COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

“Boca do Acre é uma das muitas áreas em disputa na Amazônia”. Após visita aos agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e lideranças de sindicatos ameaçadas em Boca do Acre, no Amazonas, a Equipe da Articulação das CPT’s da Amazônia lança esta Nota Pública. Confira:

 

Porta fluvial de entrada ao território acreano, a cidade ribeirinha de Boca do Acre nasceu à beira da foz do Rio Acre com o Purus, um dos grandes afluentes do Amazonas. Situada no estado de Amazonas, a cidade está a 223 quilômetros de Rio Branco, capital do Acre, e tem acesso terrestre apenas pelo estado acreano. As equipeslocaisda Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), integrantes dos regionais do Acre, enfrentam há muitos anos os conflitos provocados pelo avanço da fronteira agrícola, que ameaça os territórios tradicionais de indígenas, ribeirinhos e extrativistas. A abertura da estrada e asfaltamento parcial da BR-317, entre Rio Branco e Boca do Acre, facilitou a chegada de grandes grileiros ao município e a abertura de ramais no interior da floresta, assim como a exploração de madeireira.

Boca do Acre forma parte da região do Sul do Amazonas, uma das principais fronteiras do desmatamento na Amazônia, em pleno “arco de fogo”, uma zona em plena fase de expansão agropecuária. Boca do Acre e Lábrea são os dois únicos municípios do Amazonas que constam na lista suja do desmatamento do bioma amazônico. Boa parte do território municipal já foi grilado e desmatado por grandes fazendas, contando com 365 mil cabeças de gado em 2014, segundo os pecuaristas locais, o maior rebanho bovino do estado do Amazonas.

Fazendas de pecuária de Lábrea e Boca do Acre também têm liderado os casos de trabalho escravo do estado do Amazonas. Em 2011, uma ação do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Boca do Acre resgatou 42 trabalhadores, que tiveram os contratos de trabalhos rescindidos e obtiveram, além das verbas rescisórias, valores arbitrados a título de Dano Moral individual. Posteriormente, outros 48 empregados das duas propriedades rurais tiveram a regularização dos seus contratos de trabalho (Assinatura de CTPS, recolhimento de FGTS e contribuição previdenciária), e os fazendeiros firmaram, perante o MPT, um Termo de Ajustamento de Conduta.

Com o avanço da pecuária, também muitas famílias de moradores tradicionais foram expulsas dos seus territórios. A CPT, desde a década de 70, contribuí na formação, organização e mobilização das comunidadesribeirinhas de Boca do Acre em busca do reconhecimento de seus territórios tradicionais. Em parceria com o Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) têm realizado diversos seminários de regularização fundiária.

A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) iniciou trabalhos de georeferencimento e cadastramento dos ribeirinhos no fim de 2012, começando a entregar documentos de Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) para famílias ribeirinhas do município. Em Boca do Acre também existem diversos processos de demarcação de terras ocupadas tradicionalmente por indígenas, como a Terra Indígena (T.I) Valparaíso. Outras oito áreas estão com processo de demarcação paralisado há anos: Iquirema e Goiaba (Jamamadi), Monte e Primavera (Apurinã), Lourdes (Jamamadi e Apurinã) e São Paulino e Kaiapucá (Jaminawa).

Em agosto de 2011 o Programa Terra Legal iniciou o processo para regularização de 3.340 quilômetros de terras da União, levantando grande expectativa para entrega de títulos de propriedade, começando pelas Glebas Novo Axioma e Redenção, na região. Em dezembro de 2014, um grupo de 90 agricultores da Gleba B 38 Comunidade Canto Escuro recebeu títulos.

Também existe numerosa demanda de famílias de pequenos agricultores sem terra para criação de assentamentos de reforma agrária. A superintendente do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Maria do Socorro Marques Feitosa, chegou a anunciar em 2011 que o Incra já tinha arrecadado 37 áreas, totalizando mais de 660 mil hectares, e que uma gleba de mais de um milhão e setecentos mil hectares estava em fase de arrecadação pelo Instituto de Terras do Amazonas (ITEAM). Nada disso foi destinado até agora para assentamentos. Em realidade, o último assentamento de reforma agrária do Incra em Boca do Acre teria sido realizado em 1992, o PA Monte. Com a pressão dos grandes pecuaristas, boa parte das terras daquele assentamento foram concentradas novamente, em mãos de grandes proprietários. Segundo o Incra, de 600 famílias que estavam no projeto, em 2005 restavam apenas umas 180 famílias. Virou tudo fazenda. Na época, o Incra tentou assentar, novamente no local, 345 famílias de um acampamento de Acrelândia. Em 2014, o Ministério Público Federal (MPF) reclamava, após mais de cinco anos de identificação de irregularidades no assentamento, que o Incra ainda não tinha retomado os lotes ocupados indevidamente no PA Monte.

