COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

 

Crescimento no número de conflitos no campo se transfunde pela Amazônia Legal nos últimos três anos, às custas das vidas e da perda de território dos povos da floresta. Movimentação no Congresso Nacional, para aprovar projetos de lei que desrespeitam comunidades tradicionais e favorecem madeireiros, grileiros e garimpeiros, segue sob esquema emergencial

Por Andressa Zumpano e Mário Manzi - Assessoria de Comunicação da CPT Nacional
Foto do Card: Andressa Zumpano

Nos últimos três anos, o governo Bolsonaro deixou de agir ou foi omisso, por diversos momentos, no que concerne a pauta socioambiental. Quando atuou, a sua prática governista foi de encontro às práticas e aos princípios que prezam pela vida digna dos povos e comunidades tradicionais.

Notadamente, em relação aos povos da floresta, Bolsonaro arquitetou um projeto de destruição em conjunto com o Congresso Nacional para que territórios fossem extirpados ou repassados como mercadoria para empresários e organizações que têm o intuito de explorar a floresta unicamente para obtenção de lucro.

No franco transcurso da aplicação e sugestão de políticas públicas, o governo teve, à frente do Ministério do meio ambiente, o advogado Ricardo Salles. Salles que "deixou a boiada passar'', como evoca a fala do ministro de maio de 2020. Essas ações saíram do campo do discurso e se estabeleceram como doutrina de atos que fossem de encontro à vida nas florestas.

Quando falamos de ações para preservação da floresta é preciso lembrar que isso passa diretamente pela política. A presença do estado é uma das principais questões, uma vez que a Amazônia está localizada na região Norte do país, uma região excêntrica ao núcleo de poder político que se divide entre Brasília e o sudeste.

Na Floresta Amazônica o estado é mínimo. As políticas públicas, voltadas para educação e saúde, por exemplo, são débeis e as estruturas de atendimento dessas populações estão deterioradas ou não existem. Isso faz com que os povos da floresta não possam ter o apoio da estrutura do estado.

A ausência de um estado que assista ou que seja sensível aos povos da floresta tem um impacto direto na vida dessas populações. O que percebemos é que o agravamento de conflitos é um dos pontos nevrálgicos deste contexto para quem vive da e na floresta. Esses conflitos, registrados e acompanhados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino da Comissão Pastoral da Terra (Cedoc-CPT) resultam em assassinatos, massacres e mortes em consequência.

Quando os povos precisam de atendimento médico, por exemplo, e as unidades de saúde estão fechadas ou estão incapacitadas para atendê-los, a morte pode ser repercussão dessa ausência de estado, desse estado mínimo na floresta. E é o que vemos principalmente com os povos indígenas da Amazônia, que carecem de medicamentos e tratamentos médicos e que por isso acabam morrendo. Quando o estado se faz presente, é vulgarmente no sentido de se somar às forças de opressão contra os povos do campo e das florestas, resultando em violência, assassinatos e massacres, como trataremos logo mais.

O governo federal não é o único agente de destruição da vida na floresta. As instituições brasileiras, imobilizadas, respondem por esse descaso. Outros agentes da destruição, de mesmo modo, fruem deste absentismo do estado, para explorarem a Amazônia à revelia de leis e decretos que protegem territórios e vidas. O congresso brasileiro, hoje, trabalha para derrubar leis protetivas ou criar novas leis que desamparam a vida dos povos da floresta, completamente entregues ao interesse e ao lobby de grandes empresas que veem a Amazônia como trincheira de superexploração de recursos naturais, tais como madeira, minérios, energia, água e como área de expansão da fronteira agrícola.

Panorama de dados

Em 2019 registrou-se apenas um conflito por água causada por garimpeiros na Amazônia Legal. O número indicava doze ocorrências, tendo como agentes, mineradoras internacionais. Já no ano de 2021 foram 8 ocorrências de conflitos por água causadas por garimpeiros e 17 por mineradoras internacionais, segundo dados parciais para o último ano liberados em dezembro de 2021, pelo Cedoc-CPT.  ​​Ao fim dos três anos de governo Bolsonaro, o Centro de Documentação registrou 54 ocorrências de conflitos por água na Amazônia Legal, causados por garimpeiros, grileiros e mineradores. Para comparação, em 2019 foram dezesseis ocorrências.

