Em Anapu, Pará, elas falam sobre a continuidade da luta de Dorothy Stang em meio ao aumento da violência agrária
Por Julia Dolce | Agência Pública
Fotos: Julia Dolce
“Essa história aqui é de anos e juízes. Muitos, não só dois ou três”, me adianta a irmã Jane Dwyer, no início da nossa conversa, na sala da casa de madeira, com paredes cobertas por quadros que gritam diferentes palavras de ordem, pedindo reforma agrária, que ninguém solte a mão de ninguém, além de justiça por Dorothy Stang e pelos 19 demais assassinados nos últimos anos na luta pela terra em Anapu, no interior do Pará.
“Anos”, porque o tempo passa e a violência permanece. Entre 2015 e 2019, as vítimas foram se acumulando, e seus nomes foram espremidos na cruz vermelha ao lado do túmulo de Dorothy Stang, com espaçamento entre as letras tão mínimo, para fazer caber, que a leitura é quase comprometida. “Juízes” porque aqueles responsáveis pela segurança pública e jurídica da região entram e saem. Policiais, delegados, promotores. Corrompem-se, demoram, fecham os olhos para o quadro complexo dos conflitos agrários da região. Quem fica, trabalha, e defende, acaba transferido.
As irmãs Jane Dwyer e Katy Webster, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), permanecem. Mesmo após o assassinato de sua companheira, negam proteção estatal, porque acreditam que ela deveria ser para todas famílias de pequenos agricultores ameaçados. Colecionam os dados de cada caso em memórias afiadas que desafiam sua idade. Em quase duas horas de conversa, tentam resgatar o maior número de casos e denúncias que conseguem. Respondem a cada uma das perguntas, formuladas para abarcar um contexto geral, com exemplos concretos e distintos da violência.
Nesta semana, as irmãs foram informadas que um dos condenados pelo homicídio da Dorothy, em 2005, foi alvo de operações contra ocupação ilegal na Amazônia no Acre. Preso preventivamente pela Polícia Federal (PF), Amair Feijoli é suspeito de grilagem e ocupação ilegal de áreas na Amazônia. Em 2006, Feijoli foi condenado por tribunal do júri do Pará por participação no assassinato da missionária norte-americana naturalizada brasileira.
Vocês moram nesta casa há muito tempo?
Jane Dwyer — Desde outubro de 2005. Antes, a gente morava em uma sede da igreja. Depois do assassinato da Dorothy, começaram uma campanha que nós éramos terroristas, que andávamos armadas. Aí tivemos que nos separar fisicamente da igreja e viemos para o bairro. Muita gente ajudou e, dentro de uma semana, de terroristas, nós viramos vizinhas. Essa é a nossa casa, a casa das irmãs. Eles derrubaram nossa antiga casa, onde tínhamos nossas coisas guardadas. A gente levou o processo do assassinato da Dorothy pra Belém e distribuímos as outras coisas, porque não foi oferecido outro espaço, não.
Katy Webster — A madeira da nossa antiga casa ficou no São Rafael [Centro de Formação São Rafael, da CPT, onde está enterrado o corpo de Dorothy Stang]. Fizemos um viveiro.
Jane Dwyer — O viveiro dá suporte a todo o nosso trabalho.
Vocês se sentem seguras vivendo aqui hoje?
Jane Dwyer — A impunidade é a maior ameaça que existe. Eles falam o que querem, falam mal da gente, denunciaram a gente na Câmara Municipal neste ano. Foi um homem que se candidatou a deputado estadual no ano passado.
Katy Webster — Ele é um filho daqui de Anapu. Se juntou com um dos ruralistas daqui e se tornou a “boca” dele. Dizia que ia limpar os lotes ocupados. Perguntava na Câmara: “Por que as irmãs não assentam o povo em terras livres? Por que mexem com terra privada?”. Esse tipo de coisa. Ou falava que a gente devia estar dando aula de inglês, ou que nunca receberam nada da gente, ou perguntava por que a gente não estava fazendo caridade.
Jane Dwyer — Parece besteira, mas são questões sérias. Houve uma investida do Ibama recentemente em alguns lotes da região que estão todos desmatados. Queimaram as máquinas, as serrarias. Os madeireiros disseram que nós travamos o progresso. Porque denunciamos tráfico de madeira.
