Abertura da Marcha das Margaridas trouxe críticas ao governo federal e mensagens de esperança na construção de um novo país a partir de um olhar feminino.
(Ingrid Campos - CPP / fotos: Juliana Pesqueira - Proteja Amazônia e Méle Dorneles - ISPN)
A plenária da Câmara dos Deputados foi completamente tomada por mulheres do campo, das florestas e das águas, na manhã de ontem (13/08), numa Sessão Solene que deu início à Marcha das Margaridas. A sessão foi requerida pelas deputadas federais Érica Kokay (PT/DF) e Talíria Petrone (PSOL/RJ) e abriu espaço para falas fortes que além de celebrarem a importância da reunião de quase 100 mil mulheres na maior mobilização conjunta de mulheres da América Latina, também abriu espaço para duras críticas ao atual momento político vivido no país.
Tendo como tema desse ano, "Margaridas na Luta por um Brasil com Soberania Popular, Democracia, Justiça, Igualdade e Livre de Violência", a Marcha das Margaridas, que está em sua sexta edição, pela primeira vez não apresenta uma pauta de reivindicações. No lugar dela, as mulheres elaboraram um documento chamado de Plataforma Política. “As Margaridas entendem que não dá pra negociar com esse governo que retira o direito da classe trabalhadora. Aqui, nessa plataforma construída com várias discussões, está o desejo das trabalhadoras rurais em dizerem o modelo de sociedade que queremos construir”, explica a coordenadora da Marcha, Mazé Morais, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
“Esse é um momento de muita emoção. Desde 2015, nos últimos quatro anos, estivemos todo esse tempo em luta e acompanhamos todos esses retrocessos fazendo novas leituras e reflexões sobre esse momento do país. Continuamos firmes na luta, mesmo após a Reforma da Previdência”, afirmou a representante do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, Verônica Santana.
Essas leituras e reflexões estão também presentes na Plataforma Política. No documento estão expostas as ideias do tipo de sociedade e de país que as mulheres querem construir. “É momento de luta, resistência, mas também de proposição, em que queremos construir uma sociedade livre de violências contra as mulheres do campo, indígenas e negras”, explica Mazé Morais.
O evento serviu para fazer críticas ao atual governo de Bolsonaro e a recente aprovação da Reforma da Previdência no Congresso. “Hoje a casa do povo se alegra em receber a Marcha em Brasília, essa casa que tem estado tão distante do povo”, afirmou a presidenta do PT e deputada federal, Gleisi Hoffman (PT/PR). “Depois da morte de Margarida, muitas conquistas foram conseguidas. Mas com o governo Bolsonaro, estamos voltando a lutar por coisas que já haviam sido direitos conquistados e essa Marcha é um afrontamento a esse governo destruidor de Bolsonaro”, criticou.
A representante do Movimento das Trabalhadoras Rurais, Camila Castro, também criticou as reformas realizadas pelo atual governo. “Nós mulheres estamos cansadas de morrer lutando e por isso voltamos às ruas de Brasília, para dizer que não nos sentimos representadas por esse parlamento que vota contra as nossas pautas. Nós lutamos pela permanência das mulheres no campo, tendo acesso às políticas públicas”, defendeu. Ela também recitou os versos da música “Ministra Machista”, da cantora paraense Lia Sophia para criticar a fala da Ministra Damares Alves sobre o abuso sofrido por meninas da ilha do Marajó. “Eu não preciso de calcinha/ Muito menos preconceito/ Sou cabocla, ribeirinha / Cê nem sabe como eu penso/ Minhas roupas ou a falta delas/ Não me machucam, não me ferem / Mas a sua misoginia/ Faz culpada quem é vítima”.
A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Débora Duprat também alertou para a importância das mulheres não reproduzirem um discurso machista. “Não basta sermos mulheres, só seremos mulheres se estivermos comprometidas contra todo tipo de violência. Somos mulheres lutando contra a violência contra o nosso corpo”. A procuradora parabenizou a realização da marcha e se disse uma entusiasta das mobilizações de rua. “Eu sou uma entusiasta das Marchas. A ocupação do espaço das ruas é fundamental para avançarmos na luta pelos direitos”. Ela também alertou para as ameaças à Constituição Federal de 1988. “A Constituição de 88 está ameaçada porque ela traz em todo o seu texto a defesa da democracia”, analisa Duprat. Ela vê no momento atual semelhanças com o período em que a trabalhadora rural Margarida Alves foi assassinada. “Estamos nos aproximando do tempo de Margarida Alves, o tempo em que se mata tudo que não é hegemonia. Queremos parabenizar as Margaridas por dizerem não a todos esses retrocessos que estão em curso”, finalizou.
