Em artigo, Claudio Dourado de Oliveira, antropólogo, pós-graduado em Direito Agrário e agente da Comissão Pastoral da Terra na Bahia (CPT-BA), discorre sobre a importância de se debater a problemática das águas no Brasil e no mundo. E cita, por exemplo, conflitos relacionados à água no estado baiano. Confira:
(Artigo por Claudio Dourado de Oliveira | Imagem: Andressa Zumpano)
O último domingo de setembro, de cada ano, se celebra o Dia Mundial dos Rios, uma data criada em 2005. O objetivo deste dia é promover a preservação dos rios de todo o mundo e aumentar o conhecimento das populações sobre a importância das bacias hidrográficas. A situação de milhares de rios mundiais que se encontram em sérias dificuldades, ameaçados pelo desenvolvimento do agronegócio, industrial e, consequentemente, pelas mudanças climáticas. Atualmente, mais de 60 países celebram essa data.
No Brasil, os rios sempre tiveram grande importância no processo de povoação. A situação caótica da propriedade da terra, no campo jurídico e a ausência do Estado, obrigou as comunidades a se instalarem nas proximidades dos rios. Esses territórios foram os locais de acolhida de grande parte do campesinato brasileiro, são indígenas, quilombolas, lavadeiras, pescadores, marisqueiros, fundos e fechos de pasto, dentre outros; que se instalaram nesses locais antes e durante a colonização formando espaços livres com seus próprios costumes jurídicos, aperfeiçoando formas de expressar, fazer e criar que definem até hoje seus modos de vida.
Com a expansão das fronteiras agrícolas e o aumento das demandas pela água, o Estado propõe o gerenciamento da água através dos Comitês de Bacias. Essa política de gestão das águas nas bacias hidrográficas brasileiras é condição fundamental para a preservação não só da quantidade de água disponível, como também de sua qualidade, assegurando esta riqueza às gerações futuras, mas assim como outros espaços de decisão (organismos colegiados) há muitos interesses por trás, e a política de gerenciamento pode se tornar um espaço de legitimação da apropriação privada de um bem público, como o que tem acontecido na Bacia Hidrográfica do Rio Paraguaçu. A Lei das Águas (9433) pouco tem dialogado com os Direitos costumeiros[1] dos ribeirinhos, assegurados na Constituição Federal de 1988, os bens de natureza material e imaterial, como patrimônio cultural brasileiro (Art. 216, Inciso I e II) – nas suas “formas de expressão e nos modos de criar, fazer e viver”.
Muitas vezes as Autarquias Estaduais de licenciamento e fiscalização tratam todas as demandas como meros usuários[2], com o mesmo nível de importância, enquanto as empresas do agronegócio e da indústria tem utilizado desses ambientes de decisão para se beneficiarem dos bens naturais, apenas como fatores de produção, nivelando com os agrotóxicos e os fertilizantes; por outro lado, as comunidades sugerem, no gerenciamento dos recursos hídricos, uma relação de harmonia entre as pessoas e o meio ambiente, respeitando as dimensões simbólicas que define o modo de vida do povo ribeirinho, essenciais na identidade e territorialidade dos camponeses. Além dessas comunidades, que dependem diretamente dos rios, muitas cidades também estão ameaçadas pela expansão do agronegócio e pela especulação dos recursos naturais. Principalmente, o abastecimento humano, pois os rios estão cada vez mais poluídos, contaminados e muitos em colapso hídrico, mesmo com uma legislação que prioriza a água para “atender às necessidades prioritárias, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes alternativas” (Lei das Águas – 9433, Art. 15).
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Considerando essa realidade, faz-se urgente, uma mudança de posição do Estado, a fim de garantir o direito a esse bem de domínio público e limitado (Lei das Águas, 9433) essencial para a sobrevivência da população, urbana como consumidora, que depende diretamente da água como política pública e a população rural, como espaço de vida, hábeis em proporcionar um ambiente autônomo capaz de garantir para a humanidade uma “água potável limpa, segura e adequada; vital para a sobrevivência de todos os organismos vivos e para o funcionamento dos ecossistemas, comunidades e economias” como pondera a ONU (Organização das Nações Unidas).
As outorgas, assim como os planos de bacias, devem levar em conta a realidade dos biomas, principalmente para os rios do Cerrado e do Semiárido com sua pouca precipitação e evapotranspiração elevada, estão mais susceptíveis a se tornarem efêmeros ou intermitentes[3]. No Semiárido são mais de oito meses sem chuvas e uma média de 3000 mm de perda hídrica por ano; e o Cerrado pela sua importância como berço de vários importantes rios brasileiros, considerado a caixa d’água do Brasil. O Cerrado abastece oito bacias hidrográficas no país.
Diante desse cenário hídrico, a política das águas deve extrapolar as questões ambientais. A disputa pela água atualmente é mais uma das facetas dos conflitos agrários. Configura com a fusão entre capitalistas e proprietários de terra e cria-se um movimento de expansão do capitalismo rentista, a partir de mecanismos dialeticamente relacionados, entre a necessidade de expansão sobre territórios não-capitalistas e a busca por mercados externos, produzindo desordem por onde atravessa, gerando, nas regiões, destroços e resistências.
O capital industrial e rentista vem tentando tornar a água, com suas diversas estratégias, em fator de produção no mercado das commodities ou espaço de apropriação privada, tanto pela especulação dos modelos neoliberais, quanto pelo neodesenvolvimentismo, no seu apoio ao setor privado, com participação do capital estrangeiro, como é o caso da Igarashi[4] e tantas outras. Na Bahia, o Estado, com a ingerência monocultural do agronegócio, usa todo seu aparato para transferir mais-valia social para as transnacionais, enquanto grande parte da população, que dependem diretamente dos nossos rios, choram a saudade de um tempo de abundância. Diante disso, todos e todas devem ser impulsionados a participar na preservação e recuperação dos rios, não só neste dia, mas durante todo o ano.
[1] Conjunto de normas de conduta social, criadas espontaneamente pelo povo, através do uso reiterado, e que gera a certeza de obrigatoriedade, reconhecidas e impostas pelo Estado (Nader, p. 156).
[2]Usuários de recursos hídricos são as pessoas, empresas particulares ou públicas que captam água (superficiais e subterrâneos), lançam efluentes ou realizam demais interferências diretas em corpos hídricos (rio ou curso d’água, reservatório, açude, barragem, poço, nascente etc.).
[3] Os rios efêmeros existem somente quando fortes chuvas acontecem, que são as chamadas torrentes. Os rios intermitentes são aqueles cujos leitos secam ou congelam durante algum período do ano.
[4] Empresa do agronegócio envolvida em vários conflitos por água na Bahia, com o aval do Estado.