Nos acusam de incentivar as ocupações, coisa que a gente realmente não faz, porque é perigoso demais. Mas, uma vez que o povo chega lá, nós vamos também, porque se não vão matá-los. Então incentivar suicídio a gente não faz, mas, uma vez que o povo se arrisca, aí temos que ir. A verdade é que o povo informa a gente, ou nós conseguimos as informações dos crimes ambientais e denunciamos, sim. Assumimos que o povo não pode denunciar, se não morre.
Algumas pessoas acham que vão matar a gente, mas eles não entram aqui em casa porque têm medo dos cachorros. O bispo [dom João Muniz Alves, da prelazia do Xingu] não quer a gente andando só, então ele paga um motorista. Coragem de enfrentar e liderar ele não tem, mas apoiar ele apoia, ele diz em público.
Vocês acreditam que deveriam ter maior segurança dos programas públicos de proteção?
Jane Dwyer — Nós somos ameaçadas, mas quem é a maior vítima aqui é quem está defendendo o meio ambiente, o povo. Eles não tem quem defendê-los e quem tenta entrar para organizar acaba entrando nesse rolo. É o nosso caso. Mas eles estão lá primeiro ameaçados. Nos colocam como grandes defensoras, mas nem Dorothy era isso. Ela foi nomeada assim depois do assassinato, mas não se colocava dessa forma. Quando eu me coloco como defensora do meio ambiente, estou desviando a realidade. A realidade é que quem é ameaçado é quem se recusa a sair da terra, quem está resgatando a terra e replantando a floresta. Aí nos usam para desviar isso e o povo fica por conta. Nesse estilo de proteção, todo o foco fica na pessoa que chamam de defensor, mas deixam inúmeras pessoas totalmente abandonadas, totalmente vulneráveis, sendo que são elas que continuam lá, defendendo a terra. Então tiram um ou outro ameaçado, sendo que o povo todo é ameaçado.
Então quem é defensor é quem está lá vivendo com coragem de entrar, de enfrentar o capim, sabendo que o fazendeiro não vai querer, vai atrapalhar, e mesmo assim segue plantando a floresta. A gente ajuda, mas, se você pensar, a gente vive a custo da miséria das ameaças do povo. Se acabar, ficaríamos desempregadas. Sistemicamente é isso.
Desde quando a CPT começou a fazer a lista dos ameaçados em conflitos de terra, eles perguntam pra gente “cadê os nomes de Anapu?”, e a gente sempre fala que não faz essa lista, porque isso destaca pessoas, é prato cheio pra quem quer matar. É confirmar quem é a liderança. Aí a gente recusa. A gente acredita que tem que se lidar com ameaças de forma comunitária, para não deixar as vítimas mais vulneráveis ainda.
Quando o Estado abre um programa de defensores de direitos humanos, ele também confessa a incapacidade de lidar com a questão, porque deveria impedir ameaças e não esconder ameaçados. Vocês duas estão em algum programa?
Jane Dwyer — Não, a gente recusa, porque quem deveria estar é o povo, e, se o povo estivesse protegido, estaríamos protegidas também.
Katy Webster — Estamos criando sistemas de organização entre nós mesmos para que possamos nos proteger, para que a comunidade nos proteja e não seja preciso tirar gente pra fora nem colocar polícia pra dentro, e sim fazer uma proteção entre nós. O povo mesmo tem pensado nisso.
Vocês têm algum exemplo dessa organização?
Jane Dwyer — No Lote 96, a gente tinha montado todo um sistema de segurança, de internet, de câmeras, tudo, por conta dos ataques que estavam acontecendo de três em três meses. Aí a energia foi embora e o povo ficou totalmente isolado e vulnerável. Imagina o medo. Agora, devagarzinho, estamos conseguindo energia solar para pelo menos manter algum tipo de segurança e áreas com internet.
