Portaria declaratória era aguardada desde 2016, quando Funai oficializou limites da TI. O povo Munduruku enfrentou projeto de hidrelétrica, invasores e a omissão de sucessivos governos
Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional) e equipe CPT Itaituba/PA
O povo Munduruku conquistou uma vitória histórica nesta quarta-feira (25). O ministro da Justiça Ricardo Lewandowski assinou nesta tarde a portaria declaratória da Terra Indígena (TI) Sawré Muybu, na região do médio Tapajós, no Pará. O povo Munduruku luta há décadas pela demarcação deste território, e já haviam se passado oito anos desde o último avanço administrativo no processo demarcatório.
A TI Sawré Muybu possui 178.173 hectares e fica localizada nos municípios paraenses de Itaituba e Trairão, às margens do rio Tapajós. É um dos territórios sagrados para os Munduruku, mas também para proteção de toda floresta e do rio Tapajós. A portaria declaratória foi assinada durante um ato no Ministério da Justiça e Segurança Pública, em Brasília, do qual participaram lideranças do povo Munduruku, apoiadores e representantes do governo federal e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
“Agradeço primeiramente a Karosakaibu [divindade Munduruku], que tocou no coração do ministro para assinar essa portaria. Também reconheço e agradeço esforço dos apoiadores que estão com a gente, o Cimi, a CPT, as lideranças e todos que contribuíram para que a gente chegasse nesse objetivo. Parabenizo a coragem do ministro. Tem muitos pariwat [não indígenas] que estão de olho em nossa terra”, afirmou Juarez Saw, liderança histórica do povo Munduruku e cacique da aldeia Sawré Muybu, uma das que compõe a TI de mesmo nome.
“Estou voltando para minha aldeia muito feliz de levar esse resultado para lá, onde se encontram meus netos. Fico feliz porque vou repassar esse compromisso de preservar a área para as futuras gerações, principalmente a juventude. Desde jovem, estou lutando por essa terra. Hoje, me encontro numa idade avançada, e eu creio que os jovens cuidarão bem dessa terra”, afirmou o cacique na língua Munduruku, traduzido por um intérprete do povo.
Presente no evento representando a assessoria jurídica das associações indígenas, a advogada popular e agente da CPT Itaituba/PA, Raione Lima, afirma que a assinatura da Portaria Declaratória é um passo muito importante para fortalecer as demais lutas pelos direitos do povo Munduruku, como educação diferenciada e de qualidade; saúde e segurança alimentar e a constante defesa e proteção contras as diversas invasões no território.
"Hoje é um dia de celebrar essa grande conquista e de reafirmar nosso compromisso, enquanto CPT, de continuar sendo presença profética, atuando no apoio e na assessoria junto aos povos do Tapajós. É de uma imensa alegria participar de um momento como esse, tão significativo para o povo Munduruku e para defesa dos direitos indígenas. O povo Munduruku há anos vem lutando pela demarcação desse território, enfrentando desafios e ameaças com a presença de invasores e dos grandes empreendimentos planejados para região, mas o povo nunca esperou esse momento de braços cruzados, é um povo guerreiro de muita luta, e durante esse período esteve sempre na luta pela defesa e demarcação de seu território. Seguimos na luta pela defesa da vida e dos territórios! Viva a Luta do Povo Munduruku! Sawe!", afirma Raione.
“Não estamos fazendo mais do que cumprir a obrigação e o dever que a Constituição Federal nos impõe. A Constituição nos impõe o dever de preservar não apenas as terras dos povos indígenas, mas sobretudo a sua cultura, seu modo de vida”, afirmou o ministro Ricardo Lewandowski.
“Isso significa que ninguém mais vai tirar essa terra do povo Munduruku e que agora o Estado, mais do que nunca, tem o dever de defender essa terra e proteger aqueles que nela vivem, e tirar dela aqueles que a ocupam indevidamente, sobretudo aqueles que praticam o desmatamento e o garimpo ilegal”, garantiu o ministro.
Citando dados levantados pelo Greenpeace Brasil, o titular do Ministério da Justiça disse estar preocupado com a pressão do garimpo e do desmatamento sobre o povo Munduruku. Segundo ele, a portaria aponta para a necessidade de desintrusão da terra indígena.
“Temos também, infelizmente, a presença do garimpo ilegal nos rios Tapajós e Jamanxim, que tem impactado a região com emprego de mercúrio, um metal altamente tóxico que tem levado a doença e a morte ao povo Munduruku, afetando especialmente as mulheres e as crianças”, pontuou Lewandowski.
Segurança
A pressão dos invasores sobre a TI Sawré Muybu, em especial de garimpeiros, madeireiros e palmiteiros, também foi ressaltada pelo cacique Juarez Saw. Ele pediu que o Ministério da Justiça garanta segurança aos indígenas, dado que as ameaças podem se intensificar após a assinatura da portaria.
“Pedimos para que as lideranças fiquem seguras depois da assinatura dessa portaria, principalmente as lideranças que estão na linha de frente. Temos muitos inimigos nos perseguindo e pedimos segurança para nosso retorno, após a assinatura dessa portaria e daqui para a frente”, reivindicou o cacique Juarez.
Em 2014, devido à falta de providências do Estado para garantir a demarcação da TI Sawré Muybu, o povo Munduruku realizou a autodemarcação do território. Para isso, firmou alianças com apoiadores e com ribeirinhos, como os vizinhos da comunidade de Montanha e Mangabal.
