COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Segundo dia do Encontro de Povos e Comunidades do Cerrado se pautou no tema “Terra e Território”, repleto de reflexões, relatos e denúncias sobre as resistências e violências que permeiam as lutas no campo

Texto: Júlia Barbosa (Comunicação CPT Nacional)
Fotos: Júlia Barbosa (Comunicação CPT Nacional) e Marília Silva (Comunicação CPT Goiás)

Na manhã do segundo dia do encontro “Das re-existências brota a vida”, a mística de abertura foi proposta pelas lideranças quilombolas. Enaltecendo a ancestralidade - como passado, presente e futuro dos povos -, a celebração refletiu a valorização da terra e dos territórios, finalizada com cantos e com a benção das sementes, que simbolizam a continuidade e a resiliência das vidas que brotam das re-existências.

Após a mística, teve início a roda de conversa “Terra e Território”, que contou com as contribuições e partilhas do Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado do Piaui, nas pessoas de Ariomara Alves e de Juarez Celestino. Também, integraram a roda Clara Barbosa, indígena Guarani-Kaiowá (Retomada Laranjeira Ñanderu, Mato Grosso do Sul), o trabalhador rural e coordenador da CPT Goiás Gerailton Ferreira (Assentamento Padre Ilgo, Goiás) e a advogada popular Aryelle Almeida (Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, AATR-Bahia).

Juarez Celestino, que é liderança da comunidade tradicional ribeirinho-brejeira de Melancias-PI, que acolheu o evento, iniciou sua fala fazendo memória aos processos de luta no território. Ele explicou que a área da Comunidade Melancias era devoluta - uma parcela das terras públicas que não possui uma destinação específica pelo poder público e que não faz parte do patrimônio de um particular -, sendo ocupada pelas famílias que hoje vivem, trabalham e tiram seu sustento dessa terra. 

“A gente vem enfrentando toda essa batalha, toda essa luta e resistência, para termos nosso território livre”, expressou Juarez, que denunciou o cotidiano de ameaças e violências contra a comunidade e suas lideranças por parte de grileiros que tentam usurpar as terras. Ele relatou que as famílias colhem os frutos do Cerrado, valorizando e os beneficiando para sua subsistência e renda, mas com a chegada do “desenvolvimento”, começaram a limitar o acesso da comunidade aos frutos.

São muitos anos de luta pela comunidade, em defesa do território, do seu direito à terra e também pela preservação do Cerrado, que dá vida em abundância, água e muitos frutos. Juarez afirma que estar a frente nos enfrentamentos pela conservação do bioma e a vida de seus povos não é uma tarefa fácil, mas é coletiva. As investidas contra a comunidade são várias, desde intimidações e ameaças contra lideranças, até a devastação do território, com queimadas criminosas e desmatamento ilegal por parte dos fazendeiros interessados na exploração da área, que só permanece preservada graças a resistência das famílias ribeirinhas. 

“Sou um dos batalhadores para que pelo menos esse nosso pedaço de Cerrado permaneça de pé, e isso faz com que eu seja uma pessoa ameaçada”, relatou Juarez. 

Resistindo e insistindo no direito de existir, Ariomara Alves é do Território tradicional ribeirinho-brejeiro da Barra da Lagoa-PI, e integra o Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado do Piaui, reafirmando a juventude organizada em defesa dos territórios e do bem viver. Ela explica que o coletivo surgiu em 2018, com apoio e acompanhamento da CPT, e que antes as lutas eram feitas individualmente por cada comunidade, até que perceberam a importância de se unirem, se fortalecerem e avançarem nas lutas. “Nós lutamos para que nosso modo de vida seja continuado e que as gerações futuras tenham a permanência garantida nesse território”, explicou a liderança. Ariomara afirmou que, se hoje ainda existe Cerrado, é porque os povos e comunidades tradicionais e originárias são guardiãs e guardiões de toda a sociobiodiversidade do bioma. 

“Aqui somos diversos povos: ribeirinhos, brejeiros, quilombolas, indígenas… e nossas causas são comuns, nós somos unidos pela resistência. Nós sabemos o quanto sofremos diariamente, lutando por terra e território, pela nossa permanência, pelo nosso Cerrado e nossas vidas”, refletiu Ariomara.