Katy Webster — Durante o Luz para Todos, a energia estava entrando em toda biboca aqui no município, inclusive áreas sub judice, que não estavam 100% regulares. O povo ajudava a colocar os postes. Faz tempo que os conflitos passam por essa questão da energia. Os capangas dos fazendeiros que achavam que eram donos das terras mandavam parar a instalação. Era pra ter energia nos lotes 96 e 97 há anos, mas o Peixoto [falecido fazendeiro proprietário de terras vizinhas aos lotes] travou essa energia e a palavra dele vingou. Agora, de repente, tinha um projeto da Norte Energia para implantar energia lá. Mudou a empresa concessionária, e a Equatorial assumiu e avançou, trouxe os postes, transformadores, fiação e começou. Mas de repente, de novo, tudo foi embargado. O povo conseguiu ficar com o equipamento, os postes, a fiação, e terminaram por conta. Teve energia por um ano e quatro meses. Mas aí apareceram 10 caminhões e 14 viaturas da polícia pra tirar a energia, alegando que era uma área de conflito, sub judice. Isso foi em 29 de novembro do ano passado. Depois, descobrimos que foram os produtores rurais que se reuniram em Belém pra botar pressão em cima da Equatorial lá.
Jane Dwyer — O Silvério [coordenador do núcleo Transamazônica da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa). Silvério, que já foi vice-prefeito de Altamira, representa uma das famílias mais poderosas da região, no sudoeste do Pará, reivindicando milhares de hectares de terras sem titulação definitiva. Em 2018, quando presidia o sindicato rural da cidade de Anapu, ele liderou acusações de associação criminosa e invasão de propriedade que levaram à prisão do padre José Amaro Lopes de Souza, da prelazia do Xingu, por três meses].
E já tem investigação disso?
Jane Dwyer — Não. O Ministério Público convocou uma reunião para ver isso. Diz a promotora que não consegue falar com o advogado da Equatorial em carne e osso. Ele quer fazer virtual e ela não quer. Aí ficam adiando e vão ganhar no cansaço.
Então, mesmo com o falecimento do Peixoto, o fazendeiro que se dizia dono dos lotes 96 e 97, existe essa mobilização de fazendeiros para defender a privatização dessas áreas? Um grupo que se defende entre si mesmo quando não está diretamente envolvido no conflito?
Katy Webster — No caso da fazenda do Peixoto, a herança é uma confusão total. Não sabemos quem da família assumiu, e parece que uma empresa de criação de gado ligada a um frigorífico comprou parte das terras.
Jane Dwyer — O problema é que já vimos o Silvério e outros fazendeiros acompanhando o Peixoto muitas vezes. E no dia que a polícia tirou a energia dos lotes 96 e 97 o Silvério estava lá, dentro de um carro. Ele não desceu, mas viram ele.
Durante o Fórum Agrário do Ministério Público, o Silvério também estava lá, junto à Maria Augusta, presidenta do Sindicato dos Produtores Rurais de Altamira (Siralta). Ele e outros representantes do agronegócio costumam frequentar esses espaços?
Jane Dwyer — Quando o pessoal do Lote 96 entrou na reunião e viu ele, ficaram se tremendo de medo. Parece que eles não faltam em nada, mas nós é que não frequentamos. Se for para sofrer, a gente fica aqui sofrendo com o povo. Nós fomos ontem, porque o MP [Ministério Público] colocou a foto da nossa escola no cartaz e achamos interessante. E ele [Silvério] também foi por isso.
A escola em questão é a escola do Lote 96, que foi incendiada no ano passado, certo?
Jane Dwyer — Sim, foi queimada em agosto do ano passado. A cada três meses, eles atacavam de alguma forma.
Na reunião, o Silvério disse que queria um espaço para discutir a questão da regularização fundiária, e que achava que a questão da educação deveria ser debatida em outro espaço.
Jane Dwyer — Sim, o MP está querendo resgatar a temática das escolas comunitárias do campo. Querem promover a educação do campo, que é toda uma outra educação, com outro currículo e calendário. A lei promove isso, mas nunca foi cumprida. Todos lá estavam a favor. Quando ele questionou [o tema da reunião], a promotora respondeu: ‘Eu sei qual é o meu trabalho e a responsável sou eu’. E ele acabou deixando a reunião.
Quando você tira uma escola de uma comunidade rural, vai contra toda a natureza, a cultura e a história dessa comunidade. Faz ela virar gado e toras de madeira. O que estavam dizendo é que o currículo deveria ser focado no campo, nas águas, na floresta, para manter essas comunidades. A escola é um ponto de referência não só da meninada, mas familiar, comunitário. É onde se reúnem, se organizam, aprendem e discutem, é onde se reúne gente de fora, de sindicatos, para ajudar o povo a entender as coisas. Então, sem a escola, o povo fica sem ponto de união.
