COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Há quase 40 anos sem justiça, Corte Interamericana de Direitos Humanos julgará o estado brasileiro pelo assassinato do advogado popular Gabriel Sales Pimenta, em 1982, no Pará.

Com informações da CPT-PA.

Em setembro de 2020, a Comissão Pastoral da Terra, junto ao Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), se reuniu com o Estado brasileiro para discutir sobre o cumprimento das recomendações emitidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em seu Relatório de Mérito, após denúncia apresentada, em 2006, sobre o caso do assassinato de Gabriel Sales Pimenta, morto com três tiros nas costas na cidade de Marabá, sudeste do estado do Pará.

Na oportunidade, foi demonstrado a falta de implementação de todas as recomendações e as organizações solicitaram, conjuntamente com o representante da família, o irmão de Gabriel e também advogado Rafael Sales Pimenta, que o caso fosse enviado pela CIDH à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em reconhecimento à inércia do Estado brasileiro em implementar as recomendações emitidas, a CIDH apresentou, em 04 de dezembro de 2020, o caso perante a Corte e este será julgado nos próximos dias 22 e 23 de março, das 11h às 15h (horário de Brasília). O julgamento poderá ser acompanhado pelo canal da Corte IDH no Youtube e também no Facebook.

O caso 

No dia 18 de julho de 1982, o advogado Gabriel Sales Pimenta foi assassinado por volta das 22h30, na cidade de Marabá, no Pará. O advogado foi alvejado por 3 tiros disparados pelas costas quando caminhava pela rua em companhia de um casal de amigos, morrendo instantaneamente, sem chegar a receber socorro médico. Ele tinha acabado de participar de uma convenção do MDB, partido político que reunia as principais forças de esquerda da época. 

Gabriel Sales Pimenta chegou em Marabá no início do ano de 1981, com 26 anos de idade. Inicialmente contratado pela diocese de Marabá, passou a atuar juridicamente, na defesa de posseiros que lutavam pela terra e famílias pobres vítimas de violação de seus direitos. Também foi advogado popular do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá e passou a acompanhar o conflito na região conhecida como Castanhal Pau Seco, promovendo ações judiciais em defesa de posseiros, contra os latifundiários.

Em 1980, o GETAT (Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins), órgão federal responsável pela execução da política fundiária na região, estabeleceu os limites precisos dos imóveis Castanhal Fortaleza I e II, adquiridos na época pelos fazendeiros e madeireiros Manoel Cardoso Neto, conhecido como ‘Nelito’ e José Pereira da Nóbrega, conhecido como ‘Marinheiro’. 

A medição oficial identificou uma área remanescente de 1.201 hectares, considerada devoluta, a qual foi arrecadada e incorporada ao patrimônio da União, estando afetada para uso do GETAT. Precisamente nesta área arrecadada, encontravam-se cerca de 160 famílias de posseiros que, ao longo dos anos 70 haviam se estabelecido no local. Grande parte destes posseiros recebeu, no biênio 1979-1980, licenças de ocupação (LO) e títulos definitivos de propriedade (TD), todos regularmente expedidos pelo GETAT.

A partir de julho de 1980, iniciou-se, por parte de Nelito e Marinheiro, uma campanha crescente de ações violentas contra os posseiros assentados pelo GETAT, tudo com o objetivo de expulsá-los da área. Em 20 de novembro de 1981, Gabriel Pimenta impetrou um Mandado de Segurança no Tribunal de Justiça do Estado Pará contra a expulsão ilegal das famílias ocorrida duas semanas antes na área. 

O relator do mandado de segurança, desembargador Ary da Mota Silveira, concedeu a medida liminar solicitada, tornando sem efeito a reintegração de posse e determinando o retorno das 160 famílias para suas áreas originais. A sentença conseguida pelo jovem advogado em favor dos posseiros, nesse momento, se transformaria em uma sentença de morte contra ele.

No início de julho de 1982, Nelito e Marinheiro decidiram dar início à última tentativa de intimidar os posseiros e Gabriel Pimenta. A perseguição começou a ser comandada pessoal e diretamente pelos dois e as ameaças contra Gabriel Pimenta eram cada vez mais objetivas, até que se concretizaram quando foi alvejado por um pistoleiro com três tiros pelas costas, produzindo sua morte instantânea. 

Triunfo da impunidade 

Apenas em 2002 a prisão preventiva de Nelito, acusado do crime, foi decretada. Porém, após tentativas frustradas de realização da sessão de julgamento, Nelito permaneceu durante quatro anos sem nenhuma iniciativa adotada pelas autoridades do Estado do Pará, no sentido de determinar que a polícia civil pudesse cumprir o mandado de prisão.

