COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Por Assessoria de comunicação do Projeto Terra Roxa/CPT Alto Xingu

Créditos: Equipe CPT Alto Xingu

No sábado, dia 9 de novembro, ocorreu o seminário de abertura do “Projeto Terra Roxa” na Escola Jardim de Deus, localizada na comunidade. Nesta ocasião, que marca o início oficial do projeto, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que é a idealizadora da proposta, apresenta à comunidade os seus parceiros que ajudarão a executá-lo e também as atividades que serão realizadas por eles nos próximos meses.

Esse projeto da CPT contará com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). As duas instituições visam enfrentar o problema do trabalho análogo à de escravo por meio do fortalecimento da segurança alimentar e da produção da agricultura familiar local. O terrível problema da escravidão moderna afeta de forma muito significativa a realidade do Alto Xingu, especialmente em São Félix do Xingu, que é o segundo município com maior incidência de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão no estado do Pará, registrando 1.166 casos no período de 1995 a 2023.

A Terra Roxa

Créditos: Equipe CPT Alto Xingu

O local escolhido como ponto focal deste programa foi a Terra Roxa, por estar localizado em uma rota de acesso a muitas fazendas e já possuir certa organização interna que permite levar as atividades adiante. Uma comunidade que iniciou sua história quando os primeiros moradores ocuparam a região, em 2005. Na época, eram 115 famílias formadas essencialmente por migrantes de outros estados brasileiros – incluindo Maranhão, Bahia e Goiás. Essas pessoas foram atraídas por uma promessa de encontrar terras abundantes e melhores oportunidades de trabalho. Uma retórica que não é verdadeira, mas se sustenta no imaginário popular sobre a Amazônia ao longo de várias décadas.

Embora esteja localizada em São Félix do Xingu, a Terra Roxa se distancia 130 quilômetros da sede do município, mas apenas 95 quilômetros de Tucumã, que é por onde ocorre boa parte das relações comerciais, além do acesso a alguns serviços públicos. Por isso é considerada uma área estratégica para a produção, já que sua relativa proximidade à cidade vizinha facilita o escoamento dos produtos. Entretanto, esse potencial transforma a área em um alvo de constante pressão dos grandes latifundiários da região, que contam com muita influência econômica e política, sempre tentando avançar sobre os pequenos agricultores.

Desde o começo, esse confronto afetou a existência da comunidade, que sofreu com ameaças e expulsões, como o fato ocorrido em 2007. Na ocasião, as cerca de 60 famílias que estavam acampadas foram despejadas, sem nenhum aviso prévio, pela polícia civil e tiveram seus pertences e sua produção destruídos.

“Nós fomos abordados, dizendo que era polícia. Pegaram e derrubaram todas as nossas coisas, derrubaram todos os nossos barracos. Tirou nós em mais de dez caminhões carregando daqui para o lugar do Incra, né? Ficamos na área ali do Incra. Fomos despejados, carregados, saímos crianças, mulheres. Deixamos tudo para trás, roças de arroz maduras, milho já colhendo. Ficou tudo. E eles tiraram nós com rapidez, dentro desses caminhões, jogados de qualquer jeito, fomos despejados ali. E ali nós ficamos 26 dias sofrendo ali, lutando. Foi quando nós recebemos a ordem do desembargador para voltar para cá de novo. Aí nós voltamos, ficamos debaixo da lona preta, no meio da estrada mesmo, sem ter condição de entrar nem na terra. Ficamos aguardando todo esse tempo”, narra a agricultora Maria Divina Queiroz da Rocha, uma das pioneiras na região.

As parcerias

Foi nesse momento difícil que a comunidade procurou pela primeira vez o apoio da CPT. No inicio, com um suporte jurídico, prestando assistência em um âmbito no qual a comunidade estava desamparada. E posteriormente com incentivo a agricultura familiar, pois as dificuldades encontradas por esses trabalhadores perduram até hoje e ficam ainda mais graves diante da falta de acesso às políticas públicas voltadas para a agricultura, como crédito rural necessário para financiar a produção ou assistência técnica adequada. Por isso, muitas famílias não conseguem obter sustento na sua própria terra e acabam obrigadas a oferecer sua mão de obra para as grandes fazendas vizinhas. Em consequência, os pequenos lotes ficam praticamente abandonados, prendendo os agricultores em um ciclo vicioso, onde se tornam cada vez mais dependentes do trabalho nas fazendas.

