COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Assessoria de Comunicação - CPT Regional Nordeste 2

A Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 (CPT NE2) faz uma análise das principais questões que impactaram os povos da terra, das águas e das florestas em 2024, ano marcado por importantes lutas e conquistas, mas também por desafios que foram especialmente evidentes na área ambiental e na reforma agrária. Por mais um ano, o governo não avançou nas necessárias desapropriações de terras e nas demarcações de territórios tradicionais, medidas fundamentais para combater a fome e promover transformações profundas na estrutura fundiária do país, e sem as quais persistirão os graves e históricos problemas que afligem o povo brasileiro. Diante desse cenário, é preciso lembrar: sem a democratização do acesso à terra não há democracia no Brasil.  

Para dificultar ainda mais a marcha pelas necessárias transformações sociais, uma ordem mundial marcada por valores fascistas e perversos continuou a se alastrar como um vírus em 2024. Se, há alguns anos, a extrema-direita era apenas um espectro político à espreita, hoje ela assume um papel cada vez mais alarmante no país, desafiando profundamente a própria compreensão do que significa humanidade e civilização. Mesmo diante de acentuados obstáculos e das difíceis batalhas travadas, as comunidades camponesas renovaram as suas razões profundas para persistir na luta e para preservar a ESPERANÇA. 

Confira:

Reforma agrária, titulação e demarcação dos territórios tradicionais

O acesso à terra, garantido pela Constituição Federal por meio da desapropriação, titulação e demarcação, continuou sendo um dos principais desafios para alcançar justiça social e paz no campo em 2024. A ausência de ações efetivas nessas áreas perpetua as mais antigas chagas que marcam a história do Brasil: a concentração de terras e os persistentes conflitos agrários.

No segundo ano do terceiro mandato do governo Lula, a política de reforma agrária mostrou-se similar à de seus antecessores: não foi tratada como uma prioridade estratégica e estruturante para o país. As desapropriações de terras permaneceram muito distantes do mínimo necessário para atender às mais de 100 mil famílias sem-terra, assim como as demarcações de territórios pertencentes a povos e comunidades tradicionais. Faltou vontade firme até para resolver os graves conflitos agrários. Faltaram também recursos orçamentários adequados após mais de uma década de desmonte causado por governos anteriores. 

Em 2024, para a obtenção de terras por meio da desapropriação ou por compra direta, o Incra teve um orçamento bastante reduzido, de insignificantes R$ 520 milhões, sendo R$ 383 milhões previstos para famílias sem-terra e outros R$ 137 milhões para a titulação de territórios quilombolas. Em contraste, o governo concedeu cerca de R$30 bilhões só em isenções fiscais para empresas do agronegócio, um valor muito superior ao destinado à reforma agrária.  

Enquanto se omitia do dever constitucional de desapropriar terras descumpridoras da função social, o governo continuou oferecendo o crédito fundiário como “saída” e alternativa principal para a grande maioria das famílias camponesas que lutam por terra. Como resultado dessa política, a atuação governamental se restringiu aos quase inexistentes casos em que havia anuência ou interesse de grandes proprietários na desapropriação.

Entre os pontos positivos de 2024, destacam-se a abertura de diálogo, como a Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do MDA, a escuta das reivindicações e importantes anúncios, como o programa Terra da Gente, que promete uma espécie de “prateleira de terras”, e a Portaria Interministerial AGU/MDA/MF, que regulamenta o processo de adjudicação em favor da reforma agrária e permite a entrega direta de imóveis penhorados de grandes devedores à União. Essas medidas são fruto das intensas lutas de comunidades, organizações e movimentos sociais que clamam pela reforma agrária e denunciam que muitos conflitos agrários ocorrem em terras de empresas falidas com dívidas multimilionárias com o Estado. Embora esses anúncios sejam positivos, ainda não tiveram nenhum efeito prático e, além disso, devem ser considerados como complemento à política de reforma agrária já prevista na Constituição.

