COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

 

Por Andréia Silvério, da Coordenação Nacional da CPT

 Revisão: Comunicação / Cedoc

Foto: Divulgação / CNDH

 

Em audiência pública realizada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no dia 05 de agosto de 2023, foram evidenciados os conflitos socioambientais, a vulnerabilidade em que vivem povos do campo, das águas e das florestas, e as violências contra eles praticadas no estado do Pará e na Amazônia. O órgão colegiado realizou diversas atividades durante o período dos Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia, sendo unânimes as denúncias de violações de direitos humanos, violência policial e omissão estatal escutadas.

Uma denúncia em especial ganhou força a partir da audiência pública! O advogado popular e indígena Jorge Tembé relatou sua experiência no acompanhamento do conflito agrário entre povos indígenas Tembé, comunidades quilombolas, extrativistas e agricultoras e a empresa de exploração de óleo de palma Brasil BioFuels (BBF) na região do Acará. Diversas violações contra os direitos das comunidades se destacam nesse caso, especialmente a ausência de consulta prévia, livre e informada, inexistência de estudo de componente indígena e não realização do devido processo de licenciamento ambiental pelos órgãos ambientais competentes para instalação da monocultura de palma.

Além disso, as famílias das comunidades sofrem com as constantes ameaças de morte e prisão, criminalização, agressões, tentativas de assassinato e homicídios, praticados por seguranças privados prestadores de serviço para a empresa BBF, e até mesmo por agentes públicos do estado do Pará.

Já na sexta-feira, dia 04, fora amplamente divulgada a notícia de intensificação do conflito em razão de atos de violência praticados por seguranças da empresa MTS Segurança LTDA, contratada pela BBF. O jovem indígena Kauã Tembé de 19 anos, da Aldeia Kunawaru, havia sido baleado e encontra-se hospitalizado em Belém, buscando recuperar-se do disparo que atingiu seu órgão genital.

Advogados que acompanham o caso ressaltam a necessidade de investigar a atuação das forças policiais frente ao conflito, já que são constantes os relatos de que policiais militares dão suporte aos seguranças particulares da empresa BBF, além de agirem com abuso de autoridade, intimidando, ameaçando e prendendo ilegalmente indígenas na região.

Foto: Andréia Silvério

 

Três dias após a audiência pública citada acima, na última segunda-feira (07), representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos puderam presenciar o modus operandi da polícia militar local. 

Na manhã do dia 07, uma comitiva do CNDH, acompanhada de organizações da sociedade civil local, nacional e internacional, órgãos públicos como o Ministério Público do Trabalho (MPT), e observadoras da Organização das Nações Unidas (ONU) se deslocou em missão, desde a capital, Belém, até o município de Tomé-Açú, a 265 km de distância. O objetivo foi ouvir e apurar as denúncias de violação de direitos humanos em decorrência de conflitos socioambientais e agrários na Mesorregião do Nordeste Paraense, especificamente nos municípios de Tomé-Açu e Acará, anteriormente apresentadas ao CNDH.

Contudo, além de ouvir as comunidades locais que aguardavam a comitiva, as organizações atuaram ativamente para evitar maiores consequências negativas decorrentes de ação criminosa e ilegal praticada por seguranças particulares armados, e pela própria polícia militar de Tomé-Açú. 

No período de deslocamento entre Belém e o local agendado para reunião com as comunidades, no Distrito de Quatro Bocas, a comitiva recebeu a grave notícia que foram baleados outros três jovens, da Aldeia Pytawã e Aldeia Turé Mariquita, após manifestação realizada pelos indígenas na portaria de uma das fazendas da empresa BBF. Uma das vítimas, a jovem Elaine Tembé recebeu um tiro no pescoço e enfrenta um delicado processo de recuperação.