Está criado o cenário perfeito para superexploração do trabalho dos agricultores – não apenas a Terra Roxa, mas em todo o Alto Xingu –, que acabam submetidos a jornadas exaustivas, com pouca remuneração e, em muitos casos, trabalhando em condições insalubres. Algumas vezes constituindo dívidas intermináveis que continuam sempre crescendo. Formata-se uma relação de trabalho análoga à escravização.

Diante desse contexto, a Pastoral da Terra, com apoio do MPT, está sempre em busca de alternativas para ajudar os trabalhadores a romper esse ciclo. Na assistência à Terra Roxa, começou com questões pontuais, como a distribuição de cestas básicas durante a pandemia ou a criação de um viveiro coletivo para comunidade, até a assessoria à associação de trabalhadores na pressão junto ao poder público para construção de um novo prédio para a escola local. No entanto, persiste a necessidade de um projeto mais focado no enfrentamento dessa situação no Alto Xingu.

 “Em São Félix do Xingu nós temos vários resgates de trabalhadores em condições análogas a de escravo. Então, a CPT trouxe para a gente a necessidade de fixar os agricultores em suas terras para que eles não precisassem procurar trabalho nas fazendas, trabalhos mal remunerados, às vezes nem pagos. Trabalhos em condições péssimas de alojamento, às vezes dormindo em barraco”, explica a procuradora do MPT, Juliana Mafra. Por isso, o Ministério buscou a Pastoral da Terra como parceira para realizar um projeto que fortaleça a agricultura familiar e, ao mesmo, reduza os índices de trabalho escravo.

O projeto foi batizado oficialmente como "Fortalecimento do combate às condições análogas à escravidão no Assentamento Terra Roxa" e tem como objetivo principal ajudar as famílias agricultoras a encontrarem formas de sustento sem depender do trabalho nas fazendas vizinhas. De acordo com a coordenadora da CPT Alto Xingu, Agnes Kronenberg da Silva, o foco na agricultura familiar é muito importante, porque gera mudanças nas condições da vida das famílias ao longo prazo, garantindo a segurança alimentar. “A ideia é que o projeto ajude a melhorar as práticas agrícolas, fazer uma melhor gestão do seu lote, da sua produção. E assim a família pode viver bem no seu lote, sem ter precisão de pegar serviços, diárias nas fazendas da região. E, então, não corre o perigo de ser explorado nestes serviços, sofrer de situações humilhantes ou desumanas ou até ser escravizado”, esclarece.

As ações planejadas

 

Créditos: Equipe CPT Alto Xingu

A realização dessa proposta contará com a participação de alguns parceiros. O planejamento inclui um mapeamento das alternativas para geração de renda na região e a análise sobre quais seriam realmente possíveis de realizar e possuem viabilidade de mercado, levando em consideração a realidade econômica, social e ambiental da Terra Roxa. Esse estudo será realizado por uma equipe de técnicos especializados enviada pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), que depois irá apresentar os resultados para a comunidade de modo didático em linguagem acessível.

Na visão da Unifesspa, a melhor maneira de evitar que as pessoas caiam nas redes de trabalho escravo, é justamente combater aquilo que as torna vulneráveis ao trabalho escravo. Daí a importância de procurar formas de ampliar a renda dessas famílias. “Esperamos que isso ajude a comunidade a se fixar na terra, isso ajude a comunidade a se desviar das situações de vulnerabilidade e que isso ajude a comunidade a permanecer, enquanto coletivo, ali naquele território”, explica o professor Cristiano Bento da Silva, antropólogo docente do curso de Engenharia Florestal, que já é parceiro da CPT desde projetos anteriores sobre a temática. Ele salienta também que é muito importante o diálogo com a população local para não perder de vista o que a própria comunidade entende como importante. “A nossa ideia também é, sobretudo, partir dessa relação dialógica com a comunidade e procurar se aproximar ao máximo do ponto de vista deles. Não só do ponto de vista, mas também do que, culturalmente, pra eles importa em termos de projeto de geração de renda. Justamente para que depois eles não abandonem a iniciativa que foi apontada. Então a nossa ideia é fazer esse mapeamento, mas atentando para aquilo que para eles faz sentido”, argumenta o professor.