Para os pequenos agricultores que precisam de terra parece que somente resta ocupar. Um levantamento das ocupações de pequenos agricultores no município, realizado pela CPT em parceria com o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), mostrou a presença de 289 famílias de sem terra, sendo 49 delas de indígenas, em sete áreas públicas ocupadas. Segundo o mesmo levantamento, existem mais de mil famílias de pequenos agricultores em Boca do Acre que precisam ser assentadas, porém esses não conseguem que o Incra realize o cadastramento. Muitos dos antigos peões resgatados das fazendas pelo MPT em condição análoga ao trabalho escravo, agora estão em busca de uma terra para viverem. Eles têm ocupado algumas das áreas públicas e têm se organizado em associações, procurando apoio para levantar a cadeia dominial das áreas pretendidas no Incra e nos cartórios, pleiteando para reforma agrária apenas terras públicas.

Como em outros lugares, o início da regularização do Programa Terra Legal, (que dá a terra a quem a ocupa de fato, sem perguntar como conseguiu a posse: grilando, desmatando, ou com violência) também resultou numa nova correria pela grilagem da terra. Segundo informações locais, uma das ocupações teria sido originada diretamente por um vazamento de informação das empresas contratadas pelo Terra Legal, segundo o qual haveria algumas sobras de terras numa gleba georeferenciada. A peça técnica teria sido repassada para terceiros, que correram para ocupar as terras, contando com apoio de algumas autoridades locais.

Em alguns casos, as terras indígenas também não são poupadas. Conforme representantes do Cimi, há muito preconceito contra os indígenas na região. Se não cuidar, os poderosos colocam trabalhador contra trabalhador. Grandes fazendeiros tem se apresentado apenas como “agricultores”, se opondo às demarcações (T.I Valparaiso).

No caso da “Gleba Bom Lugar”, uma área que tinha sido arrecadada pelo Incra, na chamada pública a Fundação Nacional do Índio (Funai) a reclamou como terra tradicional indígena. O Terra Legal parou o trabalho no local, porém um grupo evangélico promoveu a invasão da área. As áreas de pasto da Gleba já foram todas ocupadas por mais de 80 famílias, puxadas por uma conhecida igreja evangélica brasileira, com povo vindo de todo lugar, com apoio de comerciantes locais.

Têm lugares que fazendeiro manda ocupar fazendeiro, seja para tomar ou o próprio fazendeiro para desmatar ilegalmente antes de expulsar as famílias. Assim, uma fazenda de 8.000 hectares perto da Gleba Bom Lugar, grilada por um político de Rondônia, também foi ocupada por 80 famílias.

Ainda, projetos de manejo de madeira facilitam as invasões em territórios tradicionais de castanhais, como no Projeto Agroextrativista de Antimary, situado no Sul do município de Boca do Acre, com acesso terrestre pelo Ramal 25 de Sena Madureira/AC. A colheita de castanha de quatro comunidades tradicionais (Remanso, Praia dos Paus, Sardinha e Santa Amélia) reduziu de 28.000 baldes, em 2010, para 9.000 baldes de castanha, em 2014. Isto significa, literalmente, que o castanhal está indo para o chão.

Em parte porque é muito fácil demarcar novas terras no interior das florestas. A linha que parte de Boca do Acre e vai até Montes, entra dentro do município de Lábrea. Tendo se convertido em local de atração da nova fronteira agrícola e de desmatamento. Lá já houve muitas mortes por conta da derrubada de árvores. No local a prática comum é derrubar a floresta diretamente, sem roçada prévia, para queimar depois e apenas plantar capim. Formar “lote” para se apossar do território. Como é comum, a impunidade do desmatamento e da violência andam juntas, no local se diz que já houve mais de dez mortes por causa de disputas por terra. O preço do alqueire da terra “por desbravar” é de 1x40, em relação ao preço da terra do centro de Rondônia, atraindo muitos especuladores de estados vizinhos.

