Audiência realizada no âmbito do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado trouxe diversos depoimentos de vítimas e dados de pesquisas científicas
Por Comissão Pastoral da Terra e Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Foto: Mulheres do Povo Guarani e Kaiowá (MS) / Crédito: Bruno Santiago/Acervo CESE
Uma menina, quando criança, via o avião passar com pulverização aérea e, junto com outras crianças da comunidade, saía correndo para debaixo da garoa achando que era água. Agora, aos 17 anos, teve um filho que nasceu com focomelia, uma anomalia congênita que afeta os ossos longos de braços e pernas. Este é só um dos vários casos de contaminação por agrotóxicos que afetam comunidades inteiras no Cerrado, especialmente mulheres, citados na Audiência Temática sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado realizada nos dias 15 e 16 de março.
O uso sistemático e normalizado de agrotóxicos no Brasil vem sendo intensificado nos últimos anos. Segundo dados do site Repórter Brasil, só entre 2019 e 2021, mais 1.411 substâncias químicas prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente foram liberadas e agora invadem os campos brasileiros. Em 2020, foram liberados quase 10 agrotóxicos por semana. E cerca de um terço dos agrotóxicos liberados no Brasil são proibidos na União Europeia.
Não é para menos que os relatos de contaminação estejam aumentando. Raquel Rigotto, médica, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e relatora de acusação do TPP, elencou os quadros que vêm sendo causados por agrotóxicos: “São sintomas gastrointestinais, como náuseas, vômitos, dor no estômago; irritações na pele, na garganta, nos olhos; sintomas neurológicos, como dor de cabeça; tremores, convulsões, problemas renais. Além de quadros mais graves como o desenvolvimento de leucemia, câncer de mama, próstata e muitos outros, alterações no sistema reprodutor, como infertilidade, abortos, partos prematuros, má formação congênita, depressão, distúrbios neurológicos, autismo e até suicídio”, relatou.
Além das palavras de Raquel estarem embasadas em estudos científicos que comprovam os danos dos agrotóxicos à saúde, os presentes na audiência puderam ouvir diversos relatos de mulheres afetadas por esse tipo de contaminação. Um dos mais fortes e emocionados foi o depoimento de Marli Borges, do Quilombo Guerreiro, em Parnarama-MA. “Os nossos direitos têm sido violados, o nosso modo de vida, por causa do desmatamento e do envenenamento. A dor de cabeça minha é todos os dias, eu vivo empolada. Tem dia que eu não tenho nem coragem de levantar, com tanta dor nos ossos, nas pernas. O nariz entupido e espirrando 24h, por mais que eu faça remédio, que todo remédio do mato curava a gente e agora não cura,” relata Marli.
“Nós temos vários casos no nosso assentamento de doenças”, relatou também Miraci SIlva, do Assentamento Roseli Nunes-MT. “Tem várias pessoas no nosso assentamento com problemas de depressão, com problemas de alergia, problema de câncer... A gente faz essa pergunta: por que que antes não tinha esses problemas? Por que que agravou? Por que aumentou?”, indaga.
A própria Miraci começou a responder essas perguntas em seu depoimento, relatando que as práticas do agronegócio do entorno estão cada dia chegando mais perto das comunidades. A multiplicação das lavouras de monocultivo traz consigo a vasta utilização de agrotóxicos, que afetam os diversos povos e comunidades do entorno. A soja, que é o grão que mais cresce em áreas plantadas no Brasil, consome sozinha 52% dos agrotóxicos do país, de acordo com a Peça de Acusação da Sessão em Defesa dos Territórios do Cerrado. E, ainda de acordo com o documento, o Cerrado brasileiro é especialmente afetado, só ele concentra 75% da produção de soja. Já em 2015, os dez municípios que mais consumiram agrotóxicos no Brasil se encontram no Cerrado.
Maria Emília Pacheco, assessora e pesquisadora da ong FASE e também relatora de acusação destacou na audiência o ponto importante da fome no país. “Relatório divulgado no ano passado da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional nos disse que mais da metade da população brasileira vive algum grau de insegurança alimentar. E cerca de 9% da população brasileira, 9 milhões de brasileiros e brasileiras, vive em situação de fome”, pontuou.
Esses dados, quando somados aos depoimentos de pessoas na audiência, mostram a relação dos agrotóxicos com a insegurança alimentar brasileira. Além dos efeitos nocivos à saúde diretamente, os agrotóxicos danificam e afetam cultivos próximos, o raio de alcance é grande e muitas comunidades não conseguem se defender. “A gente vem sentindo grandes transformações aqui na comunidade desde que os fazendeiros viraram nossos vizinhos, por causa do envenenamento. As nossas frutas não prestam mais, as nossas lavouras das nossas roças não são as mesmas”, disse Luciana Neles, do Território Cocalinho-MA.
Nos depoimentos das mulheres é possível escutar a preocupação com o alimento. “Não conseguimos produzir o alimento que é para o nosso consumo por conta dos ataques das formigas, dos animais que correm dos agrotóxicos para o alimento saudável. Então por isso não conseguimos produzir”, contou Eryleide Domingues, indígena do Povo Guarani e Kaiowá, da Comunidade Guyraroka-MS.
O envenenamento e a destruição dos cultivos da agricultura dos povos camponeses e tradicionais pela contaminação de agrotóxicos são apenas dois dos principais aspectos da presença do agronegócio na vida dessas populações. “É preciso barrar essa cadeia produtiva de commodities, mas também de vulnerabilizações que o agronegócio causa, para que a gente tenha alguma chance de reverter o ecocídio e o genocídio cultural já em curso”, aponta Raquel Rigotto.
A agricultora Miraci ecoa seu apelo: “Em nome de todas as famílias assentadas, eu peço socorro. Peço socorro. Alguém há de nos ouvir e há de lutar contra esse modelo de destruição dos nossos territórios”.