Uma segunda equipe técnica, liderada pelo economista José Maílson Marques da Graça, fará uma consultoria de economia na comunidade, onde irão analisar as condições socioeconômicas, demográficas e de acesso à politicas publicas entre os moradores. Esse mapeamento vai permitir entender melhor as condições em que vivem as famílias, quais suas necessidades em temas como saúde, educação, transporte, etc. e assim facilitar a proposição de políticas públicas do campo para a comunidade. Com o resultado desta pesquisa será possível ter uma ideia mais clara do que fazer para melhorar as condições de vida na Terra Roxa.

Ao mesmo tempo em que ocorrem essas pesquisas, a equipe da CPT irá realizar uma série de atividades junto à comunidade, com oficinas de formação e rodas de conversa, onde serão abordados importantes tópicos formativos. Entre os assuntos discutidos estão os direitos humanos, a violência contra a mulher, as formas de acesso às políticas públicas e as formas inaceitáveis de trabalho – especialmente o trabalho escravo e trabalho infantil. A equipe técnica também irá apresentar todo um programa de capacitação em práticas agroecológicas com o objetivo de auxiliar os agricultores a aproveitar ao máximo os recursos de seus lotes.

As expectativas

De acordo com a visão da OIT, trata-se de uma iniciativa fundamental para promover o trabalho decente e a melhor as condições de vida das famílias do Alto Xingu, que é uma região tão marcada pelos altos índices de trabalho escravo e vulnerabilidade social. São atividades que podem aumentar a autonomia econômica da comunidade e fortalecer a organização comunitária. “Este fortalecimento organizacional é uma estratégia fundamental para a superação da pobreza, pois permite que as famílias tenham maior controle sobre suas atividades econômicas e acesso a políticas públicas de apoio. A assistência técnica e a capacitação em práticas agroecológicas, oferecidas pelo projeto, buscam promover a produção sustentável de culturas como o cacau e a apicultura, que ajudam a diversificar as fontes de renda das famílias. A diversificação econômica, por sua vez, reduz a dependência de trabalhos precários e as condições que poderiam levar à exploração”, explica Erik Ferraz, oficial de projetos da OIT. “Esse projeto se alinha com o objetivo maior da OIT de combater a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, promovendo o trabalho decente como um direito básico e essencial para o desenvolvimento sustentável”, completa Ferraz.

O educador popular da CPT, Gilberto Santos, acrescenta que o fortalecimento da agricultura familiar é fundamental para proteger as famílias contra a superexploração. “Fortalecendo a agricultura familiar, estamos rompendo com o ciclo de trabalho escravo. É uma família a menos, é uma comunidade a menos que está nesse ciclo do trabalho escravo, com potencial para ser vítima do trabalho escravo”.

A presidenta da Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Terra Roxa, Maria Francisca da Rocha, demonstrou confiança nos resultados que serão alcançados pelo projeto, especialmente no âmbito do fortalecimento organizacional. “[Os parceiros] estão vindo, visitando, dialogando, conversando com os sócios, pra se organizar mais. Porque faz mais união para fortalecer o trabalho. A gente está se organizando pela associação. E a todo vapor, as pessoas que estão fora estão querendo se organizar, estão fazendo o cadastro. Então, está vendo que as coisas estão andando mais ligeiro do que antigamente”, enfatiza a representante da comunidade.

O seminário de abertura

O Projeto Terra Roxa teve seu marco inicial em um evento que, além de reunir os moradores, contou com música, arte e dança. A CPT e seus parceiros apresentaram as atividades planejadas e os representantes do MPT e da OIT marcaram presença virtual, saudando a comunidade por vídeo. Nos dias anteriores, realizou-se uma série de oficinas culturais em busca do fortalecimento da identidade e da autoestima da comunidade, tendo como instrumento de trabalho geotintas artesanais que foram coletadas por um mutirão dos moradores com ajuda da oficineira Carla Menegaz. As tintas fabricadas com diversas cores de terra foram utilizadas por adultos e crianças como forma de expressar seu pertencimento à Terra Roxa.

Também foi apresentado pela equipe de comunicação o início da produção de um documentário sobre a história da comunidade, que será realizado pela parceira Radio Margarida. Ao mesmo tempo foi lançada a campanha de comunicação, pela parceira La Luna, com o objetivo de fazer a ampla divulgação das ações do projeto nas redes sociais e que incluirá a construção do site próprio e de um canal no YouTube. Desta forma, o trabalho da equipe de comunicação servirá para guardar a história da comunidade aproximando as gerações passadas e futuras, preservando a memória da Comunidade Terra Roxa e sua luta pela terra, por direitos, por trabalho decente e por uma vida digna no campo.

Créditos: Equipe CPT Alto Xingu

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