COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Família e lideranças indígenas criticam falta de informações. Secretaria de Saúde Indígena diz que não deve atender e contabilizar casos de indígenas que vivem em cidades, mas MPF recomenda atendimento universal

Por: Oswaldo Braga de Souza
Foto: Alter do Chão | Cristiano Martins/Agência Pará
Fonte: ISA

Uma senhora indígena, de 87 anos, da etnia Borari, que morreu na vila de Alter do Chão, em Santarém (PA), no dia 19, teve resultado positivo para o teste de Covid-19. Ela é também a primeira pessoa a morrer no estado com resultado positivo do exame para a doença. Até o início da noite de hoje, o Pará tinha 48 casos confirmados de contaminação.

A divulgação do caso de Alter do Chão provocou polêmica. Integrantes da família da idosa e lideranças indígenas reclamam que tomaram conhecimento da informação pelas redes sociais, só ontem (1/4). Apesar disso, o resultado do teste ficou pronto cinco dias após a morte, em 24/3. A Secretaria de Saúde Pública do Pará (Sespa) publicou o exame no Twitter porque um parente teria negado que se tratava de uma vítima do coronavírus (veja tuíte abaixo). A reportagem do ISA apurou que foram feitos exames em parentes próximos que cuidavam da indígena. Os resultados saem em alguns dias.

 

Hoje pela manhã, o prefeito de Santarém, Nélio Aguiar (DEM), gravou um vídeo para as redes sociais para confirmar o teste positivo. “Assim que teve o anúncio da Sespa, nós entramos em contato com a família, que não aceita esse resultado. Eles não têm nenhum sintoma. Já estão fazendo a quarentena”, disse, em entrevista coletiva nesta quarta.

O Ministério Público Federal (MPF) no Pará instaurou um inquérito sobre a morte. Uma das denúncias que serão investigadas é de que não houve notificação da suspeita de Covid-19. No dia 20/3, centenas de pessoas compareceram ao funeral da idosa, muito querida em toda a vila. Os procuradores apontam que a confirmação da morte pelo coronavírus preocupa a população em virtude da possibilidade da contaminação das pessoas que compareceram ao velório.

Auricélia Arapium, do Conselho Indígena Tapajós e Arapium (Cita), relata que não foi feita uma contraprova. Ela reclama que nem a Sespa e nem o município tiveram o cuidado de divulgar que se tratava de uma indígena. O Cita encaminhou um ofício ao órgão estadual pedindo esclarecimentos sobre o caso.

“Nossa maior preocupação é com a demora para chegar os resultados dos exames. E a falta de estrutura do município e nas aldeias”, conta Auricélia. “Já não existem leitos hospitalres no município para uma situação convencional. Imagina se esse vírus se propagar nas aldeias. Como vão buscar os pacientes? Não tem transporte”, continua. Ela denuncia ainda que as organizações e lideranças indígenas não têm sido informadas adequadamente pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, sobre como o órgão vai atuar na região.

A reportagem entrou em contato com um parente da senhora indígena, mas ele disse que a família preferia não se pronunciar.

Indígenas "não aldeados"

Na noite desta quarta, o secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, afirmou à reportagem que tinha recebido apenas informações preliminares do caso e que, a princípio, ele seria o de uma indígena “não aldeada”.

O secretário disse que, conforme a legislação, a Sesai deve atender aos indígenas “aldeados” e que o monitoramento do órgão de casos suspeitos, confirmados e de mortes por Covid-19 só está considerando esses indígenas. Portanto, a princípio, a senhora morta em Alter do Chão não deverá ser computada nos números. Os “não aldeados” devem ser atendidos pelos serviços convencionais do Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com Silva.

A questão é controversa. O MPF, lideranças indígenas e organizações indigenistas entendem que a Sesai deve atender todos os indígenas, independente do local de moradia. “Todas as medidas devem assegurar o atendimento, de acordo com o regramento constitucional da saúde indígena, que prevê atendimento específico e diferenciado para esses povos, com respeito às suas práticas e tradições para todos os indígenas do país, independente do local onde vivem: quem vive em centros urbanos ou fora de terras indígenas já reconhecidas também deve receber os cuidados para evitar a expansão do novo coronavírus”, diz comunicado do MPF sobre recomendação divulgada hoje.

Na semana passada, a 6ª Câmara do órgão, que trata dos direitos dos povos indígenas, já tinha feito pedidos de informação ao Ministério da Saúde, Sesai e Ministério da Justiça sobre as ações para combater a epidemia entre essas populações. Nenhum deles foi respondido até agora.

