Retomada do povo Guarani Kaiowá na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina (MS).
Crédito: Ludmila Pereira - Agro é Fogo
Nesta segunda-feira (02/12), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) publica os dados parciais dos conflitos no campo brasileiro, registrados ao longo do 1º semestre de 2024 pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc).
O semestre apresentou menos vítimas da violência no campo em relação ao mesmo período no último ano, mas a conflitividade continua elevada, somada aos danos sofridos pelas comunidades rurais devido à crise climática e aos incêndios criminosos em seus territórios. Ao todo, foram registradas 1.056 ocorrências de conflitos no campo, sendo 872 conflitos pela terra, 125 conflitos pela água e 59 casos registrados de trabalho escravo.
Conflitos pela Terra
Houve uma pequena redução no número de conflitos pela terra (872) em comparação ao mesmo período de 2023, quando foram contabilizadas 938 ocorrências, mas os números revelam o retrato de uma realidade ainda grave, de altos índices de violência. A maioria foi de violências contra a ocupação e a posse (824), frente às 48 ações de resistência (ocupações, retomadas e acampamentos).
Conflito no Seringal Novo Natal, próximo à divisa entre os estados do Acre e Amazonas. Crédito: imagens da comunidade
Formas de violência como grilagem, invasão, omissão/conivência e pistolagem, apresentaram reduções no primeiro semestre de 2024, além do número de expulsões concretizadas (de 15 para 9). Contudo, houve aumento das ocorrências de ameaça de expulsão, que passaram de 44, em 2023, para 77, em 2024. No caso das ocorrências de pistolagem, mesmo com a redução significativa de 150 para 88, este é o segundo maior registro da última década, atrás apenas de 2023, quando ocorreu o número recorde dessa violência.
A violência decorrente da contaminação por agrotóxicos teve um crescimento alarmante, passando de 19 ocorrências em 2023 para 182 em 2024. A maior parte desses casos (156) ocorreu no estado do Maranhão, onde comunidades estão sofrendo severas consequências da pulverização aérea de veneno. Este tipo de violência, em específico, está inserido nos conflitos pela terra, pela água e na violência contra a pessoa.
Retomada do povo Guarani Kaiowá na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina (MS).
Crédito: Ludmila Pereira - Agro é Fogo
Quanto às maiores vítimas dos conflitos por terra, diferente do primeiro semestre de 2023, quando os povos indígenas foram os principais alvos de violência, os posseiros (famílias moradoras de comunidades tradicionais, mas ainda não têm a titulação da terra) ocupam o primeiro lugar (235) em 2024. Indígenas vêm em segundo (220), seguidos por quilombolas (116) e sem-terra (92). Quanto aos maiores causadores dessas violências, pelo segundo ano consecutivo, os fazendeiros lideram em 339 conflitos, seguidos por empresários (137), governo federal (88) e estaduais (44) e grileiros (33).
Conflitos pela Água
No primeiro semestre de 2024, foram registradas 125 ocorrências de Conflito pela Água, representando o 3° maior número de casos do primeiro semestre nos últimos 5 anos. Os principais tipos de violência no eixo Água são de “Uso e preservação” e “Barragens e Açudes”. Entre as situações de conflitos registradas, o “Não cumprimento de procedimentos legais” (de 33, em 2023, para 45 ocorrências em 2024), “Contaminação por agrotóxicos” (16 para 31) e “Destruição e/ou poluição” (24 para 29) são as que mais cresceram em relação ao ano anterior.
As principais vítimas dos conflitos pela água foram os povos indígenas, presentes em 35 casos registrados, seguidos respectivamente por quilombolas (24), posseiros (21), ribeirinhos (18) e pescadores (13). Já na categoria de Agente Causador, estão empresários (32), fazendeiros (26), hidrelétricas (23), mineradoras (19) e o Governo Federal (8), por meio de órgãos públicos que não cumprem procedimentos legais de garantia de políticas públicas aos povos e comunidades.
Trabalho Escravo
A partir dos dados compilados juntamente com a Campanha da CPT "De Olho Aberto para Não Virar Escravo", no primeiro semestre de 2024, percebe-se que houve uma redução significativa no número de casos de trabalho escravo e trabalhadores resgatados, após três anos consecutivos de crescimento. Nesse período, foram registrados 59 casos e 441 trabalhadores rurais resgatados, contra 98 casos e 1.395 pessoas resgatadas em 2023.
Pelo segundo ano consecutivo, Minas Gerais foi o estado com o maior número de casos de trabalho escravo no primeiro semestre do ano (20). Entretanto, o Amazonas liderou em relação ao número de trabalhadores libertados, com um total de 100 pessoas encontradas em condições análogas à escravidão em áreas de desmatamento e garimpo. As atividades com maior concentração de trabalhadores resgatados continuaram sendo de lavouras permanentes (209 pessoas), seguida do desmatamento (75), mineração (70), produção de carvão vegetal (44) e a pecuária (39), demonstrando a grande contribuição do agronegócio e da mineração para a perpetuação do trabalho análogo à escravidão.
