COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

A Amazônia registrou cerca de 72% das ameaças de morte contra defensores dos direitos pela terra, pela água e pelo território. Confira reportagem da Amazônia Real sobre os casos.

 

Desde que se viu sem a escolta da Força Nacional de Segurança há sete meses, o pastor evangélico Antônio Vasconcelos, 59, passa a maior parte do tempo refugiado na Reserva Extrativista (Resex) do rio Ituxi, um afluente do Purus, no município de Lábrea, a 702 quilômetros de Manaus (AM). Vasconcelos disse à agência Amazônia Real que teme pela sua vida. Ele afirma que só deixa a reserva em situações excepcionais. Sai, discretamente, para participar de alguma reunião sobre as 14 comunidades rurais da resex que ele ajudou a fundar, em 2007. A criação da Resex do rio Ituxi provocou a ira de grileiros, madeireiros e fazendeiros ilegais, que passaram a persegui-lo e ameaçá-lo.

 

O pastor Antônio Vasconcelos é uma das 174 lideranças da Amazônia incluídas na lista de pessoas ameaçadas de morte do relatório “Conflitos no Campo Brasil 2013”, lançado na semana passada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

 

Na lista das pessoas ameaçadas da CPT estão incluídas outras duas lideranças da Resex Ituxi: Francisco Monteiro Duarte e Silvério Maciel. No entanto, Antônio Vasconcelos era o único do Amazonas que até outubro de 2013 tinha escolta policial diária por determinação da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH).

 

Segundo o relatório da CPT, o Pará é o Estado que tem o maior número de lideranças ameaçadas de morte em consequência de conflitos de campo. Um total de 46 pessoas, seguido dos Estados do Amazonas, com 40, Maranhão, 40, Mato Grosso, 27, Rondônia, 9, e o Acre com duas lideranças.

 

A CPT diz que, se for levada em consideração a relação das pessoas envolvidas em conflitos com a população rural de cada estado, a situação é preocupante.

 

“Na Amazônia, quase que numa monótona repetição, se concentram os maiores números da violência  contra a pessoa; 20 dos 34 assassinatos ocorreram na Amazônia Legal (59%); 174 das 241 pessoas ameaçadas de morte vivem na Amazônia (72%). Ali também vivem 63 dos 143 presos ( 44%), e 129 dos 243 agredidos, (53%)”, diz trecho do relatório.

 

Escolta suspensa

Durante dois anos, Antônio Vasconcelos ficou sob a proteção das guarnições da Força Nacional de Segurança após sofrer diversas ameaças e atentados. Cada passo seu era acompanhado por três ou quatro policiais.

 

Á frente de uma batalha para a criação da Resex do rio Ituxi, Vasconcelos mexeu com interesses de políticos e fazendeiros que ocupavam irregularmente terras públicas. Com apoio da CPT e outras entidades de direitos humanos, passou a receber escolta policial em 2011. Até que em agosto do ano passado, ele solicitou a suspensão da proteção alegando insatisfação com o tratamento “humilhante e agressivo” que recebia dos policiais.

 

Diferente de outras lideranças que, de diante da pressão das ameaças preferem ir embora de suas comunidades ou assentamentos agrários, Vasconcelos optou por continuar na Reserva Extrativista que ajudou a fundar e a regularizar.

 

“Estou há dois meses aqui na comunidade, com minha esposa. Estou dando um tempo para evitar algumas coisas (ameaças). Quando tenho que ir a Lábrea, eu vou, mas fico poucos dias. Tenho receio, pois na cidade eu ando de bicicleta e sempre que vejo uma moto perto de mim já acho que querem fazer alguma coisa”, relatou Vasconcelos, em entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, de um orelhão (telefone público) instalado há pouco mais de uma semana na comunidade onde vive atualmente.

 

Antes do orelhão, a comunicação com Antônio Vasconcelos era possível apenas quando ele estava em Lábrea, por meio de celular. Nas poucas vezes em que esteve na cidade desde que perdeu a escolta, Vasconcelos recebeu diversas ligações de números não identificados em seu aparelho. “Só faziam ligar, mas ninguém falava. Acho que é alguma pessoa que estava me observando e me monitorando”, conta.

