O público teve a oportunidade de conhecer diferentes povos e comunidades tradicionais, além de conhecer as principais ameaças que o bioma e seus povos sofrem.
Texto: Bianca Pyl (Campanha Nacional em Defesa do Cerrado) com apoio de Thays Puzzi (Rede Cerrado) / Edição: Rosilene Miliotti (ONG Fase) / Imagens: Thomas Bauer (CPT Bahia)
O público do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, teve a oportunidade de ouvir, ver e sentir um pouco sobre o que é o Cerrado e o que significa ser dessa região do país – seja culturalmente ou pelas resistências necessárias frente às ameaças que povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares e o próprio bioma enfrentam -, durante o evento “Cerrado em toda parte”, que aconteceu no dia 9 de outubro, no Museu do Amanhã. O evento foi promovido pela ActionAid e a Rede Cerrado, organizações que integram a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
A programação contou com roda de conversa com representantes dos povos e comunidades tradicionais, exibição de documentários sobre o Cerrado e debate com os diretores. Além disso, também teve uma programação educativa com atividades para crianças conhecerem um pouco mais sobre a importância do bioma para o Brasil como um todo.
De acordo com Henrique Oliveira, diretor executivo do Museu do Amanhã, um dos principais eixos de atuação do museu é a sustentabilidade. “Vamos ter a oportunidade de falar quais ações podemos iniciar hoje e agora para que o Cerrado seja preservado, reconstituído e regenerado. Essa é uma área que há 11 milhões de anos espaço é ocupada e jamais poderemos desconsiderar a ancestralidade desse território”, ponderou.
Para Avanildo Duque, gestor de Programas e Políticas da ActionAid, foi simbólico que o evento acontecesse justamente no Museu do Amanhã. “O amanhã depende de protegermos o máximo a biodiversidade do Cerrado, o amanhã depende da ação dos povos e comunidades tradicionais”, disse.
Segundo Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN) – que integra a Rede Cerrado, já passou da hora de todos saberem a importância que o Cerrado tem para todo o Brasil. “A Rede Cerrado atua para dar visibilidade ao bioma, para que as populações possam gerar renda a partir do Cerrado, mantendo o Cerrado em pé, o ecossistema equilibrado”, explicou.
O Cerrado resiste graças à resistência das mulheres que vivem no bioma, lembrou Isolete Wichinieski, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das promotoras da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. “O Cerrado é um bioma fundamental para o nosso país, inclusive sua água chega a rios da América do Sul. Essa a água e a biodiversidade precisam ser protegidas. Precisamos manter o solo sagrado do Cerrado e defender seus povos e comunidades, que alimentam a vida que existe no Cerrado”, analisou.
Roda de Conversa
A jornalista Flávia Oliveira mediou a roda de conversa que permitiu uma troca de saberes sobre o Cerrado e seus povos com a plateia, que pode também conhecer as principais ameaças ao bioma e aos povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares enfrentam.
A relação que as comunidades quilombolas têm com o Cerrado é uma relação de vida, e não de exploração, como o agronegócio que se expande e ocupa o máximo de área visando o lucro, de acordo com Fátima Barros, da Articulação Nacional dos Quilombolas e integrante da Campanha em Defesa do Cerrado. “ Nós temos feito a resistência, o nível de violência é muito grande contra os povos do Cerrado”, relatou. A liderança quilombola contou que sua comunidade está levando anos com um processo na justiça para conseguir o título definitivo da área que ocupam.
Recentemente uma portaria declarando que a área reclamada pela comunidade é 100% área quilombola foi publicada, mas o processo ainda não foi finalizado.
“Nós levamos anos em processos lutando para provar o nosso direito ancestral que temos de estar no território, meu avô, minha mãe, meus irmãos nasceram na Ilha de São Vicente e ainda sim enfrentamos um processo jurídico e um fazendeiro conseguiu retirar a comunidade uma vez. Mas nós abrimos um processo para comprovar nossa ancestralidade”, explicou.
