Por CPT Regional Acre,
com edição de Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Relatório anual da CPT teve lançamento regional no 5 de setembro, Dia da Amazônia, com foco nos dados de conflitos do Acre e do Sul do Amazonas
O lançamento contou com a presença de trabalhadoras e trabalhadores do campo, que dividiram espaço com representantes de movimentos e organizações sociais, órgãos do governo estadual e federal e do parlamento acreano. Foto: CPT Acre
Na manhã cinzenta do dia 05 de setembro, a Comissão Pastoral da Terra Regional Acre (CPT-AC) realizou o lançamento da publicação Conflitos no Campo Brasil 2022, em Rio Branco (AC). A névoa, característica desta época de queimadas na região, deu o tom do debate sobre conflitos, no simbólico Dia da Amazônia. O auditório do Instituto São José ficou apinhado de trabalhadoras e trabalhadores do campo, que dividiram espaço com representantes de movimentos e organizações sociais, órgãos do governo estadual e federal e do parlamento acreano.
Ao início do evento, seringueiras e seringueiros levaram à mesa diversos elementos representativos de suas culturas, como cacho de açaí, objetos artesanais de borracha, poronga, cacho de banana, farinha, ouriço de castanha, remo de canoa. A mesa de abertura foi composta por Ivanilda Santos, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi-AC); Edvaldo Magalhães, deputado estadual pelo PCdoB; Luis Henrique Corrêa Rolim, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC); Cesário Campelo Braga, coordenador do escritório do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar no Acre (MDA); padre Anderson Marçal Dias, da Diocese de Rio Branco; Darlene Braga, da coordenação da CPT-AC.
As pessoas que constituíram a mesa de abertura acolheram os presentes e falaram sobre a importância do lançamento da publicação no estado. Dentre as falas, foi feita memória a Dom Moacyr Grechi, falecido no ano de 2019, que foi o primeiro presidente da CPT e bispo da Prelazia Acre e Purus, hoje Diocese de Rio Branco.
Após a mesa de abertura e acolhida, foi instalada a mesa para discussão dos dados de conflitos relativos ao Estado do Acre, bem como de escuta de lideranças de comunidades vítimas das violações de direitos. Compuseram a mesa Sara Braga, agente pastoral da CPT-AC; professor Dr. José Alves, da Universidade Federal do Acre (UFAC); Professor Dr. Afonso das Chagas, assessor jurídico da CPT; Maria Lucilene da Conceição, liderança do Seringal São Bernardo, Colocação Campo Verde; Paulo Sérgio Costa de Araújo, liderança da Comunidade Marielle Franco; Maria da Conceição Ramos de Almeida, liderança da Comunidade Lago Novo, Boca do Acre (AM).
“No ano de 2022 nos despedimos de um governo fascista, mas ainda sofremos as consequências, que estamos aqui para denunciar. O relatório é a nossa forma de expor, gritar e denunciar desde sua primeira edição em 1985”, iniciou Sara Braga como preâmbulo, para, em seguida, apresentar os dados gerais de conflitos do Acre. Ela também explicou sobre o contexto de violência da região sul do Estado do Amazonas, cuja questão agrária mantém vínculos com o contexto acreano, uma vez que as comunidades da região amazonense têm de recorrer às estruturas de estado do Acre, por conta da proximidade geográfica, como também por partilhar dos mesmos agentes causadores dos conflitos.
Maria Lucilene da Conceição emendou a fala, com um relato sobre a vivência em território tradicional sob conflito. “Hoje eu estou aqui para falar da situação que a gente vive, o seringal mais próximo de Rio Branco, que é o lugar mais abandonado do estado do Acre. Sou filha de seringueiro e agricultora. Para sair de lá precisa muito [esforço] e no inverno é só lama. A gente recebe muita ameaça do fazendeiro, ele diz que a gente é invasor. Como que a gente é invasor, se a gente vive a vida toda lá? [A gente] não pode fazer uma farinha, tirar castanha, não tem luz. Por isso a gente pede ajuda dos órgãos públicos, por uma questão de saúde também, não tem uma escola para os nossos filhos, a gente não pode viver deste jeito. Não é questão de ter uma vida boa, mas uma vida melhor. [Os políticos] só vão no ramal para pedir voto”.