 

O deslocamento da comunidade (o nome não será divulgado nesta matéria por medida de segurança) até Lábrea também ficou mais fácil agora que ele comprou uma voadeira com ajuda do filho. “Eu tinha um barquinho, mas levava três dias para chegar em Lábrea. Agora são oito horas de viagem de ida”, disse.

Mesmo sem escolta, Vasconcelos diz que continua no programa de proteção da SEDH. “O que me falam que eles continuam me acompanhando”, diz.

 

Sul sobre pressão

O sul do Amazonas é a região do Estado onde se registra o maior índice de conflitos agrários, com forte pressão de grilagem (fazendeiros que ocupam áreas públicas) e pistoleiros contratados para pressionar, ameaçar e até matar extrativistas e assentados da reforma agrária que resistem.

No relatório da CPT, das 40 pessoas ameaçadas em 2013 no Amazonas, 21 estão nos municípios de Canutama, Lábrea e Manicoré, todas localizadas no sul do Estado. Mas há também ameaçados de morte nos municípios de Itacoatiara, Novo Airão e Presidente Figueiredo, além da capital Manaus, os quatro na região central do Estado.

 

Uma das que permanecem na lista, mesmo já tendo saído de seu antigo assentamento, é a agricultora Nilcilene Miguel de Lima, 47. Há pouco mais de dois anos, Nilcilene também perdeu a escolta da Força Nacional de Segurança e teve que fugir de seu assentamento, localizado na Gleba Gedeão, em Lábrea. Hoje, ela vive em uma área cuja localização não pode ser divulgada.

 

A agência Amazônia Real conseguiu falar com Nilcilene, que continua acompanhando, mesmo de longe, os acontecimentos de seu antigo assentamento.

“Soube que Gedeão virou fazenda. Não tem mais assentado. Eram mais de 160 famílias que foram expulsas por quem ocupa o local hoje. Não tem mais ninguém dos antigos seringueiros”, contou Nilcilene. Segundo ela, o assentamento Gedeão só existe no papel.

 

“Esses fazendeiros conseguiram ficar. Só uma pessoa do antigo assentamento permanece, acuada pelos fazendeiros. É uma senhora que é ‘muda’. ‘Muda’ porque ela vê, mas prefere não falar nada para não ser expulsa também”, disse Nilcilene.

 

Segundo o relatório da CPT, com ligeira redução em relação a 2012 (-11%), os conflitos por terra em 2013 atingiram 35.801 famílias na Amazônia Legal, pressionadas para abandonar suas terras. No Acre e Tocantins, as ocorrências de violência contra a Ocupação e a Posse cresceram. No Acre, o número de famílias envolvidas passou de 3.310 para 5.036 famílias, 53%; no Tocantins de 1.456 para 3.682, 153%.

 

Para a CPT, “as violências denunciam que muitas áreas da Amazônia continuam sendo terra sem lei, palco habitual de atuação de pistoleiros impondo pela força os interesses dos poderosos”.

 

Impunidade e omissão

“Enquanto houver impunidade e omissão, os ameaçados têm que fugir e quem ameaça e expulsa permanece”, diz Maria Petronila Neto, coordenadora da CPT em Rondônia.

 

Maria Petronila conhece bem a realidade do sul do Amazonas, tendo em vista que fica na divisa com Rondônia. Ela conta que alguns assentamentos, como o Projeto de Assentamento Florestal Curuquetê, em Lábrea, estão se esvaziando. A principal liderança, Marlon de Oliveira, passou o ano de 2012 sendo ameaçada, até que em 2013 decidiu ir embora.

 

O PAF Curuquetê ganhou fama há quase três anos, quando sua principal liderança, Adelino Ramos, o Dinho, ex-integrante do grupo conhecido anos atrás como Movimento Camponês Corumbiara, foi assassinado por pistoleiros.

 

“O Marlon assumiu a liderança no lugar do Dinho, mas ele não quis arriscar morrer. Teve que abandonar o local e agora mora em uma cidade de Rondônia. Enquanto isso, os ameaçadores continuam sem punição, muitos deles até mesmo com a cumplicidade de policiais. São situações de impunidade que fazem com que as pessoas saem matando por aí”, conta a coordenadora da CPT em Rondônia.