Os representantes da CPT e do sindicato da região acreditam que alguns “terceiros” tentam desviar o foco da atenção para acima deles, espalhando o boato que as ocupações estão sendo mandadas por eles. Apesar de ter desmentido o fato, por esta causa lideranças do sindicato, da CPT e da organização dos seringueiros têm sido novamente ameaçados nos últimos meses de 2015. Não é novidade. A CPT já teve em fevereiro de 2014 a sede invadida em Boca do Acre. Porém, agora as ameaças acontecem em plena luz do dia. No dia 08 de junho de 2015, por volta das 15 horas, quatro homens armados compareceram na sede do sindicato. Três deles entraram dentro e um ficou de fora, perguntando pelo representante da CPT. Liderando o grupo e acompanhado por dois capangas (o terceiro permaneceu na entrada) se apresentou o fazendeiro Zé Baiano: “Eu vim aqui para lhe conhecer. Não quero outra coisa, somente lhe conhecer. Sou o Zé Baiano. É você que está mandando entrar na minha terra?”

Segundo informações locais, residente em Porto Velho, além de ter outras fazendas em Rondônia, o Zé Honório, ou Zé Baiano, se diz dono de uma fazenda de 33.000 ha. no Ramal da Garrafa, Gleba Novo Axioma e Redenção, a cerca de 100 quilômetros de Boca do Acre, onde uma parte das terras foi ocupada por um grupo de sem terra.

Em outro dia, durante a manhã, um grupo que estava em reunião no sindicato teve que sair para a rua por causa de uma pessoa gritando bem alto para uma companheira que alguns deles “tinham que morrer, que a cabeça deles tinha que estar numa vara”. Conforme relato dos agentes pastorais e sindicalistas, tentaram sem sucesso fazer Boletim de Ocorrência sobre as ameaças na delegacia, onde foram quatro vezes sem conseguir. Depois disso, estando um representante da CPT em Manaus, um vizinho ligou comunicando que durante algumas noites dois indivíduos com uma moto estavam rondando na casa dele. A polícia militar, a pedido do Ministério Público Estadual e Federal, passou a realizar algumas rondas de vigilância no local.

Em anos recentes, um grupo sem terra conseguiu suspender uma liminar de reintegração de posse em Boca do Acre. Aí representantes dos fazendeiros foram para Manaus tentando conseguir mais apoio das autoridades para reprimir as ocupações. A Associação dos Pecuaristas já procurou, por duas vezes, o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM). Segundo os mesmos, haveria cinco reintegrações de posse na comarca de Boca do Acre, em 2014. Obtiveram apoio verbal do desembargador presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, Ari Jorge Moutinho, para revogação de um Provimento da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça, que previa manifestação prévia do Incra e ITEAM para concessão de liminares de reintegração de posse. O pedido também teve apoio da Secretária de Desenvolvimento Social do governo do estado.

Remover o provimento em nada vai ajudar, pois trata-se de uma sábia medida que prevê que, antes de despejar grupos de pequenos agricultores, o Incra e o Instituto Estadual da Terra sejam consultados pelo juiz sobre a situação legal da propriedade da área. Revogar este provimento não vai contribuir a pacificar a situação nem reduzir os conflitos. Ao contrário, vai acirrar as injustiças, reduzindo as informações e o contraditório para o exercício da justiça.

Em 2015, os pecuaristas voltaram a Manaus para realizarem outra entrevista com a nova presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), pedindo ainda maior repressão do poder Judiciário contra as ocupações de terras. Exagerando na nota, desta vez afirmaram existir 15 fazendas ocupadas em Boca do Acre.

É claro que não citaram que as ocupações realmente existentes na região eram todas em terras públicas griladas. Assim, Boca do Acre é uma das muitas áreas em disputa na Amazônia, que sob o peso da pressão econômica do mercado concentra a maior parte dos conflitos do campo do Brasil, sem que os cuidados com o meio ambiente e os direitos sociais, dos indígenas, seringueiros e pequenos camponeses sejam levados em conta pelo poder do Estado.

                        03 de novembro de 2015

Equipe da Articulação das CPT’s da Amazônia

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