Professor José Alves ressaltou, em seguida, a distância entre o conhecimento acadêmico e a realidade vivida pelas comunidades. Ele enfatizou a necessidade de estabelecer laços estreitos com as comunidades para que possam ser realizadas mudanças significativas no sentido de justiça social. Alves lamentou a ausência de representantes da Defensoria Pública e salientou a importância dos dados na busca por ações governamentais e políticas públicas. Além disso, alertou para a crise alimentar, a falta de refeições diárias que é a realidade de muitas famílias do campo, especialmente no contexto das lutas por terra e território.
No tocante ao eixo Terra, Alves identificou a nova frente do capitalismo como uma ameaça, com terras bloqueadas e tentativas de criminalização da luta pela terra. Ele recobrou à memória o "Dia do Fogo" e o desmantelamento das políticas de fiscalização e proteção ambiental, para apontar a omissão do poder público na defesa das comunidades e da terra como riqueza. Para ele, o trabalho escravo se tornou o "DNA" da agricultura moderna, contrastando com o discurso vazio do desenvolvimentismo.
O professor Afonso das Chagas trouxe à luz a realidade da Zona de Desenvolvimento Sustentável (ZDS) Abunã-Madeira, uma região que não é apenas um projeto a ser implantado, mas um processo em curso. Compreendendo 32 municípios dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, a ZDS é um projeto piloto que se estende além de suas fronteiras geográficas, e deve, segundo sua explicação, ser exportado para outras áreas da Amazônia. Ele alertou para a tentativa de "Rondonização" da região, caracterizada pelo avanço da pecuária e da agricultura, que ameaça seriamente destruir a Amazônia, tratada como um espaço vazio pelos interesses econômicos. Chagas destacou o aumento da violência nos últimos anos na região, revelando uma conexão intrínseca entre a expansão da agropecuária e diferentes formas de violência.
Ele destacou que a violência precede a institucionalização da ZDS, e se ligam às práticas que ocorrem à medida que a fronteira agrícola avança. O professor apontou que a letalidade na região é alarmante e não se restringe apenas aos grandes produtores, mas também envolve a cumplicidade do Estado por meio de sua omissão em combater essas violações de direitos. Chagas enfatizou a insuficiência das ações até o momento e defendeu a necessidade de focar no enfrentamento da violência com base nas experiências das pessoas que vivem nos territórios afetados. Ele também se posicionou veementemente contra a "desamazonização" da região, destacando a importância de preservar a Amazônia e enfatizou o compromisso da CPT em trilhar o caminho histórico correto, mesmo diante das dificuldades.
Paulo Sérgio Costa de Araújo, liderança da Comunidade Marielle Franco, localizada em Boca do Acre (AM), expôs seu relato posteriormente à fala de Chagas. "Nossa comunidade sofre com ameaça e violência de fazendeiros, e com o tráfico de influências por conta da relação destes fazendeiros com policiais da região. [Os fazendeiros] possuem tudo à disposição deles, até registrar [violações] é dificultado. Também não somos recebidos pelo poder público. Já fui ameaçado várias vezes, fui inclusive alvejado. Os fazendeiros são organizados, eles dificultam que o agricultor consiga trabalho em outros lugares na mesma região. Durante uma denúncia [que fizemos], ele [os policiais] vazaram as informações [para os fazendeiros]. Em um dos casos meu amigo foi ameaçado com um tiro no pé, situação passada para a polícia federal, mas disseram que não são responsáveis por essa área. Teve uma matéria dizendo que o fazendeiro é criminoso, os fazendeiros jogam veneno na água que passa pela nossa mata. Nosso problema não são apenas os fazendeiros". Encerrou, Araújo.
Darlene Braga tomou a palavra para introduzir a fala de outra vítima da violência no campo e relembrou que quem mais sofre com as situações de violação de direitos são as mulheres e as crianças. Segundo ela, criou-se um sistema de criminalização contra as mulheres, e que são elas que estão segurando as organizações e movimentos sociais.