Neste período a categoria garimpeiros foi responsável por três assassinatos, 16 tentativas de assassinato e 18 mortes em consequência na Amazônia Legal. Nos últimos três anos, foram 60.644 famílias afetadas por grilagem na Amazônia Legal. Entre os agentes causadores: empresários, Governo Federal, grileiro, madeireiro, fazendeiro, policial civil e político.

De 2019 a 2021 foram 2.329 ocorrências de conflitos por terra na Amazônia Legal, perfazendo uma média de 2 destes conflitos por dia. São os causadores específicos destes conflitos: garimpeiro, grileiro, mineradora nacional e mineradora internacional. Neste mesmo período as ocorrências de trabalho escravo envolvendo garimpo e mineração contabilizaram 12 conflitos, envolvendo 196 pessoas.

Floresta manchada de sangue

A violência que atinge os povos da floresta é a representação de um "projeto de morte", capitaneado pelo Estado brasileiro e colocado em prática por meio de uma atuação intencionalmente estruturada para a destruição socioambiental e para o crescente número de assassinatos de lutadores e defensores das florestas.

Esse projeto de morte se consolida quando se observa o panorama de violências, que ocasionam um verdadeiro derramamento de sangue nas florestas brasileiras, dentre elas, os massacres no campo se destacam. Atuando como uma demonstração brutal da ação do estado como um catalisador desses ataques, os massacres têm como principais agentes causadores: policiais militares, fazendeiros e/ou grileiros, garimpeiros e pistoleiros.

Segundo registros do Cedoc-CPT , de 1985 até hoje, ocorreram 56 massacres e 296 vítimas. Deste total, 82,5% ocorreram na Amazônia Legal. O Pará concentra 51,2% dos massacres, situando-se como o estado com maior número de registros nesta categoria. Foram 152 pessoas vitimadas no por esse tipo de violência, em episódios de extrema barbárie como o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, e o Massacre de Pau D'Arco, em 2017.

No que se refere aos agentes causadores de massacres, somente na Amazônia Legal foram 69 pessoas mortas em ações policiais, 70 pessoas vítimas de fazendeiros/grileiros e outras 70 vítimas de pistolagem. Também foram registradas 30 mortes vítimas de conflitos com garimpeiros, todas em territórios indígenas do Povo Yanomami em Roraima.

Estes episódios emblemáticos têm em comum a atuação direta do estado como causador de massacres, seja pela própria atuação das forças militares estatais, como agentes de violência, em casos como Corumbiara, Carajás ou Pau D'Arco, ou por meio da ausência de projetos de reforma agrária e regularização fundiária, que impulsionam a grilagem de terras, desmatamento e o avanço dos garimpos nos territórios. 


Pacote da Destruição

Além dos alarmantes dados de violência acima citados, o Estado brasileiro tem colocado nas ações prioritárias de governo a movimentação de ações no legislativo que têm como objetivo acelerar a destruição das florestas e de toda sua biodiversidade.

Chamado de "pacote da destruição" por organizações e movimentos que atuam na pauta socioambiental, a Portaria nº 667/2022 assinada pelo ministro da Casa Civil, pretende legalizar a mineração em territórios indígenas, regulamentar a grilagem de terras e flexibilizar licenciamentos ambientais, no que foi denominado de agenda prioritária do governo de Jair Bolsonaro.

O PL 191/2020, que já teve requerimento de urgência aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 9 de março, tem como objetivo aplicar uma autorização provisória para mineração e garimpo em terras não homologadas, sem votação no Congresso Nacional, desrespeitando os ditames da Constituição Federal. Também prevê exploração em territórios com a presença de indígenas isolados, já que muitos deles não possuem processo de demarcação conclusos, tendo apenas uma portaria de interdição de área.

No que se refere à flexibilização de licenciamentos ambientais, o PL 3729/2004, com texto base já aprovado pela Câmara, promove farra na liberação de licenças para empreendimentos e até mesmo para atividades agropecuárias. Alguns empreendimentos como obras de duplicação, ampliação e pavimentação de rodovias, construção de linhas de transmissão de energia, poderão emitir uma espécie de autolicenciamento, a chamada Licença por Adesão e Compromisso (LAC). O PL também cria a Licença Ambiental Única, que analisará em uma única etapa, instalação, ampliação e operação de empreendimentos, com validade mínima de 5 anos e máxima de 10 anos.

O PL 2633/20, conhecido como PL da Grilagem, flexibiliza as regras de regularização fundiária de terras públicas federais, onde áreas de 5 a 660 hectares, invadidas ou ocupadas irregularmente, poderão ser regulamentadas. A medida também altera o tamanho de propriedades que poderão ser regularizadas sem vistoria obrigatória do INCRA, de 4 para 6 módulos fiscais.

