publicado por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
capa da publicação da CPT e do IPMDS, o relatório de pesquisa Massacres no Campo na Nova República –1985-2019/ Créditos: Estúdio Massa.
Conforme dizem os organizadores e organizadoras na Apresentação da nova publicação da CPT e do IPMDS, o relatório de pesquisa Massacres no Campo na Nova República –1985-2019, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) têm por objetivo denunciar o alto índice de impunidade que o sistema de justiça brasileiro garante aos mandantes e executores de assassinatos de trabalhadoras e trabalhadores envolvidos na luta pela terra no país. Objetiva também manter vivo o debate sobre esta situação e reivindicar que o poder público nacional promova mudanças estruturais com vistas a alterar as condições que ensejam a impunidade. Formada por mais de uma dezena de pesquisadores, a equipe do IPDMS teve a possibilidade de acessar os registros de conflitos no campo e publicações feitas pela CPT ao longo de seu trabalho pastoral de monitoramento e denúncia das violências cometidas contra trabalhadoras, trabalhadores e povos do campo, das águas e das florestas, inclusive os casos de assassinatos. Além disso, foi realizada a análise de todas as 34 edições do relatório Conflitos no Campo – Brasil publicados entre 1985 e 2019, para entender a metodologia do trabalho de monitoramento da CPT e como, ao longo do tempo, as denúncias das violências e conflitos foram estudadas e trabalhadas pela organização pastoral, por pesquisadores e representantes dos movimentos sociais de luta pela terra. No desenvolvimento da pesquisa, foi percebida a dificuldade em acessar inquéritos e processos dos casos de assassinatos, fossem individuais ou coletivos, em decorrência da inexistência das peças ou da deterioração dos autos. Tal situação demonstra o descaso do sistema de justiça brasileiro com a preservação documental e da memória de suas próprias obrigações e ações, o que dificulta ou mesmo impede o acesso aos inquéritos e processos. Essa é uma das características da impunidade do sistema de justiça aos mandantes e executores de assassinatos no campo.
Por meio da documentação de casos de violência e impunidade no campo no Brasil desde 1985 (no período chamado de Nova República), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) mantém atualizados os dados sobre os conflitos no contexto agrário nacional. Até o ano de 2022, foram registrados 59 massacres (entendendo os assassinatos de três ou mais pessoas numa mesma ocasião), contabilizando 302 vítimas, com destaque para posseiros, sem-terra e indígenas.
A publicação analisa seis casos emblemáticos de massacres e as falhas encontradas nos processos judiciais, sendo resultado de uma pesquisa em conjunto com o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e universidades públicas como a Universidade de Brasília (UnB). As entidades organizadoras, junto com trabalhadores e trabalhadoras, comunidades camponesas e povos indígenas, experimentam uma parceria metodológica que visa ao alcance de outros casos que ainda não foram estudados, e possa provocar uma resposta do Estado brasileiro diante de tantos crimes impunes de assassinatos, contribuindo para a reversão do quadro histórico de impunidade que permeia a luta pela terra no Brasil.
No que toca especificamente à pesquisa, uma formidável equipe foi montada. A começar pela coordenação do Grupo. Coordenação Executiva: André Felipe Soares de Arruda, Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Edimilson Rodrigues de Souza, Euzamara de Carvalho, Gladstone Leonel Júnior, José Humberto de Góes Junior, Maria José Andrade de Souza. Coordenação Acadêmica: Alexandre Bernardino Costa e Cláudio Lopes Maia. Uma nota de reconhecimento também deve ser atribuída às autoras e autores (é possível conferir a relação de nomes envolvidos na autoria da publicação pelo texto completo, disponível aqui).
Uma equipe de ponta, epistemologicamente georreferenciada, afeiçoada aos temas interpelantes que compõem o estudo e movidos por uma racionalidade diligente e instigados por inequívocos compromissos sociais.
O estudo tem essa singularidade acadêmico-analítica, mas guarda pertinência com a motivação política que a partir da CPT adotou o princípio do monitoramento social estabelecendo na metodologia do relatório para a denúncia e a crítica das ocorrências de violações inscritas nos conflitos e nos massacres que caracterizam as tensões sociais sobretudo no campo.
Por isso tenho dado atenção a esses estudos e relatórios. Quando saiu a edição 2023 de um desses muito completos estudos sobre o tema dos conflitos do campo no Brasil, tratei de fazer uma recensão que traduzisse a importância dessas publicações.
A Publicação é um completo estudo que pode calçar muitas possibilidades de aplicação e de ações políticas para confrontar a realidade cruenta que prospecta. Basta compulsar o seu sumário.
Ainda chamo a atenção para o relevo que os próprios pesquisadores atribuíram, na apresentação do estudo em Brasília, ao trazer o marcador de dados gerais e de análise, especialmente sobre a crítica ao sistema de justiça, um fator determinante na dinâmica dos conflitos e dos massacres. São elementos que podem operar como chaves de leitura do relatório, no que os pesquisadores designam como arco do desmatamento, uma característica da ação de deslocamento das fronteiras de demarcação do campo, entre duas concepções de produção (a do agronegócio, gerador de commodities, mercadorias para o mercado internacional; e a da agricultura familiar e cooperativada, geradora de produtos saudáveis para promover segurança alimentar e popular), coincidente com o arco dos massacres. Para ativar essa chave os pesquisadores indicaram um ementário de termos: expansão da fronteira agrícola, políticas de colonização da ditadura, caos fundiário e grilagem de terras, oligarquias locais associadas a empresas nacionais e transnacionais, controle político das forças de segurança pública e controle oligárquico do sistema de justiça e sistema de pistolagem (‘lei do cão’; ‘pedagogia do terror’).