Ontem ficou claro o incômodo que o sindicato rural tem com isso. E também se incomodam porque o nome da nossa escola é Paulo Anacleto, que foi um vereador do tempo de Dorothy, de uma família tradicional aqui de Anapu, que era influenciado pelos poderes, à direita. Ele ajudou a declarar Dorothy pessoa non grata [pela Câmara dos Vereadores de Anapu, em 2003]. Mas, com os anos, começou a frequentar espaços diferentes, como o Conselho Tutelar, se tornou presidente da Associação dos Mototaxistas e começou a ver as coisas de outra forma. Se aproximou de nós, frequentou a Comissão em Defesa de Anapu e falou que era uma pessoa errada, que estava entendendo coisas e mudando. Que estava vendo Dorothy e a nós de outra forma. Aí ele foi assassinado, em dezembro de 2019.
Mataram Márcio, um trabalhador de roça que, por não conseguir sustentar a família, por não ter terra, começou a trabalhar como mototaxista. Era protegido pelo Paulo. Mataram ele. [Márcio Rodrigues dos Reis era a principal testemunha de defesa do padre Amaro Lopes, outro colega da CPT que trabalhava próximo à irmã Dorothy Stang e foi acusado de uma série de crimes por fazendeiros do Siralta. Amaro foi preso em 2018. A CPT denuncia armação e assassinato de reputação por parte do sindicato.] Paulo disse que sabia quem tinha matado, começou a cutucar a polícia. E foi assassinado também. Agora ele é nosso, pelo caminho mais torto que existe no mundo. Colocamos o nome dele junto à cruz dos outros 18 assassinados desde que assassinaram Dorothy.
Perguntamos à família dele primeiro, porque eles são da Assembleia de Deus. Mas nós não temos religião, nossa religião aqui é lutar pela terra, é a mistura de todos os encontros. Mas perguntamos por conta da cruz. A família disse pra colocar. Então quem começou acusando Dorothy Stang terminou na mesma cruz que ela. O povo reconhece essa transformação dele, e por isso demos o nome dele pra escola do Lote 96. Isso deixou os fazendeiros com ainda mais raiva da nossa escola.
Vocês chamam de “consórcio da morte” esse grupo de poderosos, ligados ao agronegócio e à política local, que estão por trás do assassinato de todas essas pessoas ao longo das últimas décadas. De que forma os anos do mandato de Bolsonaro impactaram esse “consórcio”? Os fazendeiros e a pistolagem estão mais armados?
Jane Dwyer — Eu acho que o bolsonarismo estava aqui em Anapu antes do Bolsonaro se eleger. Ele não é o fundador desse negócio. Aqui é a direita que manda. Esses fazendeiros acham que têm razão, que têm direito, a propriedade privada reina e acham que povo é burro. E por isso eles dizem que educação não tem nada a ver com a pauta agrária, porque acham que a educação é uma ameaça. A impunidade é a maior ameaça. Além disso, a prefeitura aqui é uma máfia que mata, mata seus próprios até.
Katy Webster — A gente fica um pouco distante disso e só escuta o que falam na rua. Mataram o irmão do Silvério em 2018. O Silvério até tentou dizer que foi a mando do Amaro [padre José Amaro Lopes de Sousa, da CPT, preso em 2018, durante processo de perseguição jurídica pelos fazendeiros da região], mas ninguém acreditou, ninguém. Nem a polícia, porque sabiam que o irmão dele estava envolvido em um conflito com madeireiros. Tinham matado duas pessoas da prefeitura um tempo antes, Raimundinho, secretário das Obras, foi morto na região da 115 Sul. Ninguém foi preso.
Jane Dwyer — Nem uma palavra de luto da prefeitura.
Katy Webster — A própria prefeitura se condenou porque nem uma nota de pesar fizeram. Depois, não faz muito tempo, mataram o Osvaldo, que era secretário de Finanças, e estava pensando na possibilidade de se candidatar a prefeito. Aí foi assassinado aqui perto, no meio de uma casa de material de construção. A gente pensava que finalmente ia ver gente presa, mas nada.
Jane Dwyer — Mesmo quando todo mundo sabe quem matou, eles entram e saem da prisão.
Mas vocês acham que o poder de fogo desse “consórcio” aumentou?