Uma das falas mais emocionantes foi feita pela conterrânea e contemporânea de Margarida Alves, a repentista e poetisa Maria da Soledade Leite, que relembrou a luta da camponesa assassinada que nomeia a marcha realizada pelas mulheres. “Esse dia é importante, principalmente pra mim, que há 36 anos vivenciei esse quadro doloroso. É tão triste pensarmos que ainda existe na nossa pátria gente tão perversa. Margarida não tentou tomar nada de ninguém. Margarida lutou pelos trabalhadores rurais e pelas crianças que passavam fome. Margarida lutava para que o filho do trabalhador tivesse o direito de estudar um dia e tivesse direito à sua plantação. Dói no nosso coração e na nossa alma vivermos 36 anos de impunidade. Será que vamos voltar à escravidão?”, questionou a poetisa, lendo em seguida o poema que fez em homenagem à sindicalista.
Apesar da preocupação com o atual momento político, a esperança na construção de outro país foi ecoada pelas participantes. “Esse país tem que mudar a partir do que estamos construindo a partir do nosso território. Isso representa o verdadeiro Brasil”, defendeu Verônica que teve a sua fala completada pela Mazé. “Nós mulheres seremos rebeldia e da luta não sairemos”.
Mulheres indígenas
Lideranças indígenas do parlamento e da Marcha das Mulheres Indígenas participaram da Sessão Solene e falaram da importância da ocupação desses espaços pelas mulheres. “Para nós, mulheres indígenas, é super importante estarmos realizando a I Marcha das Mulheres Indígenas, justamente porque precisamos avançar na participação das mulheres, porque nós trazemos o nosso olhar e está faltando ao nosso país e à nossa cidade incluir mais as mulheres e a nossa visão que tem toda uma especificidade, um olhar mais voltado para a coletividade”, defendeu a deputada federal Joênia Wapichana (REDE/RR), primeira mulher indígena a ocupar o cargo. Ela defendeu ainda a ampliação da participação indígena no parlamento. “É preciso trazer a visão indígena para humanizar as decisões dessa casa”.
Participantes da Marcha Indígena, ocorrida na manhã do dia de ontem, ainda se juntaram às Mulheres da Marcha das Margaridas na sessão solene. A liderança indígena Sonia Guajajara, do povo Guajajara do Maranhão iniciou sua fala citando o tema da I Marcha das Mulheres Indígenas “Território: nosso corpo, nosso espírito”, que foi repetido em resposta pelas indígenas que estavam no plenário. “Estamos aqui, mulheres indígenas de todo o Brasil, somos 113 povos diferentes vindos de todos os estados brasileiros, tendo como tema, ‘Território: nosso corpo, nosso espírito’. Aqui, nós nos juntamos à Marcha das Margaridas. Selamos o compromisso de que depois da fala do presidente, de que nenhum território indígena seria demarcado, ele declarou guerra contra nós”, defendeu sob fortes aplausos. “Enquanto povos originários, estamos aqui para sermos respeitados. Estamos juntas e seguimos em marcha. Enquanto ferir a nossa existência, nós seremos resistência”, concluiu tendo ao fundo os gritos de “Sônia presidenta”.
Acampamento e abertura
O Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, em Brasília, estava completamente tomado pelas várias caravanas de todas partes do país que vieram participar da Marcha. Durante a tarde de ontem, as Margaridas participaram de rodas de formação, venderam suas produções na Mostra de Saberes e Sabores e se prepararam para o Ato Político Cultural de abertura, que teve muita música e dança, realizado na noite de ontem.
Uma das participantes foi a marisqueira e quilombola de Sergipe, Gilsa Maria Silva. Ela faz parte há cinco anos do Movimento das Marisqueiras de Sergipe e está participando pela primeira vez da Marcha das Margaridas. Apesar do cansaço após os vários dias de viagem, a marisqueira vê no evento o fortalecimento da esperança. “Nessa marcha a gente conhece gente de muitos lugares e de muitas cores. Aqui, a gente vê também que não estamos sozinhas”. Cercas que impedem o acesso aos mangues e doenças causadas pelo contato excessivo com a lama são algumas das preocupações das marisqueiras, por isso a Reforma da Previdência aprovada recentemente pela Câmara dos Deputados preocupa a pescadora. “Na palestra sobre Previdência Social, ficamos sabendo sobre os nossos direitos, que esse presidente quer tirar”. Gilsa também acredita que o impacto da reforma não atinge apenas as pescadoras, mas todas as classes sociais. “Aqui a gente vê que precisa se juntar, se coligar com todos os movimentos para dar força pra gente, orientar e para nos apoiar para seguir em frente”, defendeu.