Uma decisão da Justiça Federal do próprio município de Santarém obriga a Sesai a atender toda a população indígena local, urbana e rural. Segundo o IBGE, dos 896,9 mil indígenas do país, 324,8 mil ou 36% viviam em zona urbana em 2010, quando foi realizado o último Censo no Brasil.

Caso confirmado oficialmente

Na terça, a Sesai havia confirmado oficialmente o primeiro caso de contaminação por Covid-19 em indígenas no país. É o de uma jovem de 20 anos, da etnia Kokama, agente indígena de saúde (AIS), do município de Santo Antônio do Içá, no Alto Rio Solimões, noroeste do Amazonas.

Segundo a secretaria, ela foi uma das pessoas que teve contato com um médico diagnosticado com a doença, na semana passada. Ainda conforme a Sesai, estão ambos isolados e sem sintomas. Além disso, 12 pacientes indígenas tratados por ele também estão confinados. Nenhum dos testes neles realizados teria dado positivo. As pessoas que tiveram contato com a indígena estão sendo monitoradas e sete delas foram testadas. Os resultados ainda não saíram.

Silva desmentiu a notícia publicada pela imprensa de que a jovem teria morrido. Na semana passada, jornais também publicaram que dois indígenas teriam sido contaminados em Santo Antônio do Içá, mas a Secretaria de Saúde do município desmentiu a informação. A Secretaria de Saúde do Distrito federal também divulgou que um indígena teria morrido por Covid-19, em Brasília. Um dia depois, voltou atrás e retificou a informação.

Há consenso entre lideranças indígenas e pesquisadores de que as populações indígenas são mais vulneráveis a epidemias em função de desvantagens econômicas, sociais, de acesso à saúde e saneamento, além da prevalência de doenças como desnutrição e outras infecções respiratórias. Esses fatores podem fazer com que o coronavírus espalhe-se de forma muito rápida e difícil de conter (saiba mais).

Casos suspeitos

Conforme boletim da Sesai desta quinta, há 22 casos suspeitos de indígenas contaminados no país. São três no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Interior Sul (RS-SC); três no do Litoral Sul (SP-PR); três no do Alto Rio Juruá (AC); três no Ceará; três no Maranhão; três em Manaus, um no do Alto Rio Solimões e um no de Parintins (AM); um no do Amapá e Norte do Pará; um no de Minas Gerais e Espírito Santo.

A Sesai criou um comitê de crise que faz a atualização diária da situação. Os números do governo federal, no entanto, têm sido atualizados mais lentamente do que as notificações feitas pelas secretarias de Saúde estaduais. Assim, tendem a ser menores.

Em reunião com parlamentares e lideranças indígenas na semana passada, Silva informou que haveria R$ 470 milhões parados nas prefeituras de todo o país que podem ser destinados ao atendimento dos indígenas. De acordo com o secretário, os técnicos da Sesai estão em contato com os municípios para que a verba seja gasta. O orçamento do órgão para 2020 é da ordem de R$ 1,5 bilhão. Na conversa, Silva defendeu o isolamento de aldeias e territórios como forma de prevenir a contaminação pelo coronavírus.

“A Sesai tem trabalhado bastante para resolver os problemas relacionados ao coronavírus, principalmente na parte de prevenção e correção de problemas. Estamos trabalhando com nossa equipe completa, assim como os 34 Dseis. Todo o plano de contingência [contra a pandemia] está pronto e sendo implementado”, afirmou Silva à reportagem do ISA.

Críticas

A atuação da Sesai já tinha sofrido críticas. “O que já se viu, em linhas gerais, é que ele [o plano de contingência] é muito contraditório. Ele não é direto. Ele é genérico. Não é um plano claro. É igual a tantos outros planos indigenistas que não condizem com a nossa realidade”, criticou Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em entrevista ao site Amazônia Real, logo depois que o documento foi divulgado, no dia 17.

“Os distritos estão completamente enfraquecidos, assim como os polos base [de saúde]. Apesar de ter equipes multidisciplinares locais com médicos e enfermeiros, nós sabemos que muitas estruturas estão precárias e sem insumos para amenizar isso tudo, como álcool em gel e máscaras, para que haja o atendimento adequado das comunidades e fazer o devido acompanhamento dessa pandemia”, destacou Dinaman Tuxá, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), também em entrevista ao site Amazônia Real.

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