O Doutor em Ciências Sociais (UFPA), sociólogo e professor adjunto da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Ed Carlos de Sousa Guimarães escreveu uma tese de doutorado sobre os crimes de pistolagem e a justiça penal no Pará. Confira aqui um artigo seu sobre o tema.
Ed Carlos de Sousa Guimarães
As recentes notícias sobre o julgamento de José Herzog, envolvido na morte por encomenda do trabalhador rural Belchior Martins Costa, trouxeram à baila, mais uma vez, a relação entre a justiça penal, a impunidade e os crimes de pistolagem que atingem posseiros, trabalhadores rurais, advogados populares e agentes de pastorais envolvidos com os conflitos pela posse da terra no Pará.
O sindicalista Belchior Costa foi assassinado com cerca de 140 tiros. O julgamento à revelia de José Herzog, condenado a 20 anos de prisão, foi realizado vinte e oito anos depois da ocorrência do crime. O principal envolvido na morte por encomenda, o fazendeiro Valter Valente, contudo, permanece impune. O condenado José Herzog, por sua vez, também ficará impune, pois ninguém sabe de seu paradeiro.
É estarrecedor constatar um padrão de impunidade que caracteriza as ações do sistema penal paraense no tratamento dos crimes agrários. Assim, outras mortes por encomenda de trabalhadores rurais no Pará permanecem impunes no sistema penal paraense.
Pesquisei a pistolagem e a impunidade no Pará entre os anos de 2006 e 2010. Analisei os autos de sete processos criminais, como os referentes aos casos de João Canuto de Oliveira, das chacinas da fazenda Ubá e Pastorisa, da morte de “Brasília”, entre outros. É a partir desse farto material que empreendo a reflexão aqui exposta.
Como explicar o padrão de impunidade nos crimes de pistolagem que é produzido e reproduzido pelo sistema penal paraense? Sabe-se que os matadores de aluguel são importantíssimos para a invisibilidade jurídica dos mandantes. A fragmentação das ações delituosas é fundamental para que a impunidade seja a pedra de toque quando se fala em pistolagem e de sua relação com a justiça penal no Pará. Daí a participação em muitos casos de intermediários ou “corretores” da morte, cuja função é a de intermediar o contrato de morte entre o autor intelectual do crime e o pistoleiro. Todavia, é um equívoco pensar a impunidade tendo em vista apenas a dinâmica interna dos crimes de mando. Jamais os mandantes dos crimes ficariam impunes se não contassem com a lógica seletiva do sistema de justiça criminal.
Os autos do processo que apurou a responsabilidade penal dos envolvidos na morte de João Canuto é revelador. O processo arrastou-se, com idas e vindas, por anos no sistema penal paraense. O crime, ocorrido no final do ano de 1985, levou quase dez anos para ser apreciado na esfera judicial. A agência ministerial ofereceu a denúncia penal somente no ano de 1995. E somente no ano de 1997 é que a instrução criminal, isto é, a fase propriamente judicial teve início. Não se sabe os motivos que impediram de o Judiciário paraense receber rapidamente a denúncia oferecida pelo MP.
Há uma sucessão de equívocos cometidos por todas as agências do sistema penal nesse caso. A polícia civil mostrou-se pouco empenhada em investigar o crime; o Ministério Público, por seu turno, comportou-se passivamente, em especial, na fase inquisitorial, não contribuindo para que a investigação da morte por encomenda fosse elucidada satisfatoriamente. Já na fase de processamento do delito na esfera judicial, dois promotores de justiça designados para oficiar no processo declararam-se impedidos de responderem ao processo por motivo de foro íntimo. A agência judicial, igualmente, mostrou-se desorientada e morosa na condução do feito criminal.
Em maio de 2003, os acusados Vantuir e Adilson foram julgados pelo Tribunal do Júri em Belém/PA e condenados a 19 anos e 10 meses de reclusão em regime fechado. O sistema penal paraense levou quase 18 anos para investigar, processar e sentenciar dois dos envolvidos na morte de Canuto. Nesse mesmo julgamento, inconformados com a decisão, os condenados recorreram da decisão, sob a alegação de que a decisão dos jurados era contrária às provas dos autos. O juiz que presidiu o Tribunal do Júri permitiu aos condenados que aguardassem em liberdade o julgamento do recurso. Livres, os condenados evadiram-se.
Segundo os autos, o terceiro mandante Ovídio Gomes de Oliveira foi declarado foragido. Os executores do crime (pistoleiros) nunca foram investigados, indiciados e processados. O taxista Jurandir (ou Jandir), intermediário, permaneceu algum tempo preso, mas conforme indica os autos, foi colocado em liberdade pela própria Justiça, pois adoeceu. Posteriormente, fugiu e nunca foi levado a julgamento. Já o intermediário Gaspar Fernandes evadiu-se e, posteriormente, veio a óbito em outro Estado.
Outro caso paradigmático de impunidade diz respeito à apuração da morte por encomenda de Gabriel Pimenta, advogado de posseiros, em Marabá/PA. Gabriel foi assassinado em 18 de julho de 1982. As seguintes pessoas foram denunciadas: o fazendeiro Manoel Cardoso Neto (Nelito) foi considerado o mandante do crime, tendo como intermediário José Pereira da Nóbrega (o “Marinheiro”), sócio de Nelito e executor Crescêncio Oliveira de Sousa, matador de aluguel. A tramitação do processo criminal iniciou em 1983 na comarca de Marabá, mas nenhum dos acusados foi a júri popular. Em 2000, apenas Nelito foi pronunciado. Vinte e sete anos depois do assassinato de Pimenta, já em 2006, após a prisão de Nelito que estava foragido, o TJE/PA declarou a extinção da punibilidade do crime imputado ao fazendeiro, decretou o trancamento da ação penal e determinou a imediata soltura do mandante do crime, devido à prescrição. O intermediário e o pistoleiro nunca foram pronunciados e julgados, pois foram mortos anos depois do assassinato de Gabriel Pimenta.