No que diz respeito aos investimentos para a agricultura familiar camponesa, o valor destinado ao Pronaf, em 2024, foi de  R$76 bilhões - 43,3% maior do que o anunciado na safra 2022/2023 e 6,2% maior do que o da safra passada, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Esse foi um avanço reconhecido pelas comunidades e organizações sociais do campo, mas é preciso alertar que persiste uma distribuição profundamente desigual e injusta dos investimentos e dos financiamentos com recursos públicos, pois o agronegócio, em 2024, recebeu R$400,58 bilhões apenas por meio do Plano Safra. 

Além disso, destacamos com grande preocupação o acordo firmado entre a União Europeia e o Mercosul, no final de 2024, que trará graves consequências para a agricultura camponesa no Brasil. Esse acordo reforça uma relação colonialista entre os blocos e fortalece o agronegócio, responsável por atrocidades ambientais e sociais irreparáveis. 

Enquanto o Estado tratar o latifúndio como um dogma e o agronegócio como o seu projeto para o campo brasileiro, o país não avançará no combate à fome, nem enfrentará de modo definitivo a injustiça social, a desigualdade, a violência, a devastação ambiental e o trabalho escravo no campo, do qual foram resgatados 441 trabalhadores apenas no primeiro semestre de 2024, segundo dados parciais da CPT. Enfrentar essas mazelas exige uma transformação radical da estrutura fundiária do país, com a desapropriação de terras e a demarcação de territórios tradicionais, uma tarefa essencial que, até o momento, não foi realizada pelo governo Lula.

Conflitos no campo

Segundo dados preliminares da CPT, o Brasil registrou 1.056 ocorrências de conflitos agrários no primeiro semestre de 2024. A maior parte desses conflitos poderia ser resolvida de forma rápida, caso o Incra e a Funai tivessem condições, orçamento e estrutura para atuar de maneira enérgica e eficaz, sobretudo nos casos que já se tornaram emblemáticos por persistirem durante anos, ainda que, paradoxalmente, sejam de fácil resolução, considerando que bastaria aplicar a legislação e a Constituição.

Um exemplo é o conflito relacionado às terras da falida Usina Frei Caneca, cuja dívida aos cofres públicos ultrapassa, em muito, o valor patrimonial dos seus imóveis rurais. Situada no município de Jaqueira, Mata Sul de Pernambuco, a área abriga mais de 1.500 famílias agricultoras posseiras que, apesar de morarem e produzirem no local há muitas gerações, lutam pelo direito de permanecer em suas terras, enquanto enfrentam uma série de atos violentos e ameaças perpetradas pela Agropecuária Mata Sul. A empresa é arrendatária do imóvel rural, que opera sob um contrato com evidentes sinais de falsidade ideológica e simulação. A intensidade da violência ocorrida no local nos últimos anos transformou o município de Jaqueira em um dos dez mais conflituosos do Brasil.

Outro aspecto preocupante destacado nos dados parciais da CPT foi o aumento recorde da violência relacionada à contaminação por agrotóxicos no país. Para o agronegócio, esses venenos já se consolidaram como verdadeiras armas químicas, utilizadas para inviabilizar a permanência de povos e comunidades que vivem, plantam e resistem em terras e territórios que lhes pertencem e que são alvos constantes de conflitos agrários. Somente no primeiro semestre de 2024, segundo os dados preliminares, houve 182 ocorrências de contaminação por agrotóxicos, o que representou um expressivo e absurdo aumento de 857,89% em comparação com o ano anterior, quando foram registrados 19 casos. A maior parte dessas ocorrências foi causada pela pulverização aérea de agrotóxicos, que afetou de forma severa a vida de diversas comunidades, suas plantações, solo e fontes de água. 

Os dados parciais ainda revelam que as famílias camponesas posseiras tornaram-se os principais alvos de violência nos conflitos por terra, com 235 registros, seguidas pelos povos indígenas (220), quilombolas (116) e sem-terra (92). Já no que diz respeito aos promotores da violência, pelo segundo ano consecutivo, os fazendeiros foram identificados como os principais responsáveis, com 339 ocorrências, seguidos pelos empresários (137), pelo próprio governo federal (88), por diversos governos estaduais (44) e por grileiros (33).