Para além do baleamento, já nas vésperas do início da reunião com as comunidades, a comitiva também foi surpreendida com a notícia de que o jovem Felipe Tembé, recentemente atingido por tiros, acabara de ser preso pela Polícia Militar. Ele foi uma das vítimas das tentativas de homicídio praticada pelos seguranças privados da BBF.

No destacamento da Polícia Militar, advogados populares e representantes do CNDH foram informados pelo Major Warner, que o jovem Felipe havia sido preso em flagrante pelo crime de dano ao patrimônio privado da empresa e transferido para a delegacia de Polícia Civil em Castanhal, município localizado a cerca de 200 km de Tomé-Açú, local de ocorrência do fato do qual Felipe era acusado.

A ilegalidade da prisão e o abuso de autoridade praticado pelo Major Warner geraram comoção entre as comunidades presentes, que passaram a se manifestar pacificamente na porta do destacamento da Polícia Militar, exigindo a soltura de Felipe e seu retorno imediato para Tomé-Açú. Em absoluto estado de revolta, os manifestantes mais uma vez enfatizaram serem vítimas de sucessivos atos de violência praticados pelas forças policiais militares locais.

Permeada por diversos momentos de tensão e risco de repressão armada por parte dos policiais contra os manifestantes, o ato se estendeu até as 17:00 horas, quando a comitiva foi informada de que o jovem Felipe Tembé havia sido libertado em Castanhal e logo retornaria em segurança para sua comunidade. 

 

Histórico do conflito contra comunidades indígenas do Povo Tembé, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e agricultoras do Vale do Acará.

Conflito socioambiental e agrário que ocorre na mesorregião do Nordeste paraense nos municípios de Tomé-Açu e Acará, em dois territórios de povos e comunidades tradicionais, sendo eles: 1) A Terra Indígena (TI) Turé Mariquita e 2) As comunidades quilombolas do Alto Acará e a de Nova Betel, violadas em decorrência das atividades de plantio de óleo de palma (dendê) realizada pela empresa Brasil Bio Fuels (BBF). 

A Brasil BioFuels é uma empresa produtora de óleo de palma fundada em 2008 no Estado de Roraima, e que no ano de 2020 comprou a empresa BioPalma da Amazônia S/A, antes pertencente à mineradora Vale. A operação envolveu a venda da totalidade das ações da empresa, a qual possuía milhares de hectares de plantações dendê (dendezais) no Pará. 

Segundo estudos científicos realizados por Damiani, 2017:

[...] No Nordeste paraense, a microrregião de Tomé-Açu foi alvo de políticas de estímulo à dendeicultura, concentrando as plantações desta oleaginosa no Estado que responde por 95% da área plantada no Brasil (CARVALHO et al., 2015). Nesta região, no município de Tomé-Açu, extensas plantações de grandes empresas nacionais e transnacionais chegaram às proximidades de três áreas indígenas da etnia Tembé – aldeia Urumateua, Terra Indígena Tembé e Terra Indígena Turé-Mariquita (DAMIANI, 2017, p 25). 

 

[...] Na última década, assim como Tomé-Açu, outros 36 municípios da região Nordeste paraense foram foco de investimentos de uma dezena de empresas para a produção de dendê, no chamado Polo do Dendê (LAMEIRA, VIEIRA e TOLEDO, 2015). Políticas de estado criam as condições favoráveis para estimular a adoção de um modelo de desenvolvimento regional com foco nesta commodity no Nordeste paraense. Para Nahum e Santos (2017) foram criados “território-rede” do dendê, caracterizados por espaços territoriais cuja marca é a concentração e centralização de terras dominadas por esta monocultura em que vastas áreas isoladas se tornam pontos da rede que se forma em âmbito regional (DAMIANI, 2017, p. 35). 

 

Os dendezais, comprados pela BBF em 2020, cobrem os dois lados da estrada de terra que leva aos territórios dos povos e comunidades tradicionais. As delimitações dos três territórios estão em disputa na Justiça. As famílias quilombolas aguardam há mais de 10 anos pela titulação das duas áreas. Já os Tembé requerem, desde 2016, a ampliação da terra indígena de 147 hectares, demarcada há 30 anos. 