Foi quando a equipe de assessoria jurídica da CPT decidiu então solicitar, em audiência pública junto ao Ministro da Justiça do governo federal, Dr Márcio Tomas Bastos, que a Polícia Federal pudesse entrar no caso e cumprir a ordem de prisão. O ministro concordou com o pedido e no dia 2 de abril de 2006, a Polícia Federal prendeu ‘Nelito’, encontrando-o na fazenda Rio Rancho, localizada na cidade de Pintagui, Minas Gerais.

No entanto, em 12 de abril de 2006, o Ministério Público solicitou que fosse reconhecida e declarada a prescrição da pretensão punitiva em relação ao acusado ‘Nelito’. Seis dias depois foi determinada a suspensão da sessão de julgamento que seria realizada no dia 27 de abril. Em 08 de maio, foi concedida uma ordem de habeas corpus ao acusado, reconhecendo e declarando a prescrição da pretensão punitiva e consequente extinção de punibilidade em relação ao acusado, ainda revogando a prisão preventiva decretada pela autoridade judiciária.

O fazendeiro Nelito, mandante do assassinato do Advogado Gabriel Pimenta, foi posto definitivamente em liberdade. Triunfo total da impunidade! Encerrava-se, assim, sem o julgamento de nenhum dos três acusados denunciados,  a tramitação do processo criminal correspondente. 

Impunidade e violência no estado

A impunidade com relação aos crimes no campo no estado do Pará foi constatada não só por organismos locais e nacionais, mas também por organismos internacionais, como causa da violência.

Em 2006, o Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), junto a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em seu Relatório de Mérito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) concluiu que o Estado brasileiro é responsável pela violação dos direitos à vida, à justiça e ao direito de associação estabelecidos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; e dos direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais, e à proteção judicial estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Igualmente, a CIDH recomendou ao Estado que outorgue uma reparação integral aos familiares, que realize e conclua uma investigação de maneira diligente e eficaz e que tome medidas de não repetição, relacionadas com a prevenção de atos de violência e proteção de defensores de direitos humanos, incluindo o fortalecimento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) e a capacidade para investigar delitos contra defensores de direitos humanos.

A violência e a impunidade que marcou o caso do Advogado Gabriel Sales Pimenta, não foi um caso isolado, mas sim, uma prática que persiste ao longo dos anos e que já vitimou mais de uma centena de lideranças, defensoras de direitos humanos no Estado do Pará.

De acordo com dados da CPT, no período de 1980 a 2020, foram assassinadas 115 lideranças defensoras de direitos humanos no Estado do Pará. Desse total, apenas 26 delas tiveram os processos concluídos e alguns dos responsáveis pelos crimes julgados. O que se percebe dos poucos casos julgados é que, a morosidade na tramitação dos processos não foi diferente do ocorrido em relação ao processo do advogado Gabriel Sales Pimenta. Os casos relatados abaixo retratam bem essa realidade. 

O número de assassinatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais, lideranças sindicais, advogados e religiosos no Pará revela que a impunidade é uma das causas geradoras da violência no campo. Com base no banco de dados da CPT nacional e da Ouvidoria Agrária Nacional, dos 937 assassinatos no campo no estado, ocorridos entre 1980 e 2020, apenas 442 resultaram em 295 inquéritos policiais ou ações penais, muitos inclusive, já prescritos pelo decurso do tempo. Quer dizer, 52,8% dos assassinatos no campo no período compreendido entre 1980 e 2020 sequer foram investigados.

Os dados mostraram ainda que dos 295 casos investigados, em apenas 62 (21%) deles os processos foram concluídos com o julgamento de algum responsável pelo crime. Dos casos julgados, 14 mandantes de crimes foram condenados e 13 absolvidos. Até hoje apenas um mandante cumpriu pena integralmente.

Como pode ser observado, a problemática em torno da impunidade alcança várias esferas do poder responsável por proteger a população, investigar os crimes e punir os criminosos. A impunidade funciona como uma espécie de licença para matar. O pistoleiro, assalariado do crime, que comete um assassinato a mando de alguém e não é punido não pensará duas vezes para aceitar outra empreitada criminosa. Da mesma forma, o fazendeiro que paga o pistoleiro, sem punição, continuará usando da violência para eliminar quem contrariar seus interesses.

A violência tem sido usada como forma de dominação para manter a concentração da terra, a acumulação de riquezas e a exclusão social dos camponeses. 



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