Esses marcadores se escoram, na análise dos casos, conforme o sumário, em dois conceitos básicos. O conceito conflito, fundamental à CPT, pois, ao contrário de justificar ou significar apenas ações violentas, ele traz a prática da resistência de trabalhadoras, trabalhadores e comunidades originárias e tradicionais que lutam ativamente para conquistar a terra e manter seus territórios, numa relação de intenso conflito social contra latifundiários e empresas várias, que pretendem manter a altamente concentrada estrutura fundiária brasileira.
E o conceito de massacre. Explicam os pesquisadores e organizadores: “Segundo o dicionário Aurélio, massacre é palavra oriunda do francês e como substantivo tem o significado de morticínio cruel; matança, carnificina. Já o verbo massacrar tem como primeira definição, no mesmo dicionário, a de matar cruelmente; chacinar. No âmbito de suas publicações, é nas que se referem ao Massacre de Eldorado dos Carajás, de 1996, que a CPT se esforça para denunciar com maior destaque os casos de assassinatos coletivos e busca ao menos definir o que para a instituição é um massacre e/ou chacina. No relatório Conflitos no Campo Brasil – 1996, abaixo de uma tabela intitulada Chacinas 1985-1996, na página 52, há a seguinte observação: “Consideramos como chacina, três ou mais assassinatos numa mesma data e conflito”. Nessa tabela estão listados, por exemplo, o caso do Massacre dos Indígenas Tikunas, no Amazonas, em 1988; da Fazenda Santa Elina, em Corumbiara/RO, em 1995; e o da Fazenda Macaxeira, estabelecimento localizado em Curionópolis/PA, mas cujos trabalhadores foram assassinados em Eldorado dos Carajás, em 1996. Todos os três casos são considerados pela CPT também como um massacre seja na descrição da tabela seja no texto de apresentação desta edição do relatório anual. Assim, a instituição pastoral segue, de certa forma, a definição da ação dada pelo dicionário e assume que chacina e massacre têm significados semelhantes, a de assassinatos coletivos, de três pessoas ou mais, numa mesma data e conflito. Nessa tabela estão listados, por exemplo, o caso do Massacre dos Indígenas Tikunas, no Amazonas, em 1988; da Fazenda Santa Elina, em Corumbiara/RO, em 1995; e o da Fazenda Macaxeira, estabelecimento localizado em Curionópolis/PA, mas cujos trabalhadores foram assassinados em Eldorado dos Carajás, em 1996. Todos os três casos são considerados pela CPT também como um massacre seja na descrição da tabela seja no texto de apresentação desta edição do relatório anual. Assim, a instituição pastoral segue, de certa forma, a definição da ação dada pelo dicionário e assume que chacina e massacre têm significados semelhantes, a de assassinatos coletivos, de três pessoas ou mais, numa mesma data e conflito. Essa mesma definição aparece no jornal Pastoral da Terra, nº 143, de junho de 1997, edição especial de lançamento do relatório Conflitos no Campo Brasil – 1996. Na página 10, encontra-se um texto de Alfredo Wagner Berno de Almeida intitulado Massacre, rito de passagem ao genocídio, no qual o autor afirma que “designa-se, inicialmente, como massacre ou chacina aquelas situações de conflitos agrários em que se registram pelo menos três assassinatos numa mesma ocorrência, ou seja, num só local e numa mesma data”.
O relatório permite perceber as formas pelas quais a classe exploradora utiliza o sistema de justiça para assegurar que a institucionalidade estatal atue a seu favor, ao criar as condições para a reprodução da estrutura fundiária altamente concentrada do Brasil. Mas permite também perceber que as pressões sociais, nacionais e internacionais, sobre o sistema de justiça contribuem para a mudança dessas formas. Após o Massacre de Eldorado dos Carajás, a cidade de Marabá passa a contar com unidades de órgãos federais que não existiam anteriormente no sudeste do Pará, como uma Superintendência do Incra, Ministério Público Federal e a Justiça Federal, diminuindo a dificuldade da população como um todo em acessar os serviços oferecidos por esses órgãos. Outro exemplo do impacto da pressão externa ao sistema de justiça foi no Massacre de Felisburgo, cujo tempo entre a abertura do inquérito e a decisão de pronúncia que determinou o julgamento dos assassinatos por um júri popular demandou pouco menos de um ano. A mesma celeridade não foi vista em casos anteriores nem no momento posterior, de apresentação de recursos contra a decisão de pronúncia e de julgamento.
São essas situações, em conclusão, que vão permitir entender que, apesar da mudança de alguns ritmos nos processos e ritos do sistema de justiça, este continua a atuar a favor de fazendeiros e empresários do campo. Porém, permite entender, além disso, a necessidade de as trabalhadoras e os trabalhadores permanecerem organizados e em luta, pois apenas assim se conseguirá transformar a estrutura fundiária brasileira.
É possível acessar a publicação Massacres no Campo aqui.