Enquanto as comunidades lutam pela regularização de seus territórios, a BBF assegura ser dona de fazendas sobrepostas às terras reivindicadas. Em meio ao caos fundiário, um clima de ameaças e violência se intensifica na região. “É a guerra do dendê”, afirmam os povos (REPORTER BRASIL, 2022). 

Desde setembro de 2022, a tensão do conflito aumentou. Líderes indígenas e quilombolas sofreram ataques a tiros que culminaram no assassinato de um não-indígena e deixaram dois indígenas Turiwara e um não-indígena feridos no município do Acará, no Pará. As ações da empresa não se restringem a agressões físicas. Duas grandes valas foram abertas na estrada que liga a terra indígena e a reserva indígena Turé Mariquita II – área de 587 hectares criada em 1996 – ao quilombo Alto Acará AMARQUALTA, impedindo a circulação de mais de 700 famílias. 

Além disso, a segurança armada e privativa da empresa se utiliza da violência e impede o direito de ir e vir dos quilombolas e indígenas no próprio território das comunidades. O estímulo à violência e ao crime ganha apoio de alguns políticos locais, como o deputado Delegado Caveira (PL). “Onde a justiça não alcança, a pólvora tem que alcançar”, afirmou este deputado em uma manifestação de trabalhadores da BBF em Belém, em abril, contra as ações dos indígenas e quilombolas (REPORTER BRASIL, 2022). 

Os territórios indígenas e quilombolas estão estrangulados por esses empreendimentos nocivos à existência digna. Sem uma zona de amortecimento que deveria existir de pelo menos 10 km de distância entre os cultivos e a área das comunidades, sem licenciamento ambiental da atividade da BBF, resultando em graves impactos socioambientais que não foram avaliados em um estudo de impacto ambiental. Além disso, o empreendimento, toda a cadeia produtiva e os impactos ocorrem em total desconformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), instrumento este que é recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). 

 

Os recorrentes crimes praticados contra povos do campo, das águas e das florestas no Pará e na Amazônia

O professor da Universidade Estadual do Pará, Aiala Couto, e os advogados da CPT no Pará, Raione Lima e José Batista Gonçalves Afonso, participaram da audiência pública realizada conjuntamente com o CNDH em Belém, e ressaltaram o contexto de violência e impunidade em que vivem essas populações.

Foto: Lilian Campelo / Assessoria de Comunicação da ALEPA

 

Segundo Batista, com base nos dados registrados pela CPT nos últimos 40 anos, é possível afirmar que o Pará é o estado com maior número de ameaças, mortes, chacinas e casos impunes do Brasil. Dentre os 1.536 casos registrados pela CPT entre 1985 a 2021, dos quais resultaram 2028 vítimas de assassinato, apenas 147 foram julgados. Isso significa que somente 9,57% dos casos foram a julgamento perante o Poder Judiciário (CPT, 2023). Destes assassinatos, 741 pessoas foram vitimadas no Pará, e 1.384 em todos os estados da Amazônia.

É importante também destacar o número de vítimas em massacres no campo [hiperlink para a página]. De todos os casos registrados pela CPT, ao menos 293 foram vítimas de massacres no estado do Pará, tal como em Eldorado dos Carajás, em 1996, e em Pau D’Arco, em 2017. Em ambos os casos policiais militares e civis foram identificados como responsáveis pelos homicídios. 

Nessa mesma linha, destaca-se o caso de Corumbiara, em 1995, no estado de Rondônia, quando 8 sem-terras foram assassinados durante uma operação com cerca de 300 agentes da tropa de elite da polícia militar. Em 2020, o Judiciário reconheceu também a morte de um adolescente durante o ataque, enquanto morte presumida, já que não foi encontrado nenhum resto mortal. 

