COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Apesar dos chamados da comunidade, Corpo de Bombeiros demorou para chegar ao local; incêndio se alastrou durante a tarde e os moradores tentaram, em mutirão, impedir que chegasse nas casas e nos roçados; secretário municipal minimiza impacto

TEXTO: Sarah Fernandes*
FOTO: Leandro Santos

Desde a madrugada desta terça-feira (01), um incêndio iniciado em uma fazenda historicamente ligada à empresa Suzano Papel e Celulose atingiu a área de reserva do Quilombo Cocalinho, no município de Parnarama, no Maranhão, já no bioma do Cerrado. Ao longo do dia, os moradores temiam que o fogo destruísse os roçados e chegasse às casas das duzentas famílias que vivem na comunidade.

O incêndio, cujo responsável ainda não foi identificado, teve início na semana passada e, devido aos fortes ventos, se espalhou pela região. Os próprios moradores realizaram mutirões para impedir que o fogo se aproxime das casas e roçados, usando baldes de água, lençóis e terra. Eles se revezaram em turnos de 25 pessoas, em uma tentativa de salvar os pelo menos cem roçados cultivados pela comunidade.

Apenas na tarde de hoje os bombeiros acataram o pedido de ajuda da comunidade e enviaram um caminhão com oficiais ao local do incêndio. A viagem do Corpo de Bombeiros mais próximo até a comunidade leva ao menos duas horas.

O secretário de Meio Ambiente de Parnarama, Jackson Feitosa Silva, informou que o incêndio foi controlado antes de chegar ao território do quilombo, na área rural do município. Segundo ele, as chamas se alastraram por uma plantação de eucalipto na Fazenda Canabrava, mas foram debeladas por moradores do quilombo.

“A comunidade estava muito preocupada com o incêndio, mas o fogo não chegou até lá”, afirmou. “Estamos indo para lá com o Corpo de Bombeiros para nos certificar que está tudo bem. Conversei com líderes da comunidade que me disseram que não tem mais perigo, o que traz certo alívio”.

Ao longo do dia, porém, os líderes quilombolas diziam o contrário.

 

HOJE COM SOJA, FAZENDA ERA ARRENDADA PELA SUZANO

Líder comunitária do quilombo Cocalinho, Raimunda Nonata da Silva, disse estar preocupada com a situação, que definiu como extremamente grave:

— Temos muito medo que o fogo chegue nas casas e, com a força do vento, não deve levar mais do que algumas horas para que isso aconteça. Ele pode destruir nossas moradias e nossas roças, das quais tiramos nosso sustento. O fogo descontrolado destrói toda nossa biodiversidade.

Quando o incêndio começou, uma comissão de moradores foi até a sede da fazenda, que faz fronteira com o quilombo, para conversar com o gerente. De acordo com relatos, o funcionário foi ao local do fogo, verificou a situação e afirmou que o incêndio havia sido provocado por caçadores. Os moradores defenderam que, como o fogo começou dentro da propriedade, seriam os fazendeiros os responsáveis por controlá-lo, para evitar prejuízos aos quilombos da região. Ainda assim, nada foi feito.

Inicialmente destinados à criação de gado, os 8.149 hectares da Fazenda Canabrava pertencem à Suzano Papel e Celulose, que introduziu ali o cultivo de eucalipto. Segundo moradores, a propriedade foi arrendada nos últimos meses para produção de soja. Há ainda uma área desmembrada, denominada Canabrava II, com 1.577 hectares, pertencente ao fazendeiro paulista João Ricardo Ivers, segundo o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR).

 

CERRADO CONCENTROU 19% DAS QUEIMADAS DO PAÍS EM AGOSTO

Não é a primeira vez que o fogo na Fazenda Canabrava ameaça os moradores do Quilombo Cocalinho. No ano passado, outro grande incêndio na região chegou a atingir casas antes de ser controlado. Segundo os moradores, não é incomum que a fazenda use o fogo para queimar brotos, nas elevações de terra entre dois sulcos conhecidas como leiras.

Cerrado foi o segundo bioma brasileiro que registrou mais focos de incêndio em agosto deste ano, somando ao menos 205 mil casos, do total de 1,1 milhão de queimadas identificadas no país no mês passado pelos satélites do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Os meses de julho e agosto costumam ser os mais críticos, por serem o ápice do período de seca. A primeira colocada no ranking foi a Amazônia, com 661.890 queimadas.

Os membros do quilombo dizem que a Fazenda Canabrava pôs abaixo árvores de frutas nativas do Cerrado, como macaúba, cajuzinho e mangaba, além de espécies como cedro, sapucaí e pau d’arco. Há reclamações de pagamento de diárias abaixo da média da região para jovens do quilombo carregarem toras de eucalipto.

A silvicultura, cada vez mais comum no Cerrado, causa grandes impactos ambientais, com avanço da fronteira agrícola, desmatamento da vegetação nativa e redução da biodiversidade. Como o eucalipto é uma espécie exótica, que absorve grandes quantidade de água do solo, a prática põe em risco a riqueza hídrica da região.

Ocupando 12% do território nacional, o Cerrado abriga dezenas de comunidades indígenas e quilombolas, porém sofre com o constante avanço do desmatamento, causado principalmente pela agropecuária, que já ocupa 40% das terras do bioma, segundo estudo da organização não governamental internacional WWF-Brasil.

Só no ano passado, desmatamento no Cerrado atingiu 410 mil hectares, um terço de toda área devastada no país no período: “Destruição do Cerrado em 2019 foi mais rápida que na Amazônia e avançou sobre áreas protegidas“.

Líderes de comunidades tradicionais da região destacam que desde o início do governo Bolsonaro a tensão entre eles e desmatadores se agravou, devido sobretudo ao enfraquecimento do trabalho de instituições públicas de monitoramento, como o próprio Inpe e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

 

*Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas

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