Também estão entre as pautas prioritárias do atual governo: o PL 5518/20 possibilita concessões florestais para pessoas jurídicas, que terão permissão para o uso do patrimônio genético da floresta para fins de pesquisa e prospecção, como também poderão explorar a fauna e comercializar créditos de carbono ; o PL 6299/2002, que facilita a liberação de agrotóxicos no país e permite o registro de produtos cancerígenos; o PL 528/2021, que determina regras para a compra e venda de créditos de carbono no Brasil e o PL 490/2007, que estabelece um "marco temporal" para territórios indígenas.

Sementes de resistência

Os povos da floresta resistem contra a brutal violência protagonizada pelo Estado brasileiro, com manifestações de solidariedade e luta,. Por meio delas, se mantiveram e fortaleceram laços, mesmo durante a pandemia.

Segundo levantamento parcial para 2021, realizado pelo Cedoc-CPT, foram registradas 1.278 "Manifestações de Luta", com a participação de 360.781 pessoas, um aumento de 66,40% em relação ao mesmo período no ano anterior. As ações de solidariedade, como distribuição de alimentos, máscaras, troca de sementes, entre outros, corresponderam a 29,89% do total de Manifestações de Luta realizadas no ano passado. 

Entre essas manifestações, destaca-se a movimentação dos povos das florestas contra a omissão do Estado durante a pandemia de COVID-19, que resultou na morte de 1293 indígenas e mais de 300 quilombolas. Os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores e sem terra, realizaram diversas ações, principalmente na capital federal.

Os meses de agosto e setembro de 2021 foram marcados pela maior mobilização indígena em Brasília desde a Constituinte, reunindo mais de 5 mil indígenas do país inteiro na capital federal no Acampamento Luta Pela Vida, além de manifestações em seus territórios e estados, como fechamento de rodovias e estradas. 

Os indígenas denunciaram os projetos de morte do Governo Federal e Congresso Nacional e se manifestaram contra a tese do marco temporal, que pretende definir um marco para a demarcação de territórios no Brasil, sendo reconhecidos somente os povos que tiveram suas terras tituladas até 1988.  

O julgamento do marco temporal foi suspenso em setembro de 2021, com pedido de vistas pelo ministro Alexandre de Moraes. Antes da suspensão, dois ministros votaram, o relator Edson Fachin se posicionou contra a tese e Nunes Marques, ministro indicado por Jair Bolsonaro, defendeu o marco temporal. A sessão retornará no dia 23 de junho, quando os demais ministros e ministras votarão.

Em abril deste ano, os povos indígenas retornam a Brasília para a 18​​ª edição do Acampamento Terra Livre, entre os dias 4 a 14 de abril, após dois anos de realização virtual em razão da pandemia de COVID-19.  O acampamento terá como tema "Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política".

Crise Climática

Tornado público no dia 28 de fevereiro, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) revelou, de forma peremptória e drástica, os impactos da crise climática mundial. Composto pelas principais autoridades em clima do mundo, o IPCC publica atualizações regulares de estudos sobre a crise climática com a finalidade de nortear ações e a formulação de políticas pelos governos, além de informar a sociedade.

De acordo com o estudo, mais de 40% da população mundial é "altamente vulnerável" ao estado do clima, e conclui que, a cada ano, metade da população mundial sofre com a escassez de água em algum momento. Ainda segundo o documento, o estresse térmico afeta um terço da população - tal proporção deve aumentar para 50% a 75% até o final do século. O relatório indica também que um bilhão de pessoas, que vivem em áreas litorâneas, serão afetadas por inundações até 2050.

Deus ex machina

No ano eleitoral de 2022 é imprescindível a organização popular, enquanto sociedade civil, para barrar os que atropelam vidas e os modos de vida dos povos das florestas. O sufrágio independe de localização específica neste país, ele interfere nas vidas de todos, e de uma forma mais dramática, como pode ser percebido a partir dos dados reunidos pela CPT, nas vidas dos povos e comunidades tradicionais por todo o país. O voto se reforça como importante ferramenta, neste contexto, para impedir tais e mais retrocessos.

O compromisso com a eleição deve passar pelo compromisso com a vida, principalmente com aqueles e aquelas que estão fragilizados, que são subalternizados pelas estruturas de poder dos governos, das empresas, dos grandes projetos e do capital financeiro.

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