COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

O relato dessa iniciativa integra a campanha 'Fraternidade Sem Fome, pão na mesa e justiça social'

 

 Por Júlia Barbosa CPT Nacional | Com informações da CPT RS

 

Doação de sementes crioulas às famílias da Aldeia Kaingang Foxa, Lajeado/RS. Foto: CPT RS.

Com a missão de combater a insegurança alimentar de milhares de famílias camponesas, o programa 'Sementes da Solidariedade: germinando alimentos e colhendo saberes' é uma iniciativa comunitária desenvolvida no Rio Grande do Sul. A experiência, que teve início em maio de 2021, leva sementes crioulas, mudas de cultivos alimentares, bioinsumos e plantas medicinais produzidas por famílias de pequenos agricultores a comunidades tradicionais e originárias de várias regiões do estado.

Com as doações, o projeto já beneficiou cerca de 795 famílias indígenas das etnias Kaingang e Guarani Mbya, distribuídas em 28 comunidades do RS, além de 329 famílias quilombolas, em 15 comunidades do estado. Já com a compra e comercialização de sementes e mudas, o programa contribui para a geração de renda de mais de 30 famílias camponesas e assentadas, consideradas guardiãs das sementes.

Insegurança alimentar no contexto das disputas por terra

De acordo com Luiz Antonio Pasinato, da Comissão Pastoral da Terra do Rio Grande do Sul (CPT/RS), a condição alimentar das famílias envolvidas na doação de sementes e mudas do projeto enfrenta dificuldades constantes, em grande parte, pela pequena quantia de terras de que dispõem para o cultivo. Segundo Pasinato, as comunidades indígenas integrantes do projeto, com exceção da Comunidade Kaingang de Inhacorá, sobrevivem em espaços diminutos de terra.

Da mesma forma, as famílias quilombolas, descendentes de negros e negras escravizadas, resistem em pequenos espaços rurais distribuídos no interior do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, é importante ressaltar que a origem dos problemas agrários e da distribuição de terra no Brasil está diretamente ligada à escravidão e à colonização. Antes da abolição da escravatura, prevendo maneiras de impedir que negros e indígenas acessassem o direito à terra, fazendeiros, junto à coroa, aplicaram a Lei de Terras de 1850. A lei previa que a aquisição só poderia ser feita por quem provasse já ser dono da terra e que poderia comprá-la, o que seria impossível para indígenas e negros recém-libertos à época.

Por consequência, ainda hoje, a realidade de indígenas e quilombolas em relação ao acesso à terra continua dramática, sofrendo, inclusive, constantes ameaças e tentativas de desterritorialização. Prova disso é a atual resistência e luta indígena contra o projeto do Marco Temporal, atualmente aguardando a retomada do julgamento no Supremo Tribunal Federal, que coloca em cheque a demarcação de terras indígenas, além de atentar contra direitos fundamentais dos povos originários garantidos pela Constituição Federal.

É nesse contexto de disputas e inacessibilidade à terras, que dificulta a possibilidade de cultivo e intensifica a insegurança alimentar das famílias, que o projeto se insere, viabilizando e garantindo apoio para produção de suas hortas e roçados, além de auxiliar na produção de alimentos de forma sustentável e agroecológica. 

Doação de sementes crioulas às famílias do Quilombo Solidão, Pedras Altas/RS. Foto: CPT RS. 

Insegurança alimentar no contexto da pandemia de Covid-19

A partir de 2020, com a pandemia do coronavírus, a situação das comunidades originárias e tradicionais camponesas se agravou de forma profunda. De acordo com Pasinato, houve um aprofundamento da vulnerabilidade econômica das famílias indígenas do RS, pois a venda de artesanato, comercializado principalmente em espaços públicos de aglomeração de pessoas e atividades coletivas, era uma de suas formas de sobrevivência. No contexto de isolamento social e emergência sanitária, isso não era mais possível.

Nas comunidades quilombolas, por sua vez, Pasinato afirma que o trabalho sazonal na agricultura, ou mesmo pequenos serviços nas cidades, era uma fonte de renda complementar à pequena produção agrícola. Com a pandemia, essas atividades econômicas também foram afetadas, intensificando a fragilidade financeira e, consequentemente, a insegurança alimentar das famílias no estado, mas também em todo o país.

Colheita de frutíferas doadas às famílias da Aldeia Indígena Mbya Guarani, Maquiné/RS. Foto: CPT RS.

Fraternidade no combate à fome

Diante dessas fragilidades, nasce a iniciativa para realização do programa, em uma parceria entre a Comissão Pastoral da Terra, o Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Cáritas Brasileira, juntamente aos movimentos sociais do campo, especialmente o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e suas cooperativas.

A parceria indispensável dos movimentos populares do campo e suas organizações cooperativistas tornaram possíveis as doações de sementes e mudas, que são produzidas por famílias assentadas e por pequenos agricultores do RS, com acompanhamento da CPT, do CIMI e do ICPJ. O processamento das sementes é realizado em Unidades de Beneficiamento mantidas por cooperativas de assentados da reforma agrária, como a Bionatur e a Candiota, e de pequenos agricultores, como a Cooperfumos e a Encruzilhada do Sul. 

Assim, a CPT, em conjunto com as famílias camponesas, assume o compromisso de guardar, proteger e multiplicar a biodiversidade alimentar como uma de suas missões pastorais. Segundo Pasinato, a enorme variedade de verduras, leguminosas, hortaliças, plantas medicinais e árvores frutíferas nativas se deve a esse esforço coletivo. Além do resgate das sementes varietais, o projeto Sementes da Solidariedade contribui na divulgação da fitoterapia, na construção de cisternas, na proteção de fontes e na organização social das comunidades envolvidas. Durante o período da pandemia, o projeto atuou, também, na coleta e distribuição de alimentos e cestas básicas para as famílias. 

Dessa forma, o programa estimula o fortalecimento das comunidades, principalmente, no aspecto de possibilitar a produção da própria alimentação nos territórios indígenas e quilombolas da região, garantindo segurança e soberania alimentar de forma comunitária. Ainda, através da valorização econômica e social do trabalho das famílias guardiãs e produtoras de sementes, o projeto também contribui para a geração de renda das famílias, comunidades e cooperativas camponesas.

Doação de sementes crioulas às famílias da Aldeia Kaingang Foxa, Lajeado/RS. Foto: CPT RS.

Desafios e esforços para a continuidade

Segundo Pasinato, a produção de sementes já tem sua continuidade programada e é uma atividade permanente da instituição e das famílias guardiãs de sementes, que com muita luta, em um ato de resistência, guardam, protegem, multiplicam as sementes, contribuindo com o fortalecimento da biodiversidade, da soberania alimentar e genética nas comunidades. Para a continuidade, o projeto segue explorando alternativas de comercialização das sementes, em uma busca ativa pela captação de recursos, em meio a uma conjuntura marcada pela acelerada destruição de políticas públicas, especialmente das que asseguravam investimentos e comercialização para a economia camponesa. Assim, com muitos desafios, mas também com muita insurgência e teimosia, característico dos povos do campo, das águas e das florestas, o projeto Sementes de Solidariedade segue germinando alimentos e colhendo saberes por uma terra sem males e sem fome.




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