Para garantia dos territórios livres e do direito à terra, é preciso pensar um novo modelo de reforma agrária, afirmou Gerailton Ferreira, que além de agente pastoral e coordenador da CPT Goiás, também é trabalhador rural assentado no Assentamento Padre Ilgo-GO. Ele alerta que o atual modelo de reforma agrária não atende os povos e trabalhadores do campo, e não os deixam livres dos arrendamentos e dos agrotóxicos. “Nós estamos resistindo às titulações nos assentamentos, para impedir que o capital invada os territórios com essa especulação destrutiva que só visa o lucro”, declarou.

O agente refletiu, ainda, sobre a importância de um projeto de reforma agrária popular, que não apenas garanta o acesso à terra, mas também as condições necessárias para que as famílias tenham uma vida digna no campo. 

“Não é possível pensar uma reforma agrária de sucesso se as pessoas nos assentamentos não tem uma casa digna para morar. A gente precisa mudar essa realidade, para que as famílias cheguem à terra e consigam acessar as políticas públicas de assistência e de incentivos à agricultura familiar”, explicou Gerailton. 

Expondo a realidade de luta e resistência dos povos Guarani-Kaiowá, Clara Barbosa, da Retomada Laranjeira Ñanderu-MS, refletiu sobre o direito ancestral dos povos indígenas em retomarem seus territórios. 

“Nós queremos a devolução dos nossos territórios. Eu nem digo demarcação, a gente quer de volta o que nos foi roubado quando os invasores chegaram aqui, pois em 1500 nós perdemos tudo, principalmente nossa autonomia”, manifestou. 

Clara afirmou, ainda, que os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas se identificam na luta pelos seus territórios, pois compartilham o sofrimento, mas também a resistência. Durante sua fala, a liderança também alertou para a violência do agronegócio e dos projetos de morte contra as comunidades e territórios. “O agronegócio é um monstro sem alma que não se controla. Ele vê uma árvore e não enxerga que ela está cheia de vida, ele vê notas de dinheiro”, refletiu.

Seguindo o testemunho de Clara, a advogada popular Arielly Almeida, da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais-BA, abriu sua fala reverenciando a resistência dos povos indígenas e como esses são referência de luta, mas também de resiliência ao longo destes 524 anos. “As comunidades tradicionais têm muito o que aprender com os povos originários, pois eles são precursores dessas lutas. Nós [povos negros], que fomos sequestrados nos nossos territórios além-mar, fomos acolhidos pelos povos originários, que nos ensinaram a sobreviver e a resistir nesse território renomeado Brasil”, iniciou Arielly.

A advogada explicou que a AATR foi criada há 45 anos, nascida na Bahia, pela necessidade de fortalecer e fornecer acompanhamento e assistência jurídica aos povos do campo e trabalhadores rurais, frente às violências que enfrentam decorrentes dos conflitos. Além, ainda, de promover formação popular, com o intuito de proporcionar, para as comunidades e lideranças, propriedade sobre o processo jurídico, dando ao povo poder de compreender e decidir sobre todos eles. 

Percebendo que os conflitos territoriais estavam se expandindo, especialmente na região do MATOPIBA - fronteira agrícola que corresponde às porções de Cerrado entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piaui e Bahia - e afetando cada vez mais os defensores de direitos humanos e as comunidades camponesas, a AATR passou a dialogar e atuar com os estados vizinhos. 

“Esse mecanismo da grilagem acontece de forma muito parecida em todos esses territórios que compõem o MATOPIBA. Por isso, nós buscamos nos fortalecer em rede com outros advogados e advogadas populares que estão em outros contextos e estados. A gente chega nos outros estados muito na ideia e intenção de contribuir com as nossas experiências, de compartilhar o que tem dado certo e o que não tem funcionado”, afirmou Arielly.

Após as contribuições da mesa, a fila do povo tomou corpo para as falas-denúncia e os depoimentos de vida e luta dos povos em seus territórios e comunidades. Expedito Ribeiro, do Assentamento Flores-PI, manifestou que, para a luta, é preciso organização. “Nós temos que nos unir e organizar como classe, sem medo, porque com medo não se vence a guerra”, declarou.

Pela tarde, os participantes se dividiram em pequenas rodas, de acordo com suas identidades camponesas e de povos das florestas, para refletirem e definirem coletivamente sobre o fortalecimento das lutas pela articulação e organização dos povos do Cerrado. Após os diálogos, representantes de cada grupo partilharam sobre as discussões, reafirmando as resistências frente às violências do latifúndio, do agronegócio e dos grandes projetos, pois “na luta do povo, ninguém se cansa!”.



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