Para Fátima a necessidade de as comunidades terem que provar sua identidade enquanto comunidade tradicional é de violência simbólica muito grande. “Um órgão público ter que dizer que nós somos quem nós somos é uma violência, eu sempre soube da minha origem, eu nunca precisei de nenhum papel para dizer quem eu sou.”
Os grandes conflitos agrários que temos na região do Cerrado, principalmente na área conhecida como MATOPIBA, são ameaças para diferentes povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Mas também ameaçam as águas do Cerrado, poluindo com agrotóxico, ou construindo barragens e captando água em excesso para as grandes áreas de monocultura.
Maria do Socorro, coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e coordenadora geral da Rede Cerrado, lembrou que quem de fato está conservando as águas do Cerrado são justamente as comunidades ameaçadas. E ela afirmou que uma forma de ajudar essas comunidades é “colocando a agroecologia na sacola, que não usa veneno, não desmata, vamos incentivar o nosso povo a comprar esses produtos.”
Resistência
Samuel Leite Caetano, coordenador de projeto do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM) – que integra da Rede Cerrado, aprendeu desde cedo com sua comunidade sobre a resistência do Cerrado e seus povos.
“O Cerrado nos ensina, às vezes ele desaparece para soja, pecuária, eucalipto, mas basta retirar essa forma agressiva de intervenção do bioma que ele resurge, as raízes são muito forte. É extremamente resistente, como os povos que ali habitam”, disse Samuel, que é de comunidade geraizeira.
Agroecologia e Agroextrativismo são práticas das comunidades há séculos, mas de tempos para cá que receberam esses nomes, mas sempre foram praticadas pelas comunidades que têm relação com a terra. “As terras passaram a ser cobiçadas pelo agronegócio, as políticas feitas no ar condicionado chamadas de ‘desenvolvimento’, com isso os territórios dos geraizeiros vão sendo transformados em plantação de eucalipto. E nós temos que resistir para permanecer o território”, relatou Samuel.
O bioma Cerrado é pouco conhecido, mas não deixa de ser uma questão nacional e não regional, na opinião de Maria Emília Pacheco – assessora da Fase, a vida no Brasil depende muito da vida do Cerrado. Para ela falar do Cerrado é falar dos ciclos das águas, da biodiversidade, mas sobretudo é lembrar que a história do Cerrado é a história dos seus povos. “O que está destruindo o Cerrado é a monocultura que rompe todos esses ciclos”, apontou.
Os roçados dos indígenas foram desestruturados pelos colonizadores – roça de inhame, mandioca, milho – alimentos que temos hoje são frutos da atuação dessas comunidades tradicionais, explicou Maria Emília. “São os guardiões da semente, da natureza, eles e elas transformam em permanência a própria natureza, o que consideramos como nativo é fruto da história desses povos”, pontua.
A assessora da Fase lembrou da importância de questionarmos o discurso vigente que fala que o agronegócio nos alimenta. “Há um território do capital, imposto e criado pelo interesse do Estado, como o MATOPIBA, que alega que o desenvolvimento se dá com aumento da produção, mas produção para quem? Devemos questionar: quem nos alimentará?”, explicou se referindo ao fato de as grandes monoculturas que ocupam áreas que antes eram mata nativa do Cerrado serem, em sua imensa maioria, soja ou milho transgênico, que são exportados para a cadeia da pecuária em países da Europa, Estados Unidos e China. Em alguns casos, as áreas de Cerrado viram plantações de eucalipto ou pastagem para criação de gado.
“Temos que ampliar a nossa capacidade de entender a vida e a luta desses povos, não é a terra apenas, é território, tem símbolo, tem afetos, tem cultivo, tem coleta, desvalorizamos o sentido do agroextrativismo, é disso que baseia a variedade dos nossos alimentos. Falar dessas diferenças significa falar com culturas alimentares diferentes”, avaliou Maria Emília.
A jornalista Flávia Oliveira, que mediou o debate, lembrou que para esses povos e comunidades, incluindo agricultores familiares, o desenvolvimento é um conceito diferente. “O ofício, o trabalho e a renda, passam pelo conhecimento e saberes que compõem o Cerrado e toda essa riqueza histórica e antropológica”, disse.