 

No capítulo “Conflitos e violência na Amazônia Legal” do relatório da CPT, Inaldo Vieira dos Santos, Darlene Braga e Josep Iborra Plansi afirmam que a grilagem é uma das principais causas dos conflitos agrários. “A fronteira agrícola avança pela floresta, puxada principalmente por grileiros e madeireiros, sem respeitar reservas naturais, nem territórios tradicionais, especialmente na região do Sul do Amazonas (Lábrea e Humaitá)”, diz trecho do relatório.

O relatório informa que os Estados onde a área em disputa é maior são Pará (1.651.109 ha), Amazonas (1.107.682 ha) e Mato Grosso (400.885 ha). E que em alguns estados cresce a pressão pela redução de áreas de reserva florestal.

 

Os autores também criticam duramente o programa de regularização fundiária Terra Legal, do governo federal. “A bandeira da regularização fundiária desenvolvida pelo Programa Terra Legal, que deveria recuperar a iniciativa pública no imenso território amazônico, consagra a pilhagem existente na Amazônia, a grilagem e a corrida por terras nas últimas décadas. Beneficiando alguns pequenos posseiros, a maior parte das áreas cadastradas é de grandes grileiros, que se apossaram da maior parte das Terras da União”, diz outro trecho.

 

Atualmente, o Ministério Público Federal no Amazonas acompanha, alguns deles com inquérito na Polícia Federal, 25 casos de conflitos agrários e grilagem no Estado.

 

Regularização fundiária

A agência Amazônia Real procurou o Programa Terra Legal e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para os órgãos comentarem o assunto e responder os questionamentos feitos pelos entrevistados. Até a publicação desta matéria, apenas a assessoria do Terra Legal havia se manifestado. Alguns questionamentos, contudo, foram atribuídos como sendo de competência do Incra. Leia as respostas enviadas pela assessoria do Terra Legal às perguntas enviadas por email.

 

De que maneira o Terra Legal vem atuando no sul do Amazonas, especialmente nas áreas de maior pressão?

O Programa Terra Legal atua de forma permanente na regularização fundiária de terras não destinadas da União em toda a Amazônia Legal. O Programa do Ministério do Desenvolvimento Agrário já concluiu o georreferenciamento da gleba Iquiri e o georreferenciamento de parcelas ocupadas por agricultores dentro da gleba em questão, mas fora do perímetro de assentamentos.

 

Nas contas do Terra Legal, quantos assentados continuam vivendo no assentamento Gedeão?

Não se aplica. Área de responsabilidade do Incra.

 

Quando foi a última atuação do Terra Legal naquele assentamento, bem como nos demais da região de Lábrea e outros municípios do sul do AM (Boca do Acre, Humaitá, Manicoré)?

O Terra Legal atua de forma contínua em toda as terras federais não destinadas na Amazônia Legal. Na área em questão, o programa do MDA (Ministério de Desenvolvimento Agrário) está realizando o georreferenciamento de glebas e perímetros de parcelas. Este processo é acompanhando e fiscalizado por servidores do Incra. Também é importante notar que todo o trabalho do Terra Legal é monitorado pela sociedade civil e pelo Ministério Público. Na região já existem mais de 500 peças técnicas (imóveis georreferenciados) e conforme o plano de trabalho aprovado pelo Grupo Executivo Estadual (GEE) e do Grupo de Acompanhamento e Controle Social (GACS) a previsão é que no próximo mês seja feita a instrução processual.

 

Foi identificada, de fato, a presença de fazendeiros em terra da União em alguma visita de técnicos do Terra Legal naquela área? Quando? Se sim, o que está sendo feito para retirá-los?

Não se aplica. Área de responsabilidade do Incra.

Save
Cookies user preferences
We use cookies to ensure you to get the best experience on our website. If you decline the use of cookies, this website may not function as expected.
Accept all
Decline all
Read more
Analytics
Tools used to analyze the data to measure the effectiveness of a website and to understand how it works.
Google Analytics
Accept
Decline
Unknown
Unknown
Accept
Decline