Um outro caso, dessa vez mais recente, é o massacre que ocorreu no ano de 2020 contra comunidades ribeirinhas e indígenas na região do Rio Abacaxis, no estado do Amazonas. Ao todo, seis pessoas foram assassinadas também por policiais militares durante uma operação policial autorizada pelo governo estadual. Denota-se que tais comunidades da região do Rio Abacaxis ainda se encontram ameaçadas pelo conflito e por sua vez, na iminência de novos ataques.

Segundo o professor e pesquisador da Universidade do Estado do Pará, Aiala Couto, nos últimos anos, além das tradicionais violências praticadas contra esses povos, tem crescido as articulações do crime organizado na Amazônia, novo agente atuante na expropriação de terras públicas e exploração predatória dos recursos naturais. Esse movimento torna cada vez mais frequente a presença de facções criminosas nos territórios.

O contexto de violência e ameaças são a dura realidade enfrentada por lideranças em comunidades rurais, tradicionais e indígenas no estado. De acordo com a advogada da CPT, Raione Lima, existem 55 defensores incluídos no Programa Estadual de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Pará, enquanto outros 53 aguardam análise de seus pedidos de inclusão no Programa.

Ainda segundo Raione, que acompanha o Conselho Deliberativo do Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos  no Pará (CONDEL/PPDDH), os órgãos responsáveis pela política pública não têm pensado em proteção coletiva dos territórios ameaçados, somente individual dos defensores. Isso é uma fragilidade, pois “o programa do jeito que está funcionando não está sendo eficaz na proteção de direitos humanos”. 

A imensa maioria dos casos de pessoas defensoras de direitos humanos ameaçadas no Pará estão relacionados a conflitos socioambientais. O caos fundiário é agravado pela omissão do estado, especialmente dos órgãos fundiários. Problemas como grilagem, pistolagem, ameaças de morte e expulsões continuam sendo recorrentes. Outro elemento tem se mostrado um agravante em conflitos no campo no Pará: a emissão de licenças de operação pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Estado, para implantação de monocultivos em áreas vizinhas a territórios indígenas e tradicionais, sem respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e sem a devida fiscalização dos impactos ambientais decorrentes da atividade.

Esses fatos demonstram que é necessário dar um basta a essa realidade. “Não é aceitável que chefes de estado discutam um modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, enquanto os verdadeiros guardiões da floresta continuem sendo massacrados impunimente em seus territórios. Essa foi a fala do Presidente do CNDH, André Carneiro Leão, durante reunião com os secretários Ualame Machado, da Secretaria de Segurança Pública e Jarbas Vasconcelos, da Secretaria de Direitos Humanos e Igualdade Racial, ambos do estado do Pará.

A reunião, que já havia sido agendada antes do agravamento do conflito agrário em Tomé-Açú, foi realizada no dia 08 de agosto e contou também com a presença de representantes de outros órgãos federais e estaduais, como parlamentares da Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA).

Uma das exigências feitas pelos representantes do CNDH durante a reunião, direcionada ao Secretário de Segurança Pública e ao Governador do estado, Hélder Barbalho, foi para que se determinem o afastamento imediato do Major Warner, responsável pela prisão ilegal do jovem Felipe no dia 07 de agosto.

Ao final das atividades em Belém, o CNDH emitiu a Recomendação 16, de 08 de agosto de 2023, referente à missão realizada na região do Acará, apontando como principal ação necessária e imediata, para por fim à situação de violência contra as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e extrativistas, a constituição de um gabinete de crise pela Secretaria Geral da Presidência da República, em coordenação com o Governo do Estado do Pará, participação do CNDH e órgãos do executivo, legislativo e judiciário, federal e estadual.

O papel desse gabinete de crise será tratar das questões urgentes como a segurança das comunidades ameaçadas, investigação dos crimes relacionados ao conflito e, de maneira especial, a resolução dos problemas fundiários relacionadas à área em disputa.

 

Belém, 10 de agosto de 2023.

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