COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

SÉRIE INSUSTENTÁVEIS*


O drama da expulsão de comunidades tradicionais para a instalação de indústrias e mineradoras começou na ditadura – e continua

Por Helena Palmquist (texto) e João Laet (fotos) | Sumaúma

‘Estou cercada’, lamenta Sandra Amorim, liderança do Quilombo São João, que está rodeado por empresas fornecedoras da Hydro
 

Além dos problemas de saúde dos moradores da região de Barcarena e da perda do modo de vida tradicional, a expulsão do território é tema presente e experiência marcante nas conversas entre eles. As remoções, que começaram na década de 1980, feitas sem indenização nem respeito aos direitos coletivos, segundo a defensora pública Andreia Barreto, hoje se traduzem em uma luta por direitos que inclui tentativas de retomada desses territórios. Muitas vezes com ações de despejo impetradas pelos gigantes europeus da mineração.

Carlos Espíndola, de 53 anos, lembra do momento, no final da ditadura empresarial-militar (1964-1985), em que a polícia chegou avisando sua tia que todo mundo teria que ir embora, na região do Tauá. Ele tinha apenas 12 anos. “‘Se a senhora não deixar a sua casa, se a senhora não sair, o trator vai passar por cima’. E ela virou lá pro tio Castanha e disse, ‘Castanha, tu não vai falar nada?’. Ele era um homão. Mas ficou calado. Imagina uma pessoa, morando dentro do seu território, nascida e criada, ter que deixar a sua casa, com urgência, senão a máquina vai passar por cima?”, questiona. Carlos conta que em 15 dias todos tiveram que sair para uma casinha de quarto e sala, num bairro distante construído pela Companhia de Desenvolvimento Industrial. “Tio Castanha era um cara forte, mas entrou em depressão. Não conseguiu. Morreu.”

Carlos Espíndola tinha 12 anos quando sua família foi removida do Tauá; a comunidade reocupou, em 2016, o território, que hoje é grande produtor de alimentos

Depois de mais de três décadas de saudade e dificuldade, em 2016 Carlos reuniu os antigos vizinhos e, juntos, resolveram retomar o território onde nasceram. “Somos 182 famílias e essas são as nossas terras”, afirma. Antes da retomada, ele trabalhou como pedreiro e vendedor de cachorro-quente. Mas o sonho era voltar para a terra e para a agricultura. Hoje, no Tauá, Carlos e outros moradores produzem fartura de mandioca, farinha, castanha, açaí e muitas frutas.

A região, durante muito tempo vizinha a uma das bacias de rejeitos da Hydro, foi área de atuação sem controle de madeireiras ilegais. Mas, assim que as famílias voltaram para o território, a empresa declarou que as terras eram de sua propriedade e que os agricultores iriam destruir uma área de reserva florestal. A Justiça do Pará emitiu um mandado de reintegração de posse em favor da Hydro e, em 2017, policiais militares expulsaram as pessoas e destruíram as pequenas roças, pontes e casas que tinham sido erguidas, segundo relato dos moradores. No ano seguinte, eles voltaram.

A retomada também foi uma resposta a um processo judicial que se arrasta há décadas. Desde 1989, 450 pessoas, entre elas várias famílias do Tauá, processaram a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Pará e a Companhia de Desenvolvimento de Barcarena, responsáveis pela remoção dos moradores da área, em busca de compensação pelo que lhes foi retirado. Houve decisões favoráveis e contrárias aos moradores, mas em 2014 o processo foi suspenso e até hoje as indenizações não foram pagas.

Paira o temor de novas expulsões, assim como o de novos desastres ambientais, mas as colheitas fartas e a alegria de estar de novo no território mantêm o vigor da comunidade. Manoel Raimundo Furtado Dias, de 71 anos, apelidado de Lambreta pelo andar ligeiro, é o ancião do grupo. Ele tem o umbigo enterrado no pé de uma árvore ali. “Hoje nós não nos arrependemos. Quando fomos expulsos, era só choro, muita gente morreu, inclusive meu pai, que morreu falando do Tauá. Morreu triste de ter sido expulso.”

Apesar de estar perto das bacias de rejeitos da Hydro, o Tauá tem florestas conservadas; Manoel Dias é o morador mais antigo da comunidade

Apesar de estar muito perto de uma das bacias de rejeitos da Hydro, o Tauá é um lugar com florestas ainda conservadas, muitas árvores frutíferas e onde os moradores se orgulham de viver da própria colheita. As pontes e estradas que haviam sido desmanchadas quando eles foram expulsos, em 2017, foram reconstruídas. A comunidade recebeu a equipe de reportagem em meio às obras da Escola Comunitária Ulisses Manaças – homenagem a um líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) no Pará. Também estava construindo um novo barracão, onde se planejava realizar reuniões para fazer um protocolo de consulta prévia, discutir os problemas ou apenas trocar histórias do local.

