Lavouras comunitárias de Transição Agroecológica fortalecem processos coletivos por Reforma Agrária e pela permanência de comunidades na terra em Goiás
Por Marília da Silva | CPT Goiás
Colheita de feijão na lavoura comunitária do Assentamento Oziel Alves, em Baliza/GO, em maio de 2023. Foto: Everton Antunes | Magnífica Mundi/UFG.
No ano agrícola 2022-2023, aproximadamente 200 famílias de 30 comunidades acompanhadas pela Comissão Pastoral da Terra Regional Goiás, em 18 municípios do interior do estado, produziram alimentos saudáveis em Lavouras Comunitárias de Transição Agroecológica.
Sem utilizar agrotóxicos, nem sementes transgênicas - condições indispensáveis para as monoculturas do agronegócio - a roças coletivas produziram toneladas de alimentos saudáveis, garantindo não apenas a segurança alimentar das famílias agricultoras, mas também alimentos para doação em ações de combate à fome em comunidades urbanas periféricas.
Em Catalão, no sudeste de Goiás, a comunidade do Acampamento Oziel Alves Pereira plantou e colheu mais de mil quilos de feijão e três mil quilos de milho. “Esse ano tivemos uma produção excelente. Trabalhando coletivamente nesse projeto, a gente tirou toda nossa alimentação, uma alimentação saudável, livre de todo agrotóxico, e também distribuímos para as pessoas que têm necessidade nas periferias das cidades vizinhas aqui, Santo Antônio do Rio verde e Catalão”, conta a agricultora Luciene Silva.
Para a comunidade, que vive na área desde 2017, enfrentando grandes desafios para garantir sua destinação para a Reforma Agrária, a produção de alimentos é um fator de fortalecimento para prosseguir rumo a este objetivo coletivo. “Com esse trabalho nós mostramos para a sociedade porque estamos na terra”, diz Luciene.
Em maio deste ano, o acampamento passou por duas visitas de inspeção da Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça de Goiás (CSF TJ-GO) e foi elogiada por autoridades estaduais e federais por sua produção de alimentos. O reconhecimento de seu direito e da importância de sua produção de alimentos é uma vitória para famílias que já foram notificadas e ameaçadas a ter que pagar multas por plantar e que já tiveram roças destruídas em tentativa de despejo.
Acampamento Oziel Alves, em Catalão, recebe visitas de inspeção da Comissão de Soluções Fundiárias com cestas de alimentos agroecológicos produzidos pela comunidade**
Plantar e resgatar o valor da vida humana
Para a CPT Goiás, as lavouras comunitárias têm o sentido pastoral de fortalecer a organização das comunidades que lutam para permanecer na terra ou para conquistar um pedaço de chão. Para Saulo Reis, coordenador da pastoral, além de beneficiar diretamente famílias que estão em situação de vulnerabilidade social e econômica, sem acesso a trabalho e renda, este trabalho resgata o valor da vida humana para vítimas da violência no campo.
“Em muitos casos as famílias em situação de conflito sofrem ameaças contra a própria vida, e a produção de alimentos é um sinal profético de proteção à vida humana em si, ao corpo que resiste às ameaças da pistolagem, e também uma defesa da vida por meio da produção de alimentos saudáveis, livre de venenos”, diz Saulo Reis. “É a afirmação da permanência na terra como fonte de vida e uma forma de abrir caminhos às famílias que lutam para conquistar a terra por meio da Reforma Agrária”, completa.
Maria Aparecida de Melo, agricultora e moradora do Projeto de Assentamento Nova Jerusalém, em Planaltina de Goiás (GO), no entorno do Distrito Federal, narra como o trabalho da lavoura comunitária reanimou a comunidade, após um momento de desmotivação diante das dificuldades enfrentadas pelo direito à terra.
“Esse ano a gente tava com cansaço físico e mental, com o psicológico ruim. A gente tinha até pensado em desistir. A gente vinha há dois anos plantando feijão, um plantio lindo, mas a gente optou pelo plantio de abóbora, porque era o que a gente conseguia fazer. No primeiro momento, eu duvidei que ia dar. Mas a gente viu que tem potencial de produzir qualquer coisa que a gente quiser aqui. Foi uma alegria só essa colheita”, conta Maria Aparecida.
Colheita de Arroz do Assentamento Oziel e de abóbora no P.A. Nova Jerusalém**
Alimento na mesa e renda para famílias acampadas
Os projetos de Lavouras Comunitárias apoiados pela CPT Goiás tiveram início entre 2020 e 2021, período em que o Brasil voltou oficialmente ao Mapa da Fome. Os coletivos de agricultoras e agricultores envolvidos nos plantios priorizaram, desde o início, o cultivo de alimentos básicos de sua alimentação: arroz, feijões, milho, amendoim, gergelim, abóbora e mandioca.
O senhor Sebastião dos Santos participou da lavoura comunitária do Assentamento Oziel Alves Pereira*, em Baliza, região noroeste de Goiás, e se diz bastante satisfeito com o resultado dos trabalhos. “Temos arroz e feijão para passar o ano e ainda temos o amendoim para colher”, conta Sebastião. Ao todo, a comunidade colheu 200 sacas de 60 kg de arroz, aproximadamente 1,2 tonelada do alimento.
Senhor Sebastião durante a colheita de feijão da lavoura comunitária do Assentamento Oziel Alves, em Baliza/GO, em maio de 2023. Foto: Everton Antunes | Magnífica Mundi/UFG.