É importante ressaltar que os números divulgados refletem apenas uma parte dos casos ocorridos em 2024, pois os dados só são consolidados após tramitação e validação pelos órgãos de fiscalização competentes.
Violência contra a pessoa
O primeiro semestre de 2024 foi marcado por uma redução no número de vítimas de violência contra a pessoa: 417 pessoas foram vítimas de violência em 216 ocorrências, quando no ano de 2023 foram 306 ações violentas, resultando em 840 vítimas, mais que o dobro deste ano.
Dentre as vítimas da violência, 65 são mulheres. O número pode ser maior, uma vez que, em muitos registros de violências sofridas de forma coletiva pelas comunidades, não são contabilizadas as vítimas a partir do gênero.
As principais violências contra a pessoa são as ameaças de morte (114), intimidação (112) e criminalização (70). Quando o recorte é de gênero, as mulheres são vítimas principalmente de intimidação, criminalização e ameaça de morte, mas também de outras violências que marcam o corpo feminino, tal como o aborto, que continuam sendo registradas. Não há registros de estupro no primeiro semestre de 2024, mas é importante lembrar da subnotificação desses casos, não só em contexto de conflitos no campo.
Os estados com mais registros de vítimas de violência contra a pessoa no primeiro semestre de 2024 foram Pará, Maranhão e Bahia. Quanto às mulheres vítimas de violência no campo, os maiores registros vêm do Pará, Maranhão e Mato Grosso.
Assassinatos
Houve uma diminuição no número de vítimas de assassinatos, sendo 6 no primeiro semestre, e 11 confirmados até o final de novembro. Destes, quase metade dos assassinatos foram cometidos por fazendeiros.
Dentre o total de vítimas deste tipo de violência extrema, foram 10 homens e 1 mulher, a liderança indígena Nega Pataxó. No dia 21 de janeiro de 2024, Nega Pataxó foi vítima da ação coordenada pelo grupo de ruralistas autodenominado “Invasão Zero”, denotando que, apesar da queda do número de assassinatos, 2024 se mostra um ano extremamente violento contra as comunidades e povos do campo por todo o país.
Apesar da redução no número total de assassinatos, até o fim de novembro, observa-se um aumento no número de casos nos estados do Pará, Santa Catarina e Tocantins. Em contrapartida, destacam-se, Amazonas, Goiás, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Roraima e Rio Grande do Sul, que registraram ocorrências de assassinatos em contexto de conflitos no campo em 2023, mas que, em 2024, até o mês de novembro, não registraram nenhum assassinato.
Em 4 dos casos de assassinatos de 2024, registrados até novembro (todos os 4 sob responsabilidade de fazendeiros), forças policiais atuaram como executoras ou apoiadoras aos executores. Além disso, 1 assassinato foi executado por um ex-policial militar, atuando enquanto segurança particular de um empresário, que comandou o crime.
Até o mês de novembro, de 20 possíveis casos de assassinatos averiguados pelo Cedoc e agentes pastorais, 9 casos (45%) ainda estão em análise. A dificuldade de se confirmar tais casos também é um reflexo da morosidade do Estado em investigar e punir os responsáveis.
Áreas de fronteira agrícola
Apesar das quedas nos índices de conflitos em âmbito nacional, houve aumento nos conflitos pela terra nas três principais regiões de avanço do agronegócio ao redor da Amazônia (Amacro, Matopiba e Amazônia Legal). Nos conflitos pela água, houve manutenção no número dos conflitos na Amacro e aumento nas outras duas regiões.
As formas de violência contra pessoas mais frequentes nas três regiões são:
- Amazônia Legal: Foram registrados 77 casos de Intimidação, 68 ocorrências de Criminalização e 30 pessoas diretamente afetadas por Contaminação por Agrotóxicos. Esta região concentra 7 dos 11 assassinatos em todo o país.
- Amacro: A região apresenta 10 pessoas Ameaçadas de Morte, 9 casos de Criminalização e 7 episódios de Intimidação.
- Matopiba: Mantendo a tendência de violência contra pessoas, a região registrou 42 Ameaças de Morte, 13 casos de Criminalização e 4 episódios de Intimidação.
A região do Matopiba – fronteira de expansão principalmente da soja nas divisas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – registrou um aumento em diversas formas de violência em comparação ao mesmo período de 2023. Neste ano, o desmatamento ilegal apresentou um crescimento de 16,67%, a destruição de roçados aumentou em 30%, as ameaças de despejo subiram 60%, enquanto as ameaças de expulsão registraram um aumento expressivo de 150%. Nesta região, também houve aumento na quantidade de vítimas da violência contra a pessoa, num movimento contrário ao analisado na Amacro e Amazônia Legal.
