COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Pelo menos 14 comunidades do sul do estado estiveram reunidas para denunciar conflitos, reafirmar suas ações de luta e resistência e celebrar conquistas

Texto: Amanda Costa/Assessoria de Comunicação da CPT Nacional e
Teresinha Menezes/CPT-PI

Foto: Gustavo Tavares -  Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

Em meio ao Cerrado piauiense, com suas paisagens de extensos chapadões, a terceira edição do Encontro do Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Piauí aconteceu entre os dias 27 e 29 de maio, no território Brejo do Miguel, município de Gilbués-PI, há aproximadamente 800 km de Teresina. O encontro foi realizado após dois anos sem se encontrarem devido a pandemia da Covid-19. Crianças, jovens e adultos puderam se encontrar, novamente, em espírito de comunhão e partilha.

Motivados pela força e esperança que brota da terra ancestral, estiveram presentes cerca de 100 pessoas, entre elas representantes dos territórios Brejo do Miguel e Melancias (município de Gilbués); Chupé I, Barra da Lagoa e Território Indígena Vão do Vico (município de Santa Filomena) e Morro D’água (município de Baixa Grande do Ribeiro); da Escola Família Agrícola Vale do Gurguéia (EFAVAG de Cristino Castro); do Assentamento Tabocas; do Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos (Currais), entre outros. Organizações sociais também contribuíram nas discussões, como o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a Associação de Advogados(as) de Trabalhadores(as) Rurais (AATR-BA), a CPT Piauí e CPT Goiás - da Articulação das CPT's do Cerrado, o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), a Agência 10envolvimento, e geraizeiros da Bahia.

O primeiro dia do Encontro teve início com uma mística que colocou a seguinte indagação, pela voz de Maria Bethânia: "De que serve ter um mapa, se o fim está traçado?". Desmatamento. Poluição. Agrotóxicos. Queimadas. Entre palavras grifadas em papéis, a juventude do coletivo apresentou as violências que sofrem os territórios invadidos pelo agronegócio. A resposta à provocação veio logo em seguida. Enquanto as palavras de violência queimavam sob chamas, versos ecoavam "que o caminho se faz entre o alvo e a seta". Vida. Água. Agroecologia. Proteção das nascentes. Produção de alimentos. Novas palavras e frases sinalizaram, dessa vez, a descoberta do caminho a ser seguido, o da resistência. Nessa mesma ocasião, embalados pelos sons do pandeiro, da zabumba, do chocalho e do triângulo, cada um dos presentes se apresentou em uma grande acolhida.
 

O segundo momento foi dedicado à escuta de cada um dos representantes das comunidades presentes sobre os diversos conflitos que afetam os seus territórios. "Esse caminho que vem da BR pra cá, não fazia esses arrodeios, não tinha mata burro, aí o fazendeiro, paulista, chegou aí, tirou a nossa estradinha, colocou arrodeio lá, colocou mata burro. Uma vez o nosso carro até caiu em um", contou Jeane, da comunidade Brejo do Miguel, que desde 2016 vem sendo impactada por ações de grileiros e empresas como Gás Butano e a Bradesco. O avanço da grilagem de terras e do cercamento das áreas de uso e trabalho em Brejo do Miguel traz diversos impactos à área de Cerrado e ameaça os modos tradicionais de produção. 

A comunidade ribeirinha-brejeira está localizada às margens do Rio Uruçuí Vermelho, um dos afluentes do Rio Parnaíba, fundamental para a manutenção e sobrevivência das demais comunidades no Piauí e Maranhão, e que é diretamente afetado pelos monocultivos transgênicos da soja, do algodão, do eucalipto e do milho. Em seu depoimento, Jeane relatou quando foi ao brejo para lavar roupa e encontrou a água vermelha. "Quando eu cheguei lá vi a água correndo na mão quase da cor da minha blusa. Aquele cheiro de jacaré, de peixe morto. Quando tá chovendo e tá correndo a água, fica aquele cheiro forte, e a gente sabe que é veneno, é veneno", completou.

Crianças brincando no brejo - Comunidade Melancias/Gilbués-PI. Foto: Lana Goetz - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

Adailton, companheiro de Jeane, comentou sobre a realidade da contaminação de agrotóxicos utilizados nas lavouras plantadas sob os chapadões. "O plantio que eles fazem de soja fica na nascente do brejo, aí tudo vai descendo e poluindo. Não prejudica só essa comunidade, prejudica todas, e essa água que desce dali vai despejar no rio Uruçuí Vermelho, depois vai pro Parnaíba e continua descendo", relatou. O anfitrião, porém, fez questão de falar sobre os êxitos da comunidade, como a colheita do plantio. "A safra foi muito boa esse ano, todo mundo colheu, todos estão com seu paiol de arroz. A gente plantou bastante mandioca, milho, feijão, arroz, e a colheita foi ótima, graças a Deus. A chuva não faltou".

Em todos os territórios que constituem o coletivo, as comunidades lutam principalmente pelo direito à titulação de suas terras. Até hoje, apenas a comunidade ribeirinha-brejeira Salto, no município de Bom Jesus, conquistou o seu Título Coletivo de Terras, por meio do Instituto de Terras do Piauí (Interpi), sendo a primeira a ter conquistado a titulação enquanto comunidade tradicional no Brasil. Atualmente, não existe uma legislação federal que proteja comunidades tradicionais que não sejam quilombola ou indígena. A conquista é fruto de uma articulação entre o Instituto do estado, a Comissão Pastoral da Terra Piauí e a Associação de Advogados(as) de Trabalhadores(as) Rurais da Bahia (AATR-BA), que seguem apoiando as demais comunidades, essas inseridas no mesmo processo de luta pela título.

A luta pela titulação dessas comunidades envolve reafirmar a história de famílias que há várias gerações fazem o uso coletivo da terra, produzem alimentos, criam animais e se sustentam da biodiversidade do Cerrado, especialmente de seus frutos, como o Buriti e a Macaúba. Na oportunidade do encontro, Luís, de Buriti Grande, fez um desabafo: “Não posso contar minha história porque alguém foi lá e apagou? Estamos escrevendo a nossa história. O progresso quis nos sufocar, nos expulsar, mas nós aprendemos, fomos atrás da informação, e nós estamos aqui".

Território Cabeceiras- Gilbués-PI. Foto: Gustavo Tavares - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

A programação do encontro também abriu espaço para contribuições das organizações parceiras. Maurício Correia, advogado que assessora as comunidades do coletivo pela AATR-BA, falou sobre as perspectivas e desafios para os povos e comunidades tradicionais do Cerrado no atual contexto. "O povo conseguiu avançar e colocar na lei coisas que hoje são importantes para a gente disputar. O que está na lei não está dado. Está escrito lá na constituição: o povo indígena tem direito ao usufruto permanente a suas terras tradicionalmente ocupadas. Mas basta assistir televisão todo dia para ver que o fato de estar escrito não é o que necessariamente acontece na realidade. Essa diferença é só a luta que vai aproximar o que está escrito no direito e aquilo que é a realidade".

Em seguida, a antropóloga do Instituto de Terras do Piauí, Leslye Ursini, teceu apontamentos em relação aos conceitos de território e tradicionalidades, pensando nos processos de Regularização Fundiária. De acordo com ela, "o tradicional, na vida das comunidades, é o jeito de fazer. Ele leva tempo? Leva um pouco. Leva três, quatro gerações? Não se sabe", explicando que há determinação de tempo exata para definir quando o que é  uma população ou território se torna tradicional, por exemplo.

Leslye explica, ainda, que o território tradicional é uma terra coletiva em que as relações da comunidade estão projetadas, uma localidade que expressa a organização social da comunidade. Neste sentido, o tradicional se configura como algo que não está escrito em lugar nenhum, se dá na forma de fazer, e que às vezes é questionada por quem se diz dono do conhecimento. Numa perspectiva de políticas públicas, Lesley afirma que um território - seja ele indígena, quilombola ou tradicional -, "é uma terra que não é pra voltar pro mercado".

Sobre territorialidade, a antropóloga define enquanto "uma expressão do território, como cada comunidade se relaciona", e enfatiza que esta está envolvida dentro da identidade da comunidade. "Tem uma coisa na legislação que é a auto identificação. Não precisa alguém de fora ir lá e opinar. Não existe mais isso, é autodeclaratório, não precisa explicar. A auto identificação é autonomia". De acordo com Leslye, todos estes conceitos de território, tradicionalidade e territorialidade estão ligados à identidade, que cada um atribui, individualmente, a partir de sua coletividade.

A cobertura fotográfica de todo o evento foi realizada pelos jovens que participaram de uma oficina sobre o direito da comunicação para as comunidades tradicionais, realizado nos dias 21 e 22 de maio na comunidade Riacho dos Cavalos, também em Gilbués-PI. A oficina foi realizada em parceria entre a CPT Piauí e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, com a assessoria dos fotógrafos João Ripper e Mariella Paulino e da jornalista Daniella Stefano. A atividade contou com a presença de 22 pessoas de diferentes comunidades e territórios da região, entre eles alunos da EFAVAG, indígenas Akroá Gamellas do território Vão do Vico e Morro D’água  e Ribeirinhos brejeiros do território Brejo do Miguel.

SAIBA MAIS: Comunicação é um direito das comunidades tradicionais 

Ampliação do coletivo

Comunidades que ainda não faziam parte do coletivo quiseram se somar à caminhada e solicitaram, durante o Encontro, as suas investiduras. São elas: Cabeceiras e Serra Partida (Município de Gilbués), Buriti Grande (Município de Bom Jesus), Chupé II e Angelim I e II (município de Santa Filomena). Representantes dessas comunidades pretendem integrar o coletivo, a fim de assumirem de forma conjunta o acompanhamento dos processos de discussões, articulações e resistências.

Comunidades reunidas em Brejo do Miguel - Gilbués-PI. Foto: Gustavo Tavares - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

O momento foi marcado pela reafirmação do que envolve pertencer ao Coletivo. Zulmira, indígena Akroá-Gamella do Território Vão do Vico, que faz parte da coordenação, disse: “o que estamos fazendo aqui é coisa séria e de respeito, o coletivo é partilhar. Quando tem um encontro, as coisas, tarefas e alimentos são partilhadas e temos que contribuir também, além de articular com a comunidade sobre as estratégias e demandas que acontecem".

O representante da comunidade de Melancias, Juarez Celestino, também acolheu os novos integrantes. “Nós nunca fechamos as portas pra ninguém. Para nós, são seis forças que estão chegando para aumentar nossa voz e ajudar na nossa caminhada” reforçou.

Romaria das Comunidades

No dia 29, o Encontro se encerrou com a I Romaria das Comunidades e uma caminhada até a comunidade Cabeceiras, ainda no município de Gilbués, onde aconteceu uma celebração eucarística, presidida por Dom Marcos Tavoni, bispo de Bom Jesus, juntamente com outros padres da diocese. Durante a Romaria, as famílias ecoaram os gritos que vem dos territórios, principalmente o grito por água, pela conservação dos rios da região.

Num gesto concreto, mudas de árvores nativas foram levadas até as proximidades da nascente do rio Uruçuí Preto para uma ação de reflorestamento. Entre uma extensa área de pastagem, as veredas - que se constituem como prenúncio das águas no Cerrado - resistem e guardam a água já rasa que nasce do solo, fonte de vida para inúmeras comunidades ao longo do rio que dá origem. Com a mesma força das águas que insistem em brotar, povos e comunidades tradicionais do Piauí lutam para manter seus territórios livres e produtivos!

Veja mais fotos: 

Marcha da I Romaria das Comunidades. Foto: Lana Goetz - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

Plantio de mudas nas proximidades da nascente do rio Uruçuí Preto. Foto: Lana Goetz - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

Plantio de mudas nas proximidades da nascente do rio Uruçuí Preto. Foto: Gustavo Tavres - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

Momento de partilha das organizações parceiras. Foto: Gustavo Tavres - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

Jovens contribuindo na alimentação do encontro. Foto: Gustavo Tavres - Grupo de Jovens pela Liberdade e Direitos

 

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