Desde então, anualmente, os Munduruku realizam expedições até os limites do território, renovando as picadas e alertando eventuais invasores de que se encontram dentro dos limites de uma terra indígena. O povo também adotou a estratégia de estabelecer novas aldeias em diferentes pontos do território, para garantir seu monitoramento.
Projeto de futuro
“Esse território foi muito sonhado por nós, Munduruku, pelas mulheres, pela juventude, pelas crianças que andaram com nós na demarcação, que sofreram, juntamente com nós, com os guerreiros, passando vários dias na mata”, afirmou Aldira Akai Munduruku, que também esteve presente no ato de assinatura da portaria.
“Essa terra é a nossa casa, é a nossa vida, onde as futuras gerações vão viver. Sempre tivemos fé de que essa terra seria demarcada, com nossa luta e nossa resistência. Sem nosso território, não somos ninguém. Precisamos do território para ter saúde, para ter educação. Já perdemos várias lideranças que lutaram por essa terra, e agora vamos lutar para que os invasores não a impactem mais”, garantiu Aldira.
O ministro afirmou que se sentiu “emocionado” ao ouvir o cacique Juarez Saw se expressar no idioma Munduruku. “Imaginemos há quantos séculos essa língua vem sendo transmitida de geração em geração. E agora, com esse ato, será preservada por muitas mais”, afirmou Lewandowski.
Sawré Ba’pin
A cacica Maria do Socorro Munduruku também manifestou alegria com a publicação da portaria declaratória de Sawré Muybu, mas cobrou do ministro a publicação da portaria declaratória de sua terra.
Ela é cacica da aldeia Sawré Juybu, localizada na TI Sawré Ba’pim, que também fica na região do médio Tapajós. A TI Sawré Ba’pim teve seu Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) publicado pela presidenta da Funai, Joenia Wapichana, em abril do ano passado. A TI foi reconhecida oficialmente como 150.330 hectares, também no município de Itaituba.
O passo administrativo posterior à identificação e delimitação de uma terra indígena é a emissão da portaria declaratória, atribuição do Ministério da Justiça. Em seguida vem a homologação, atribuição do presidente da República, e, finalmente, o registro da área em nome da União.
“Estou muito feliz, muito emocionada. Lutamos tanto, mas para tudo tem um dia”, afirmou a cacica, referindo-se à TI Sawré Muybu. “Agora, pedimos que o senhor assine, também, a portaria de Sawré Ba’pim”.
“Nosso papel, como indígenas, já estamos fazendo: é preservar, enquanto os outros querem destruir. Por isso, é muito importante que essa terra também seja demarcada”, reforçou o cacique Juarez Saw.
Mais portarias
No dia 5 de setembro, o ministro Ricardo Lewandowski assinou as portarias declaratórias das TIs Cobra Grande e Maró, no Pará, e Apiaká do Pontal e Isolados, em Mato Grosso. Foram as primeiras portarias publicadas pela pasta desde 2018 – e, portanto, também as primeiras assinadas durante o governo Lula.
Junto com elas, a TI Sawré Muybu passa agora a fazer parte de um conjunto de 65 terras indígenas declaradas, aguardando homologação. Restam, ainda, outras 43 terras já identificadas e delimitadas pela Funai, aguardando a emissão de portaria declaratória pelo ministro da Justiça.
“Estamos tendo avanços importantes nessa questão complexa. Eu sei que a cobrança da cacica é no sentido de que demarquemos outras áreas, mas estamos avançando com passos firmes”, afirmou Lewandowski.
“Há áreas onde há conflitos não só de posseiros, de fazendeiros, mas também conflitos de natureza judicial. Existem hoje 25 demarcações possíveis que estão no ministério, estão sendo estudadas, mas neste momento estão paralisadas por uma decisão do Supremo Tribunal Federal”, afirmou o ministro.
“Algumas nós podemos demarcar por um ato próprio do ministério, outras precisam ser negociadas, para que as pessoas saiam pacificamente da área, tenham compensações, se eventualmente estiverem lá de boa fé”, prosseguiu Lewandowski. Ele garantiu que novas portarias deverão ser publicadas “nos próximos dias ou semanas”.
Décadas de luta
A TI Sawré Muybu foi identificada e delimitada oficialmente pela Funai no dia 19 de abril de 2016, com 178.173 hectares. A publicação do relatório circunstanciado, contudo, só saiu depois de uma luta muito intensa do povo Munduruku – inclusive contra o próprio governo federal, que planejava construir na região a hidrelétrica de São Luís do Tapajós.
O megaprojeto planejado pelo governo de Dilma Rousseff barraria o curso médio do rio Tapajós, afetando diretamente a sobrevivência do povo Munduruku e alagando parte do território.
Os Munduruku constituíram importantes alianças e lutaram arduamente para que a terra fosse demarcada e seu direito à consulta prévia, livre e informada fosse respeitado.
Meses antes da presidenta Dilma Rousseff ser afastada pelo processo de impeachment que resultaria em sua deposição, o então presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, publicou o relatório que reconhecia oficialmente os limites da terra indígena.
No mesmo dia, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) suspendeu o licenciamento da hidrelétrica. Passaram-se oito anos e mais dois governos – Michel Temer, entre agosto de 2016 e 2018, e Jair Bolsonaro, de 2019 a 2022 – até que a portaria fosse finalmente publicada.