Procurada, a Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará disse a SUMAÚMA que “não procede a informação de expulsão de comunidades e moradores de áreas do Distrito Industrial de Barcarena e que sempre reconheceu a legitimidade das comunidades e seus direitos, inclusive no que se refere à decisão de sair de suas posses, mediante indenização com base em laudos de avaliação elaborados seguindo critérios e requisitos estabelecidos pelos órgãos ministeriais”. O órgão afirmou ainda que “o processo de saída dos moradores de suas posses no Distrito Industrial somente se efetiva após negociação e aceite formal dessas famílias”.

História parecida com a do Tauá, porém, se repete em sete comunidades de Barcarena visitadas por SUMAÚMA: remoções sem indenizações, moradores desalojados, tentativas de retomada de territórios e processos judiciais com idas e vindas na Justiça.

Em setembro de 2021, a Imerys foi condenada a indenizar os moradores da comunidade Dom Manuel, expulsos da área onde moravam para dar lugar à barragem onde a empresa deposita os rejeitos do beneficiamento do caulim. Para a Justiça do Pará, que julgou o caso em 1ª instância, a empresa praticou esbulho – ou seja, expulsou indevidamente os moradores – e causou danos à comunidade. Em agosto de 2023, a 2ª instância do Tribunal de Justiça confirmou a sentença. Diante da impossibilidade de devolver o território aos moradores, por ele estar repleto de resíduos poluidores, o Judiciário vai decidir o valor da indenização dentro do processo.

Vista aérea da bacia de rejeitos de caulim da Imerys justo ao lado da comunidade Curuperé, que não tem asfalto nem saneamento básico

Ao lado da desaparecida comunidade Dom Manoel e à sombra da barragem de rejeitos da Hydro, os moradores do Curuperé – onde fica a casa do professor Roberto Anjos e da ativista Eunicéia Fernandes Rodrigues – temem ser os próximos expulsos. Para evitar que se repita a violação de direitos, a defensora pública Andreia Barreto entrou com outra ação judicial, na Vara Agrária de Castanhal, pedindo à Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará a não desapropriação da área sem cumprir os requisitos mínimos. Entre as exigências estão a opção de reassentamento, a realização de consulta prévia e a avaliação prévia de benfeitorias.

Segundo a ação, sete anos após a assinatura do termo de compromisso, o órgão segue constrangendo as famílias, entrando nas comunidades e chegando a orientar as pessoas para que não façam melhorias em suas casas ou plantações porque as mudanças não seriam indenizadas em caso de desapropriação. Todas as violações devem cessar, caso a Justiça concorde com as alegações da defensoria. Até lá, o destino do Curuperé pode ser o mesmo do de inúmeras comunidades de Barcarena: famílias que moravam havia gerações no mesmo território, com modo de vida tradicional, perderam seu lugar e foram separadas, sem a possibilidade de reproduzir seu modo de vida anterior.

Sobre outra paixão

Por causa do trauma das remoções, um termo curioso ligado à palavra “paixão” se repete entre os entrevistados. “Ele ficou apaixonado”, “ela estava muito apaixonada e morreu”, “foi de apaixonada que minha mãe definhou”. O uso dessa palavra para indicar o sofrimento dos barcarenenses com a industrialização provavelmente tem correspondência com o que se faz na expressão “paixão de Cristo”. A palavra vem do latim passio, que significa sofrimento.

“Hoje a gente fala que alguém tá com depressão, mas, naquela época, a gente dizia que tava apaixonado. Na década de 1980, teve uma onda de suicídios na cidade com a chegada da obragem. Porque o pessoal não aceitava [a mudança de vida]. Tava acostumado a viver da roça, viver na floresta. E aí chegaram esses empreendimentos e tiraram todo mundo”, conta Sandra Amorim, liderança do Quilombo Sítio São João, área de onde foi expulsa e para a qual retornou. “O pessoal fala que, quando era expulso daqui, ficava apaixonado. Porque a pessoa nascia e se criava num local desse e depois era jogada na infernalidade”, resumiu Manoel Lambreta, o ancião da comunidade do Tauá. Sandra e Manoel resistem em suas terras, retomadas, por ter vivido a dolorosa paixão da expulsão em nome do “progresso”.

*A série Insustentáveis é uma parceria do Transnational Law Institute, do King’s College de Londres, com SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo

 

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