Unidades de proteção integral
No Cerrado, e em outras partes do Brasil, temos exemplos de violação do direito à consulta prévia, livre assegurada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – da qual o Brasil é signatário. Muitas obras, projetos e intervenções são feitas sem a consulta adequada aos povos e comunidades diretamente afetados. Em alguns casos, até mesmo a criação de unidades de proteção acabam gerando conflitos porque os governos (pode ser federal ou estadual) não considera os povos que vivem em áreas que estão preservadas na hora de criar parques em categorias que não permitem a convivência com comunidades.
“O governo faz projetos sem nos consultar, faz área de preservação ambiental em nossos territórios, desrespeitando os lugares sagrados do nosso povo. Esse tipo de intervenção que o governo faz não é respeitoso, mesmo dialogando com esses ministérios, ainda sim a intervenção que recebemos não se traduz em bem viver para o nosso povo”, denunciou Fátima.
Para o geraizeiro Samuel, a criação de unidades de proteção integral – que não permite a presença humana – é de insensibilidade gigantesca com as comunidades. “Temos o exemplo de um projeto no Norte de Minas Gerais que desviou a água do rio São Francisco, detonou com o meio ambiente. Daí o governo criou o Parque Estadual Lagoa do Cajueiro e os vazanteiros estão lá, justamente na área mais preservada porque os vazanteiros sabem manejar a terra. Eles negam o modo de vida dos povos originários, que sempre manejaram esse ambiente, aí chegam e criam o parque e expulsam as comunidades”, explicou.
Maria do Socorro lembrou da luta das quebradeiras de coco para a criação de reservas extrativistas, que beneficiam o meio ambiente e as comunidades que vivem da extração de bens naturais, como o coco babaçu, que não implica em desmatamento.
Ao final da roda de conversa o público acompanhou uma homenagem a dona Dijé, quebradeira de coco babaçu, que era uma importante liderança no movimento e faleceu no mês passado, após tomar posse no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais. As Encantadeiras, grupo musical das quebradeiras de coco babaçu, fizeram uma apresentação para encerrar a atividade.
Exibição de documentários
Durante o período da tarde, foram exibidos os documentários Seu Churrasco tem soja?, de Thomas Bauer; a série de curta metragem Guardiões do Cerrado, de Fábio Erdos; e o longa Sertão Velho Cerrado, de André D’Elia. Após a exibição os diretores participaram de um debate com o público e relataram as dificuldades no processo de produção, principalmente nos casos em que envolviam violência com as comunidades.
Atividades pedagógicas
Durante todo o dia, as crianças puderam participar de atividades pedagógicas, incluindo contação de histórias, oficinas e exposições. Os especialistas do Museu de Mineralogia Aitiara (MuMA) apresentaram a formação do aquífero Guarani, uma das reservas hídricas mais importantes do mundo localizada no Cerrado, e demonstraram o funcionamento do arenito Botucatu, rocha porosa do aquífero que absorve água.
A artista plástica Márcia Porto conduziu oficinas de pintura coletiva com pigmentos terrosos a partir de informações sobre o Cerrado. Ao final da oficina, os participantes montaram um painel com suas pinturas. E as Encantadeiras, grupo musical de quebradeiras de coco babaçu, fizeram uma apresentação sobre sua defesa das palmeiras que só crescem na região do Cerrado, e seu canto de trabalho na quebra do coco da palmeira, seu meio de vida.
Ana Carolina Fagundes Sampaio, 14, e Vitória Francisca, 13, ambas moradoras da Maré, acompanharam atentas as atividades pedagógicas. Puderam conhecer um pouco mais sobre a formação das águas, sentir as cores do Cerrado e experimentar um pouco das culturas que resistem no bioma. “A gente não conhecia essa realidade. As histórias das quebradeiras de coco, para nós, foi o mais interessante porque elas mostraram para a gente como elas vivem”, disse Ana Carolina apoiada pela amiga Vitória.