Crise Climática
Mesmo sendo computados como dados qualitativos, que não se somam à violência no campo, os impactos da crise climática foram sentidos pelas comunidades camponesas, quilombolas e indígenas, o que levou a equipe do Centro de Documentação a elaborar três dossiês: sobre as enchentes na região Sul; as secas na Amazônia; e os incêndios em todo o país.
No Rio Grande do Sul, estado atingido por fortes chuvas e inundações entre os meses de abril e maio, ao menos 5 assentamentos ficaram submersos e mais de 300 famílias camponesas foram afetadas, tanto pela chuva quanto pela perda das produções agroecológicas e animais. Cerca de 145 comunidades quilombolas foram impactadas em 70 municípios, afetando mais de 17 mil pessoas. Nas comunidades indígenas, mais de 9 aldeias do povo Guarani ficaram em situação crítica.
Diante dos impactos da enchente, houve muitas ações de solidariedade. Movimentos como o MST e a Missão Sementes de Solidariedade (organizada pela Cáritas e mais de 20 organizações, incluindo a CPT), protagonizaram também doações de sementes, mudas, alimentos e outros itens de necessidade básica para as famílias atingidas no campo e na cidade.
Em contrapartida às enchentes no Rio Grande do Sul, no Norte do país, são as secas dos rios que têm causado severos impactos às comunidades, sobretudo ribeirinhas e indígenas. No Acre, o começo do ano veio com fortes chuvas e um alagamento que levou flutuantes para países vizinhos, provocando impactos nas comunidades locais. Poucos meses depois, a situação se inverteu drasticamente, e não só o estado, mas toda a região passou a enfrentar as secas dos rios, acompanhadas dos incêndios criminosos e desmatamentos, prejudicando a navegação, a produção de alimentos, a pesca e a saúde das populações, dentre outros danos. Infelizmente, esta é uma tendência que se prolonga também para o segundo semestre.
Foram 100 casos de desmatamento ilegal, dos quais 76% dos registros ocorreram na Amazônia Legal, sendo as comunidades indígenas as que mais sofreram com a devastação do fogo. O estado com maior registro de desmatamento é o Amazonas com 19 ocorrências, seguido por Pará, com 17; Maranhão, com 14 e Rondônia, com 12. As principais vítimas, não apenas nessa região, são comunidades indígenas, seguidas por quilombolas e extrativistas. Ao todo, 37% dos casos de desmatamento ilegal registrados foram em territórios indígenas.
Quanto aos incêndios criminosos, foram identificados 20 casos. Diferente de anos anteriores, em que houve grande dificuldade de se identificar os agentes causadores, no primeiro semestre de 2024, 85% foram identificados, sendo metade dos incêndios criminosos causados por fazendeiros. Os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas também denunciam a atuação do Estado, que em suas diferentes esferas é também responsável pelos cenários da violência aliada à destruição ambiental. Os grandes empreendimentos, sejam eles para exploração de minério, petróleo e gás, geração de energia ou escoamento de commodities, são responsáveis por uma parcela considerável dos conflitos, vide o número de violências relacionadas não só à ausência de consulta prévia nos territórios, como a diversos outros impactos dessas atividades.
“Neste ano de 2024, estamos sofrendo muito com as mudanças climáticas em nosso território. Além dos incêndios, os rios estão secos, as pessoas estão sem água. Em alguns locais, o rio é uma lama de tanta destruição com o garimpo. O rio Marupá secou, os rios estão secando mais do que todos os limites de antes. Precisamos lutar por água potável para nosso povo e condições de vida, mesmo com as mudanças climáticas.”
(Relato do povo Munduruku no Alto Tapajós/PA)
Manifestações
No primeiro semestre de 2024, foram registradas 295 manifestações de luta, representando o menor número do primeiro semestre na última década. Contudo, apesar da redução no número de manifestações, o volume de participantes aumentou, passando de 53.793 pessoas em 2023 para 74.236 em 2024. Assim, é possível afirmar que, após o pico de manifestações registrado em 2021, os anos subsequentes apresentam uma tendência de diminuição no número total de manifestações por todo o país.
Metodologia
Os dados do 1º semestre servem como instrumento de avaliação das tendências possíveis dos conflitos no campo no ano em curso e servem para contribuir com as análises presentes no relatório anual “Conflitos no Campo Brasil", a ser lançado no mês de abril de 2025. Os levantamentos são realizados com base nas fontes coletadas pelas/os agentes da CPT em todo o Brasil e também as fontes coletadas por meio da clipagem junto à imprensa em geral, bem como em divulgações de órgãos públicos, movimentos sociais e organizações parceiras da CPT ao longo do ano.
Vale ressaltar que o conceito de conflito para a CPT não é sinônimo de violência. Seguindo o próprio fundamento teológico da tarefa de documentar, o conflito compreende um contexto de disputa, presente no cotidiano, que inclui também as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes contextos, na luta pela terra, pela água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção.