da comunidade de Itapicuru, Jacobina (BA). A história de Dona Judite, amalgamada à luta pela terra na região, é um exemplo de incessante resistência e reconta o constante enfrentamento que a comunida faz para ter seus direitos respeitados. Confira o artigo na íntegra:
A história de dona Judite Simoa, moradora da comunidade de Itapicuru, Jacobina (BA), é um retrato da vida de muitas mulheres em situação de conflitos com empreendimentos do capital. Camponesas silenciadas, sob processos de desigualdades e violências sobrepostas, mas cujas mãos, carregam as sementes da resistência, com o protagonismo nas lutas pelo Território-Abrigo, na produção de alimentos com práticas agroecológicas e contra a retirada de direitos fundamentais, conforme assinalado por Raquel Baster, no caderno de Conflitos no Campo Brasil 2018, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
É sobre os corpos-territórios das mulheres que recai as violências mais extremas do Des-envolvimento, significa que a presença de empreendimentos como mineração, Parques Eólicos, Agrohidronegócio, Portos e outros, com sua ação destruidora sobre os territórios, afeta com maior impacto a vida das mulheres. Além de retirar as possibilidades das economias comunitárias, por se tratar de um modelo predatório, incompatível com os modos de vida camponesa, promove o adoecimento físico e psicológico das populações do lugar, principalmente das mulheres, como afirma Baster (2018), “elas, ao verem destruído seu local de habitação e trabalho carregam consigo a dor e a angústia das crianças que estão sob sua responsabilidade […]” e diz mais, esses projetos de desenvolvimento, amparados pelo Estado, são “um jeito de se desenvolver, baseado no sofrimento de mulheres”.
Corroborando com estas afirmações, a memória das violências e sofrimentos surgidos com os processos de desterritorialização provocados pela mineração em Jacobina permeia pelo menos metade da vida de dona Judite, atualmente, com 114 anos de idade. A mesma nasceu no dia 12 de fevereiro de 1905, no entanto, só foi registrada tempos depois, constando uma diferença de sete anos na data do seu registro de nascimento.
Mulher parideira, teve 24 filhos e filhas, destes(as) apenas 8 sobreviveram até a idade adulta, 28 netos e netas, 33 bisnetos e bisnetas, 13 tataranetos e tataranetas. Além disso, dona Judite também foi uma das mais conhecidas parteiras da região que abrange as comunidades de Itapicuru, Jabuticaba e Canavieiras. Importante salientar que da comunidade de Canavieiras, hoje, existem apenas resquícios, registrando-se a presença de algumas famílias que retornaram, depois de 2010, quando 105 famílias foram arrancadas de seu lugar, devido a Barragem de Rejeitos da Mineradora Yamana Gold, construída a poucos quilômetros da comunidade.
A remoção de populações e até comunidades inteiras pela mineração em Jacobina, não começou com Canavieiras, desde o início das pesquisas, muitas famílias foram obrigadas a sair de suas terras, vendendo a preços baixos ou simplesmente abandonando suas áreas de plantio sem qualquer pagamento pela terra ou pelos benefícios existentes no local, devido as estratégias de expropriação utilizadas pela empresa, a exemplo da danificação de plantações com rejeitos da mina, perturbação cotidiana com riscos de acidentes com pedras removidas no processo de pesquisa-exploração, constantes situações de humilhação com revista aos moradores(as) que, após instalação da mina, tiveram acessos as suas áreas particulares ou de uso comum, monitorados, restringidos ou impedidos pela empresa (SILVA, 2015).
Quando chegou a região de Jacobina, dona Judite, tinha 13 anos, por conta da seca, migrou com seu marido da região de Rio Preto-Ventura, proximidades de Morro do Chapéu, instalando-se na comunidade de Jabuticaba, no pé da Serra conhecida como João Belo. Segundo relatos, que podem ser constatados também pela observação da geografia do entorno, um lugar que antes da mineração era bonito, sossegado, de terra boa, vegetação, água e ouro em abundância, com plantios diversos, extrativismo sustentável e prática de garimpagem artesanal, que possibilitava a vida com dignidade naquele espaço.