A situação só não foi mais grave em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que, desde a pandemia, obrigou os tribunais brasileiros a formar comissões de mediação para buscar alternativas ao mero despejo judicial de comunidades camponesas inteiras. Essa decisão reforçou perante os tribunais que é um direito constitucional que o Estado brasileiro garanta a permanência das famílias agricultoras nos imóveis onde residem e produzem há décadas. Quando isso não for possível, caso não haja condições de desapropriar e manter as comunidades em suas terras, o Estado deve assegurar uma área adequada para a transferência, evitando os meros e injustos despejos judiciais, historicamente tão comuns no país.

Embora o avanço no posicionamento do STF seja positivo, ele é apenas uma parte da solução para os profundos problemas fundiários brasileiros. A solução definitiva é aquela que povos, comunidades e suas organizações reivindicam: o governo federal deve honrar seus deveres constitucionais desapropriando terras e demarcando territórios. Para isso, é necessário assegurar orçamento adequado, infraestrutura e, acima de tudo, vontade política para implementar de fato a reforma agrária, algo que, até o momento, ainda não ocorreu neste terceiro mandato do Presidente Lula.

Ameaças à Casa Comum

2024 superou a temperatura média global de 2023, tornando-se, com isso, o ano mais quente desde que os registros de temperaturas começaram a ser feitos no mundo. “Estamos a caminho de um suicídio planetário”, alertou o professor Carlos Nobre, durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, COP 29, realizada em novembro no Azerbaijão. No Brasil, incêndios, ondas de calor, secas, inundações, deslizamentos e enchentes afetaram severamente o povo do campo e da cidade. Foram destaques a cheia no Rio Grande do Sul e as queimadas que devastaram o território nacional. 

Entre janeiro e setembro de 2024, 22,38 milhões de hectares foram consumidos pelo fogo no país, uma área maior do que muitos países europeus. Esse número representa um aumento de 150% em comparação ao mesmo período do ano anterior. Mais da metade dessa área (51%, ou 11,3 milhões de hectares) está situada na Amazônia. Enquanto a população segue vulnerável e perplexa diante da emergência climática, omite-se o fato de que grande parte dessas queimadas é provocada de forma criminosa, como estratégia para a abertura de novas fronteiras agrícolas. É imperativo, portanto, reafirmar que, no Brasil, o agronegócio desempenha um papel central no agravamento das mudanças climáticas. 

Por outro lado, o debate sobre o combate aos efeitos das mudanças climáticas, por mais um ano, resumiu-se às falsas soluções, como a implementação de megaempreendimentos eólicos e solares. Apresentados como “sustentáveis” e “verdes”, esses grandes projetos seguem as mesmas práticas capitalistas predatórias e devastadoras de sempre. No Pampa, na Caatinga e em áreas costeiras do Nordeste e do Sul, esses empreendimentos de energia solar e eólica, longe de serem limpos ou sustentáveis, têm sido grandes causadores de devastação ambiental e de desestruturação de comunidades inteiras.

No Oeste do Rio Grande do Norte, por exemplo, as usinas eólicas destruíram a produção de alimentos agroecológicos e as experiências de convivência com o semiárido de inúmeras famílias camponesas. Em algumas comunidades de Pernambuco, como Sobradinho, Lagoinha e Pau Ferro, situadas no município de Caetés, esses empreendimentos estão devastando, de modo irreversível, a Caatinga, a saúde e a vida de centenas de famílias que vivem no campo. Para agravar o quadro, o mar também se tornou alvo desses grandes empreendimentos. Em dezembro, o Senado Federal aprovou o texto-base do Projeto de Lei (PL) nº 576/2021, que regulamenta a exploração de energia eólica offshore no Brasil.

A tão falada “transição energética” está se transformando em uma verdadeira “transação energética”, já que o modelo de geração de energia renovável implementado no Brasil, a partir do sol e dos ventos, está provocando, em nome do lucro de poucas empresas, uma onda perversa de violação de direitos humanos, apropriação de territórios camponeses e devastação de biomas ameaçados e fundamentais para combater os efeitos das mudanças climáticas. 

