Com a anuência de magistrados do mais alto escalão, o caso evidencia escandalosa violação dos direitos da vítima; grave deslegitimação da política nacional de combate ao trabalho escravo, e simultânea suspeição contra servidores públicos; e um reforço à hedionda narrativa da naturalização do trabalho escravo no País
Por CPT Nacional
Foto: Divulgação
Após um ano do início da operação de resgate de Sônia Maria de Jesus, encontrada em situação de trabalho escravo na residência do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), Jorge Luiz de Borba, a Comissão Pastoral da Terra e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) voltam a informar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre o caso. A ação vem para reforçar, pela terceira vez, que a instituição cobre explicações do Estado brasileiro sobre a continuada violação de direitos e “des-resgate”, que levou Sônia a retornar à residência cenário das violências que sofreu.
Resgatada pela Polícia Federal (PF) em junho do ano passado, Sônia passou 40 dos seus 50 anos a serviço da família Borba. A vítima, mulher negra e com profunda deficiência auditiva, nunca recebeu salário, assistência médica ou instrução formal. Além disso, ela sofria violências físicas e vivia em situação degradante em um quarto na residência. Sônia foi tirada da família biológica muito cedo e mantida incomunicável durante esses anos.
No início de setembro, ela voltou a morar na casa da família sob decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça. Esta ação foi realizada à revelia das evidências reunidas pelo Grupo Móvel, levando Sônia de volta à residência onde passou décadas cativa.
O desembargador Jorge Luiz de Borba iniciou de última hora, na mesma Justiça Civil onde ocupa alto escalão, um processo de “adoção psicoafetiva” para esvaziar as ações trabalhistas e penais que o flagrante de trabalho escravo gerou. Tal narrativa foi referendada pelo ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e pelo ministro Mendonça, do STF. Desse modo, segundo o STJ, não havia indícios suficientes de crime porque a empregada vivia "como se fosse membro da família".
Na Conatrae, onde representa a sociedade civil, a CPT encaminhou diversas iniciativas trazendo luz sobre esta aberração: reunião extraordinária, nota pública e requerimento de audiência na Comissão dos Direitos Humanos do Senado. Também procurou reforçar as várias articulações com entidades e instituições envolvidas neste caso multifacetado – gênero, cor, deficiência – e tão emblemático de uma cultura escravocrata nunca erradicada.
Foto: TJSC/ Divulgação
“A história da senhora Sônia evidencia as profundas raízes de um passado escravagista, herança maldita ainda presente na sociedade brasileira, especialmente sobre a vida de mulheres negras”, destaca Xavier Plassat, membro da coordenação da campanha da CPT De Olho Aberto para não Virar Escravo. Em audiência sobre o caso realizada no Senado, ele ressalta ainda a grave situação de racismo estrutural e institucional, capacitismo, violência de gênero e negação de direitos praticados contra Sônia. “Seu retorno e permanência na família investigada representa a manutenção simbólica deste conjunto de desigualdades que marcam o país”.
Herança escravagista
Nos últimos anos, ganharam evidência os casos de trabalho escravo doméstico no Brasil, presente tanto na zona rural quanto na urbana, marcado pela naturalização de mulheres negras em posição de servidão nas residências de famílias abastadas. Em 2023, a campanha De Olho Aberto para não Virar Escravo registrou 60 fiscalizações, com resgate de 40 pessoas.
A categoria do trabalho doméstico é a atividade trabalhista com o maior número de empregadores na Lista Suja do Trabalho Escravo, dos 248 empregadores adicionados à lista, 43 eram ligados ao trabalho doméstico. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) contabilizou, em 2023, 6,1 milhões de pessoas em trabalho doméstico no País. Deste total, 91% são mulheres, duas em cada três são negras e apenas uma em cada três possui carteira de trabalho assinada.