Conforme mencionado anteriormente, a realidade começa a sofrer alterações a partir de 1971, quando a empresa mineradora UniGeo iniciou os processos de pesquisa na comunidade. “Acabou-se o sossego, começou a agonia. Voavam pedras bem grandes, eu tinha que me esconder debaixo da mesa com meus filhos, com medo”, relata dona Judite. Este fato se repetia com freqüência, e a família foi obrigada a sair de sua casa, entregando suas terras à empresa, por “mixaria”. “Eu criava, trabalhava na serra, plantava, e saí de lá por causa da firma e perdi meus trem tudo”, enfatiza Judite Simoa.
Dona Judite e sua família foram morar na comunidade de Itapirucu, a margem do Rio do Cuia que na época, era um rio limpo. A empresa UniGeo foi substituída pela Jacobina Mineração e Comércio, atual Yamana Gold, o território-abrigo, virou alvo de especulação e exploração visando o lucro para uma empresa multinacional, cujas práticas sempre foram de expropriação e “usurpação dos bens coletivos” como afirma a escritora Farias em seu livro Enredos e tramas nas minas de ouro de Jacobina (2008) e a própria dona Judite ao lembrar emocionada dos danos sofridos.
“A mineração não fez nada pra ninguém não, nós fazia o ouro, nós fazia plantio, nós fazia um tudo na vida, e acabou tudo assim, virou… Eu tenho saudade de lá, de panhar trem de dentro da roça, de tanta fartura que eu tinha… no pé da serra eu plantava tudo, era andu, feijão, batata, abóbora, cebola, quiabo, tudo quanto há, depois que a firma tomou conta é que acabou tudo. Os rios eram muito bons, todos satisfeitos, tudo cheio de peixe e hoje acabou tudo, eu sinto muito… chega me insoná e choro”, conclui.
Conheci dona Judite no ano de 2014, na época com 108 anos de idade, ela estava trabalhando em sua roça, no meio das árvores frutíferas, usava um casaco de bolsos fundos onde levava sementes, e apoiava-se em uma espécie de cajado para subir as ladeiras, no caminho, para a casa de farinha antiga que existia em seu quintal, ela ia me contando as histórias, volta e meia parava, tirava algumas sementes do bolso e as colocava na terra “Planto na terra, se chover, nasce”, afirmava.
Nessa época, a Yamana Gold procurou dona Judite para fazer pesquisa na sua terra em Itapicuru, ela ficou muito brava e entristecida, temia novo processo de desterritorialização e esbravejava contra a empresa, lembrando vivamente de todo o sofrimento causado pela remoção de sua terra em Jabuticaba.
Essa mulher centenária carrega a força dos encantados e a memória dos ancestrais, como cuida das sementes da resistência, ela cuida dos Santos e chora de saudade do tempo que fazia samba e sambava no ritmo dos tambores.
Maria Aparecida de Jesus Silva – Mulher negra. Agente da Comissão Pastoral da Terra. Bacharel em teologia, pedagoga, especialista em Desenvolvimento e Relações Sociais no Campo.
Colaboração: Claudiana Pereira, moradora da comunidade de Itapicuru, Jacobina (BA) e colaboradora da CPT Ampliada.
Referências Bibliográficas:
FARIAS, S. O. Enredos e Tramas nas Minas de Ouro de Jacobina. Recife: UFPE, 2008.
SILVA. Maria Aparecida de J. Territorialidades, Conflitos e Resistências a Mineração na Comunidade de Itapicuru, Jacobina-BA. Monografia – UNB, Planaltina – DF, 2015.
BASTER, Raquel. O Silenciamento das mulheres camponesas em situações de conflitos no campo e as sementes que anunciam suas resistências. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo Brasil 2018. Goiânia, Centro de Documentação Dom Thomas Balduíno, CPT Nacional, 2019.
LEIA MAIS:
Racismo fundiário: a elevadíssima concentração de terras no Brasil tem cor