Apesar de 2025 começar com grandes expectativas de avanço no tema, especialmente a partir da realização da COP 30, o país só conseguirá desviar seu curso em direção ao abismo se atender aos clamores dos povos do campo, abandonar o atual modelo de produção de energia a partir de fontes renováveis - igualmente nocivo ao meio ambiente e aos povos -  e agir firmemente para conter o avanço do agronegócio e seus malefícios e crimes predatórios. É imprescindível reconhecer, acima de tudo, que o combate aos efeitos destrutivos do sistema capitalista sobre a natureza e sobre a humanidade requer uma transformação radical, uma revolução que atente para o que povos e comunidades camponesas espalhados pelo Brasil e pelo mundo já estão fazendo para viver e cuidar da Casa Comum. 

Mobilizações

Por mais um ano, povos e comunidades camponesas do Brasil não abriram mão de seu papel de ocupar latifúndios, praças e ruas para denunciar a concentração de terras, a desigualdade, a injustiça social e a violência no campo. Mesmo diante de um governo reconhecidamente aberto ao diálogo e contrário à extrema-direita, prevaleceu o descontentamento em relação a tudo o que poderia ter sido realizado, mas não foi, para avançar na reforma agrária, na demarcação de territórios tradicionais e no fortalecimento da agricultura camponesa. De acordo com dados preliminares da CPT, no primeiro semestre de 2024 foram realizadas 295 manifestações de luta que mobilizaram 74.236 camponeses e camponesas em todo o país. Algumas dessas mobilizações ganharam repercussão nacional.

Em março, milhares de mulheres camponesas, somadas às que vivem na cidade, foram às ruas em todo o Brasil para dar um basta na violência; também nesse mesmo mês, foi realizada a 15ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, na cidade de Areial (PB); em abril, durante a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, o MST realizou 31 ocupações em diversos estados brasileiros; no mesmo mês, cerca de 9 mil indígenas, representantes de mais de 200 povos, mobilizaram-se em Brasília para marcar os 20 anos do Acampamento Terra Livre; em maio, foi a vez de mais de 10 mil agricultores e agricultoras familiares ocuparem a capital federal durante o 24º Grito da Terra Brasil; já o mês de setembro foi marcado pelos 30 anos do Grito dos(as) Excluídos(as), com mobilizações de canto a canto do país. 

Além de ocupar latifúndios, praças e ruas, diversos movimentos sociais decidiram levar a luta por mudanças para dentro das estruturas do Estado. Nesse contexto, cresceram as candidaturas lançadas por indígenas, sem-terra, quilombolas e sindicatos, com o objetivo de conquistar espaço em prefeituras e câmaras municipais. No entanto, é preciso reconhecer os limites para forjar transformações por dentro de um Estado cujas raízes permanecem profundamente colonialistas e capitalistas.

O cenário atual aponta para tempos difíceis, especialmente com as eleições de 2026 se aproximando. Mais do que nunca, é fundamental fortalecer, desde já, a mobilização em torno de um projeto popular capaz de romper com os valores nefastos da extrema-direita e com a lógica perversa do capitalismo. A tarefa exigirá dedicação cotidiana na luta pela transformação radical da sociedade, fundada na superação das desigualdades e opressões estruturais, na solidariedade, na justiça social e no cuidado com a Casa Comum. 

A esperança está no campo!

Ao fim de mais um ano, precisamos reconhecer que vivemos o aprofundamento de grandes desafios políticos, éticos e sociais. Enquanto os ricos e as elites burguesas seguem ostentando seus lucros, os/as empobrecidos/as e injustiçados/as seguem lutando incansavelmente por uma Terra sem Males. Mas a esperança não é uma palavra vazia, “um vago desejo de que as coisas corram bem. A esperança é uma certeza”, como afirma o Papa Francisco. Guardiões e promotores da esperança, os povos da terra, das águas e das florestas já estão forjando outro mundo, segundo princípios e valores de solidariedade, vida comunitária, cuidado com a Casa Comum e agroecologia. É preciso e urgente aprender com esses povos e reconhecer que as saídas para muitas mazelas sociais que precisamos superar imediatamente - como a fome, a devastação, a ganância capitalista - já foram apresentadas e estão sendo praticadas por eles. A esperança desses povos não é uma virtude passiva, que se limita a “esperar”, aguardando de braços cruzados ou suplicando ao divino para que as coisas aconteçam. Para os povos do campo, a esperança é uma virtude ativa e revolucionária, que impulsiona, motiva e anima a marcha por uma nova humanidade, já em curso. 

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