Katy Webster — No final do ano passado, uns pequenos agricultores amigos nossos relataram pra gente que um fazendeiro que mora em um distrito de Senador José Porfírio, município vizinho daqui, está com um esquema de segurança fortíssimo, cheio de gente armada para defender o proprietário. Parece que a polícia foi lá na virada do ano para verificar e tem um arsenal de armas, tudo registrado. A polícia foi pra lá limpar e não tinha condição.
Jane Dwyer — Estavam matando gente por lá, mas nunca houve um processo para confirmar quem era responsável. É um fazendeiro conhecido, que já se envolveu em conflitos aqui em Anapu, como o assentamento Mata Preta. Na época, em 2016 e 2017, pistoleiros invadiam o tempo todo, queimaram as casas, as roças, atiravam em animais, tentando fazer o povo reagir no mesmo nível. E o povo tomou a decisão de não devolver. Esse fazendeiro já foi preso também, mas hoje está solto. Um dos nossos companheiros assassinados tinha chegado a afirmar em entrevista que, se morresse, seria pelas mãos dele. E hoje parece que está fazendo pior, com mais violência e esse arsenal regularizado, legal. Eles fazem, eles estão armados, e mesmo descobertos segue igual.
Hoje, esse fazendeiro está nessa gleba “Belo Monte”, que é uma nova fronteira agrícola. Aqui em Anapu, a terra era considerada melhor, mas já está quase cheia, mesmo que ainda vazia de agricultura familiar. Esses últimos decretos do Bolsonaro, entre 15 e 22 de dezembro, foram feitos pra isso aqui voltar aos anos 1970, no início da colonização, para garantir direito a quem estava aqui antes. Eles estavam aqui primeiro, porque grilaram tudo, e venderam em consórcio.
E houve alguma mudança no caráter das ameaças?
Jane Dwyer — Os fazendeiros hoje fazem churrascos e gravam vídeos, esse é um dos jeitos de ameaçar aqui. Passam uma mensagem de WhatsApp: “Esse é fulano, esse é beltrano. Estamos unidos, ninguém vai ocupar aqui”. A gente avisa, denuncia, mas não dá em nada. Foram para Brasília, mandaram um vídeo em reunião com o presidente do Incra, com o senador Zequinha Marinho. Tudo é mandado assim, as ameaças vêm assim. Mas o povo não entra na lógica, o povo é calado, reúne conosco e segura a peteca na medida do possível. Nesses anos todinhos, Anapu, sendo tão violenta, nunca morreu um fazendeiro pelas mãos de um trabalhador. Nunca, até hoje.
Mas na pandemia nosso povo se firmou. Não nos reunimos, mas nos comunicamos por WhatsApp. Depois de alguns meses, começamos a seguir madeireiros – eles não sabiam que era nosso carro – e pegamos muita informação e denunciamos assim.
Mas de que forma essas denúncias são feitas? Porque, pelo que estou entendendo, o poder público está ligado a esse “consórcio”. Existe uma segurança pública efetiva?
Jane Dwyer — A segurança pública sempre foi contra o povo. Nunca teve. Nem a Deca [Delegacia Especializada de Conflitos Agrários]. Teve uma época que tinham seis pessoas ameaçadas lá no PA Mata Preta. Tinham me dado um nome de um policial em Belém, para eu telefonar quando as coisas apertassem, e eu telefonei. Enquanto eu falava com esse policial, os assentados estavam na delegacia falando com o delegado, denunciando um assassinato. Tinham acabado de descobrir um corpo de um agricultor desaparecido há dias, o corpo todo apodrecido, e queriam que a polícia fosse lá. Ouviram do delegado que “trabalhador se mata toda hora, que a polícia não podia correr atrás disso”. Mas aí o meu contato em Belém telefonou para o delegado, enquanto o povo ainda estava lá, e ele mudou na hora, disse que ia organizar a operação. É uma impunidade e corrupção tão grandes que não tem como. A gente já teve uma ótima delegada, mas não deixaram ela trabalhar. O prefeito foi denunciar ela em Belém, e transferiram ela.
O último delegado da Deca Altamira nós tentamos tirar, e parece que conseguimos. Foi o Ivan Pinto. Ele já havia sido transferido da Deca Marabá por conta da sujeira que fez por lá. Foi denunciado pela Alepa [Assembleia Legislativa do Pará], pela CPT e pela defensoria pública.