Não é leviana a afirmação de que o dispositivo da seletividade está na base de funcionamento da justiça penal ao lidar com todos os crimes por encomenda que atingiram a população rural no Pará. As raríssimas exceções, como é caso do assassinato da religiosa Doroty Stang, em que as investigações foram realizadas a contento e o processo penal transcorre em uma velocidade jamais vista, sequer constitui em descontinuidade do processo de violência e impunidade aqui mencionado, pois, infelizmente, a exceção só confirma ou põe em relevo a regra, qual seja: a gestação da impunidade nos crimes de mando no Pará pelas diversas agências do sistema de justiça criminal. Se houve a possibilidade de condução do caso Doroty nas esferas policial e judicial com relativa seriedade, por que o mesmo não se verifica em tantos outros processos criminais semelhantes?
A seletividade penal nos crimes por encomenda inicia-se desde o momento das ameaças de morte. As ameaças são naturalizadas pela agência policial. Quase a totalidade dos crimes executados foram previamente anunciados. João Canuto, Expedito Ribeiro de Souza, “Brasília”, entre outros, anunciaram suas mortes. Encaminharam denúncias a diversos órgãos. Registraram boletim de ocorrência policial. Nada foi feito. Nenhuma barreira institucional foi erguida no sentido de proteger a integridade física dessas pessoas.
Essa naturalização das ameaças de morte pela agência policial é estendida quando os crimes são executados. Os crimes são mal investigados, os inquéritos policiais são instaurados muitos dias depois do evento criminoso, testemunhas não são ouvidas, o local do crime não é preservado. A sensação que se tem ao ler os autos é a do absurdo, tamanha é a barbárie e as violações à lei praticadas pelos diversos agentes envolvidos nas teias do mundo da pistolagem.
O Ministério Público é aquele que menos ganha visibilidade na discussão sobre a impunidade nos crimes por encomenda no Pará. Salvo raras exceções, os promotores de justiça comportam-se passivamente nos feitos criminais que apuram as responsabilidades penais dos mandantes dos crimes.
Os membros do Ministério Público ao invés de requisitarem diligências e acompanharem de perto a feitura do inquérito policial simplesmente se isolam em seus gabinetes e ficam a esperar que o inquérito seja concluído na esfera policial. No caso Canuto, por exemplo, a investigação policial se arrastou por vários anos, o que denota o descaso da agência ministerial em fiscalizar as ações da agência policial.
Igualmente, a agência ministerial não fiscaliza o bom andamento dos processos na Justiça e, por conseguinte, a aplicação da lei. Os juízes e os serventuários de Justiça nunca são questionados por sua desídia no trato dos casos levados às instâncias judiciais. Comumente, os feitos ficam paralisados por anos, sem que a agência ministerial exija explicações dos juízes. Promotores se sucedem um após outro durante os anos em que transcorrem os processos penais sem que nada seja questionado.
É comum encontrar nos autos a não fiscalização por parte do Ministério Público paraense dos mandados de prisão preventiva decretados. Em especial, os mandantes dos crimes evadem-se e nada é feito. Quase nunca os mandantes são recolhidos à prisão e permanecem foragidos por anos, mesmo existindo contra eles a expedição de mandado de prisão preventiva. Os pistoleiros fogem muito facilmente, pois além de contar com a complacência da agência policial, contam com a passividade dos promotores de justiça, os quais não são preparados nas escolas de legalidade para lidar com os conflitos coletivos pela posse da terra e com a complexidade que envolve o fenômeno criminal.
A agência judicial, por sua vez, que poderia romper com o circuito da impunidade, não o faz. A atuação dos juízes, nos processos penais analisados, é muito aquém do que se espera de uma autoridade que deve zelar pela observância da Constituição Federal de 1988, da lei processual penal e pelo direito de acesso à justiça de mulheres, filhos e parentes das vítimas. A autoridade judicial não determina diligências básicas que podem elucidar o crime; não ordena a feitura de novos inquéritos policiais, a fim de que os crimes de mando sejam devidamente investigados; tampouco se vê nos autos o questionamento sobre a responsabilidade administrativa e penal dos policiais na má condução das investigações ou de sua participação nos eventos criminosos.
Sequer as movimentações processuais básicas, atinentes à própria Justiça, são realizadas eficazmente. Os processos penais, regra geral, ficam paralisados meses, aguardando os despachos dos magistrados. É comum encontrar diferentes juízes e promotores de justiça assinando as peças processuais insertas nos autos, pois o tempo que se leva para o judiciário paraense prestar seus serviços é enorme. A lógica que rege as ações das três agências analisadas é a da irresponsabilidade organizada, isto é, nenhuma instituição ou autoridade policial, ministerial ou judicial é responsabilizada pela impunidade e injustiça produzidas.
A impunidade nos crimes de pistolagem é, dessa maneira, constituída de pequenos atos e miúdas omissões. Prazos legais são desrespeitados; processos ficam engavetados; promotores e juízes julgam-se suspeitos para atuarem no feito; as investigações policiais são caracterizadas pela desídia e nem por isso são questionadas, entre tantas outras pinceladas de infrações que somadas umas às outras dão vida ao horrendo quadro de barbárie, violência e impunidade que caracteriza a pistolagem e a seletividade da justiça penal no Pará.