No Acampamento Dom Tomás Balduíno, em Formosa, nordeste de Goiás, além do arroz e feijão para consumo, a comunidade plantou uma grande roça de mandioca, que rendeu 600 caixas do alimento. Parte delas foi comercializada, gerando renda para as famílias que participaram dos trabalhos. Todo o trabalho nas roças comunitárias, no Dom Tomás, foi protagonizado pelas mulheres da comunidade, que também trabalham juntas em uma horta para produção de alimentos para doação.
Após as colheitas, o acompanhamento do processo de seleção e armazenamento de sementes tem colaborado para a construção de bancos de sementes locais, garantindo importantes passos para superação do desafio que é a conquista da autonomia de produção para os agricultores familiares.
Trabalho coletivo e colheita de mandioca no Acampamento Dom Tomás Balduino, em Formosa/GO**
Agricultoras e pesquisadoras das experiências agroecológicas
O grande empenho das mulheres nos trabalhos das lavouras comunitárias foi notório em muitas outras comunidades. Simone Oliveira, da coordenação da CPT Goiás, avalia os diversos aspectos das contribuições das agricultoras nas experiências agroecológicas que acompanha.
“Em nossas vivências, as mulheres demonstram mais paciência de observar e acreditar nas propostas da agroecologia, seja nas lavouras ou em seus quintais. Elas são grandes pesquisadoras das experiências agroecológicas, têm o tempo da terra, acreditam, esperam e observam os resultados. Ao identificar o que dá certo, elas fazem anotações, como em livros de receita, e trocam essas experiências entre si”, narra.
Simone afirma também que, em geral, as mulheres valorizam mais a cadeia de saúde gerada pela produção livre de agrotóxicos: “Elas observam a melhora em sua saúde quando fazem uso das plantas em seus hortos medicinais e quando se alimentam daquilo que plantam, sem ingerir veneno, então elas conseguem realmente dar valor a essas práticas”, avalia Simone.
Mulheres do Assentamento Oziel Alves na colheita de feijão da lavoura comunitária. Foto: Júlia Barbosa | Magnífica Mundi/UFG.
Produzir e compartilhar, por uma relação sagrada com a terra
Entre as comunidades que participaram das lavouras comunitárias, acampamentos da Reforma Agrária ligados ao Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) realizaram grandes Festas da Pamonha após as colheitas de milho. Luciene Silva fala da festa como um importante momento de partilha no Acampamento Oziel Alves, em Catalão. “Colhemos 3 toneladas de milho caiano e fizemos uma bela pamonhada. Servimos para toda a comunidade e ainda convidamos a comunidade do assentamento vizinho”, conta a agricultora.
A história bíblica do Povo de Deus também narra antigos modos de relação com a terra e com a produção. Antônio Baiano, da coordenação da CPT Goiás, conta que quando a terra não tinha dono, tudo o que se produzia era para ser compartilhado. “Anualmente se faziam as festas das tendas, da colheita e da páscoa, que tinham objetivo de socializar a produção. Cada família só deveria guardar o necessário para o período de entressafra”, narra Baiano.
Ao longo da história, a terra - e o alimento que ela dá - foi se tornando mercadoria e sendo acumulada por poucos. Antônio Baiano relaciona a Reforma Agrária, no período atual, ao Ano Jubilar, descrito no livro bíblico Levítico, em que as terras eram redistribuídas ao povo. De modo semelhante, para a criação de um assentamento, divide-se um único latifúndio para muitas famílias.
Após a conquista coletiva da terra, os movimentos do campo propõem modos de produção diferentes dos monocultivos agroindustriais, voltados para o mercado de commodities. “Hoje, quando se propõe a organização de lavouras comunitárias, é na perspectiva de resgatar a união do grupo. A roça coletiva é um espaço de repensar a forma de produzir, de compartilhar a mão de obra e o que é produzido. A produção coletiva promove o encontro, fortalece a organização popular e o modelo de produção agroecológico”, explica Antônio Baiano.
O agronegócio, que desconsidera a sacralidade da terra e a vê apenas como fonte de lucro, diz Baiano, trata a terra sem nenhum cuidado, a exemplo da grande carga tóxica que é jogada nos monocultivos, sem considerar os riscos de contaminação da água e a qualidade do ar para as famílias que vivem ali em volta. “O agronegócio é um projeto de acumulação, não de partilha. Não visa a diminuição da fome, da pobreza. A Reforma Agrária, por sua vez, contraria a lógica de manter a riqueza na mão de poucas pessoas, tendo como meta garantir o que o Papa Francisco tem dito: quem tem a terra, tem o teto e tem o trabalho. Reforma Agrária significa garantir que as pessoas que vão para a terra tenham terra para trabalhar e tenham moradia, tendo também sustentação, alimentação“, conclui Antônio Baiano.
Trabalho coletivo na Festa da Pamonha do Acampamento Leonir Orback, em fevereiro de 2023** // Pamonhada no Assentamento Oziel Alves, em Baliza/GO, em maio de 2023. Foto: João Vitor | Magnífica Mundi/UFG.
*Há duas comunidades acompanhadas pela CPT Goiás em regiões distintas com nomes semelhantes: o Acampamento (ou Assentamento Popular) Oziel Alves Pereira, no município de Catalão, e o Assentamento Oziel Alves Pereira, no município de Baliza.
**Fotos: Equipes pastorais da CPT Goiás e comunidades acompanhadas.
***Este relato faz parte da série de experiências da campanha 'Fraternidade Sem Fome, pão na mesa e justiça social'