E vocês têm contato com o atual delegado da Deca Altamira?
Jane Dwyer — Não.
Katy Webster — Tivemos uma live com o novo delegado, não lembro o nome dele. Ele nunca mais apareceu.
Jane Dwyer — Muda tanto. A gente nunca conhece. Porque nosso estilo não é de lidar com isso, e sim agilizar para que o povo assuma e determine seu futuro. A gente orienta, porque eles têm que aprender a usar e forçar o sistema público para defendê-los.
Então, aqui vocês não confiam na polícia para denunciar?
Jane Dwyer — Nada. A gente até tem contato, mas confiar na polícia… Teve um tempo agora, no ano retrasado, a gente estava denunciando extração ilegal de madeira para o MPF e MPE [Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual], e eles protegiam a gente, nunca divulgavam nossos nomes e conseguiam fazer o Ibama agir. Mas, no ano retrasado, entrou um novo procurador, ex-delegado da Polícia Federal, e acho que a presença dele mudou o sistema. Disseram que a gente teria que passar a denunciar diretamente para a Polícia Rodoviária Federal [PRF]. Aí nós pedimos um nome de confiança e disseram que não poderiam passar. Então, não tem como. Telefonar para um lugar aberto que ninguém sabe quem vai atender? Provavelmente, vão nos matar e matar nossos companheiros. Passamos um ano sofrendo, vendo a madeira saindo daqui, as castanheiras, oh, meu Deus… Mas a gente não entrou em contato. E hoje sabemos de todo o escândalo na PRF. Então, confiar na polícia?
Por conta de toda a violência e impunidade, foi a Dorothy que conseguiu convocar a Polícia Civil aqui. Antes não tinha. E, então, o delegado da Polícia Civil ficou contra ela. Foi ele que criou todo esse problema, junto com os fazendeiros.
Como assim?
Jane Dwyer — Esse delegado ficou do lado dos fazendeiros. Ela pedia acompanhamento, escolta, mas ele nunca deu. Chegou a dizer que o carro estava quebrado. E foi ele que montou todo o esquema contra o Geraldo Magela [técnico agrícola e ex-prestador de serviços do Incra que era braço-direito de Dorothy]. Ele era muito forte na defesa do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança. Lá tem madeira, minério e o melhor solo de Anapu. Ele ajudava a Dorothy a segurar a entrada de criminosos. Mas queriam matá-lo também. O plano era criar um tiroteio lá mesmo e matar os dois, mas eles não estavam juntos. Dorothy morreu de manhã e à noite morreu o agricultor Adalberto Xavier, o Cabeludo. Aí o delegado tentou incriminar o Magela, dizendo que ele era o mandante dos assassinatos. Ele teve que ficar 18 anos foragido, e no ano passado houve o julgamento do caso, e ele foi inocentado. O nosso advogado viu no processo da Dorothy que o Magela estava fazendo um Boletim de Ocorrência do assassinato dela na mesma hora do assassinato do Cabeludo. Então tinha uma prova dentro do processo o tempo todo de que ele estava na Delegacia da Polícia Civil de Anapu fazendo BO, na hora do segundo assassinato. O rapaz passou 18 anos foragido para não ser preso. Se fosse preso, provavelmente teria sido assassinado. E o delegado que criou tudo isso tinha a prova da inocência nas mãos dele o tempo todo. É tão macabro.
A pistolagem também é formada por policiais?
Jane Dwyer — Tem envolvimento de policiais, sim. Isso tem sido comprovado.
E o sindicato rural tem proximidade com a polícia?
Jane Dwyer — Deve ter, mas a gente não frequenta esse povo. Ficamos o mais longe possível. Nossa porta não é aberta para eles, eles não chegam nem perto de nossa casa.
Nosso trabalho é fazer o Incra criar coração. Temos um secretário de Agricultura que confiamos hoje em dia, o bichinho numa situação terrível. Numa prefeitura da morte, ele é a vida. Ele está começando a promover feiras com produtos fornecidos pelo nosso povo. Lá no Lote 96 tem macaxeira, farinha, melancia, limão, biribá, mais de 300 abóboras. Isso no lugar que disseram que deveria ficar o gado, porque o povo não trabalhava. Tá lindo.