Conceição Ramos de Almeida, liderança da Comunidade Lago Novo, localizada no município de Boca do Acre, no sul do Amazonas, área acompanhada pela equipe de agentes da CPT-AC, agradeceu o apoio da pastoral. "A comunidade é um lugar de abrigo, de apoio quando precisa. Somos pequenos agricultores e temos dificuldade de sair, para jogar uma piçarra [material utilizado para melhorar o acesso aos ramais]. Só saímos do nosso ramal para pedir ajuda, pedir socorro. Não plantamos muito com medo de perder a produção, tiramos a verdura de canoa, é um trabalho pesado realizado por mulheres, num sobe e desce barranco", finalizou.
Após o encerramento da mesa, as pessoas presentes foram chamadas para participar e tecer perguntas às autoridades presentes. Ao fim, Sara Braga auspiciou que, no futuro, não haja mais conflitos. "A gente tem um sonho, que nos próximos anos não tenhamos que falar de conflito de terra", concluiu.
O lançamento contou com a presença de trabalhadoras e trabalhadores do campo, que dividiram espaço com representantes de movimentos e organizações sociais, órgãos do governo estadual e federal e do parlamento acreano. Foto: CPT Acre
Análise de dados alerta sobre conflitos no campo, no Estado do Acre, em 2022
Os números divulgados recentemente pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT) revelaram dados alarmantes nos conflitos por terra na região da Amazônia Legal em 2022. A análise abrangente dessas informações revela um cenário preocupante de violações de direitos por terra e território no Brasil, exigindo uma ação imediata das autoridades e atenção da comunidade internacional especializada.
Aumento Expressivo no Número de Conflitos por Terra - Em 2022, o Brasil registrou 1.572 ocorrências de conflitos por terra, um aumento de 16,70% em relação ao ano anterior. O número de famílias afetadas por esses conflitos também aumentou em 4,61%, totalizando 181.304 famílias. O estado do Acre, por sua vez, registrou 60 conflitos por terra, afetando 8.380 famílias. No entanto, esses números são ainda maiores se considerarmos a região do sul do Amazonas, que sofre influência direta dos conflitos identificados no Estado.
Trabalho Escravo e Manifestações de Resistência - Além dos conflitos por terra, o Acre registrou 2 casos de trabalho escravo, envolvendo 49 pessoas. No total, foram registrados 62 conflitos no campo, afetando 33.569 pessoas em todo o estado. Houve também 8 ocorrências de manifestações de resistência que mobilizaram 1.400 pessoas no Acre.
Amazônia Legal: Um Foco de Tensões - A região da Amazônia Legal foi particularmente afetada pelos conflitos em 2022. Foram registrados 1.107 conflitos no campo, representando mais da metade de todos os conflitos no país (54,86%). O aumento em relação ao ano anterior foi de 25,80%, destacando-se os conflitos por terra.
Os conflitos por terra na Amazônia Legal aumentaram mais de 33% em comparação a 2021, chegando a 926 ocorrências em 2022. Isso representa uma preocupação significativa, uma vez que a região concentrou 59% de todos os conflitos desse tipo no país, um aumento em relação a 2021, quando a região respondeu por 51% das ocorrências.
Desafios Significativos e Omissão das Autoridades - A Amazônia Legal também enfrentou um alto número de assassinatos no campo, com 34 dos 47 registrados em todo o país ocorrendo na região, representando 72,35% do total. Esses números destacam desafios significativos em termos de segurança pública e proteção dos direitos humanos das comunidades da floresta, bem como uma preocupante omissão e conivência das autoridades diante dos conflitos.
Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira (Amacro) - A região da Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira, situada dentro da Amazônia Legal, engloba 32 municípios em três estados e abrange uma área de mais de 454 mil km². Em 2022, foram registrados 150 casos de conflitos por terra na região, o terceiro maior número dos últimos dez anos. Esses conflitos frequentemente envolvem disputas entre grandes empresas e comunidades tradicionais.
A ZDS apresenta índices alarmantes de violência contra a pessoa, incluindo prisões, ameaças de morte, tentativas de assassinato e assassinatos. Nos últimos dois anos, 20 pessoas perderam a vida na região, sendo oito delas em 2022.
Ação Urgente é Necessária - Esses dados alarmantes exigem ação imediata das autoridades brasileiras e atenção da comunidade internacional especializada em questões de violações de direitos por terra e território. É essencial que medidas eficazes sejam tomadas para proteger as comunidades afetadas e buscar soluções para os conflitos na Amazônia Legal.