No dia 09 de agosto de 1995, às três horas da madrugada, 300 pistoleiros e policiais investiram contra o acampamento na ocupação da Fazenda Santa Elina, em Corumbiara (RO), com bombas e tiroteio por cerca de quatro horas. Dois policiais morreram no confronto, diante da reação dos trabalhadores, pegos de surpresa enquanto dormiam. Do lado dos sem-terra, aproximadamente 20 trabalhadores desaparecidos, 350 lavradores gravemente feridos, 200 presos e 8 mortos, incluindo uma criança. Vanessa dos Santos Silva (criança), Nelsi Ferreira, Enio Rocha Borges, José Marcondes da Silva, Ercílio Oliveira Campos, Odilon Feliciano, Ari Pinheiro Santos e Alcino Correia da Silva foram as vítimas.
Josep Iborra Plans*
Perícia apontou casos de execução entre os mortos e de espancamento entre os sobreviventes. Relatos apontam que mesmo após dominados, os acampados foram arrastados, pisoteados, enfileirados e chutados, além de receberem tiros na orelha e em várias partes do corpo. Até o final da década, foram intensas as mobilizações pelo julgamento e para que o massacre de Corumbiara não fosse esquecido.1
Quando o tribunal julgou os fatos, em 2000, “Resumindo de maneira simplória, a acusação levou ao julgamento de dois posseiros e de 12 agentes de segurança. Do lado dos ocupantes, saíram condenados Cícero Pereira Leite Neto, seis anos e dois meses de reclusão, e Claudemir Gilberto Ramos, oito anos e meio. Entre os PMs, foram sentenciados os soldados Airton Ramos de Morais, a 18 anos, e Daniel da Silva Furtado, a 16 anos, e o então capitão Vitório Régis Mena Mendes, a 19 anos e meio.”2
Indígenas também foram massacrados em 1985 na Gleba Corumbiara
Não apenas pequenos agricultores foram massacrados na Gleba Corumbiara, os povos indígenas isolados da região sofreram dez anos antes, em 1985 (no mesmo ano do martírio do Pe. Ezequiel Ramin na região de Cacoal) um ataque brutal dos latifundiários colonizadores. O Massacre dos Omerê, como ficou conhecido, foi denunciado pelo indigenista Marcelo Santos e relatado décadas depois pelo cineasta Vincent Carelli no filme “Corumbiara”, mostrando como Marcelo e sua equipe levaram anos para encontrar apenas sete sobreviventes.3
Massacres e mortes em Rondônia, antes e depois do massacre de Corumbiara
Como mostram os gráficos 1 e 2 das mortes registradas em Rondônia pela CPT, quatro épocas marcam com especial intensidade os assassinatos de camponeses no campo em Rondônia.
No final do século passado, em 1987, precederam Corumbiara três massacres. Em Jaru três posseiros foram assassinados na fazenda Belo Horizonte: João Ribeiro dos Anjos, Elizeu Bento Franco e Osmar Soares Sindra. O crime foi cometido por dois jagunços provavelmente a mando de madeireiros que invadiram a terra, pertencente, à época, ao Seringal Bom Futuro. O INCRA não sabia se a proprietária havia vendido a terra para algum dos madeireiros.4
No mesmo ano, no dia 03/06/1987, foram mortos seis posseiros em confronto: Valdir Viana, Antônio de Jesus, José Alves da Silva, Francisco F. da Silva, José Luiz de Oliveira F. e Dalvino Viana. O atrito ocorreu por causa de possível limite das posses de cada agrupamento, diante da morosidade no processo de desapropriação e assentamento das 400 famílias residentes nesta área de 10 mil hectares no município de Pimenta Bueno (RO). O INCRA alegava que não havia conflito na região e que faltava recursos para implantação do projeto. A terra estava sob conflito pelo menos desde 1980, quando um tiroteio em conflito pela terra deixara 8 mortos.5
Ainda, outras seis pessoas foram mortas em conflito na área indígena Roosevelt por tentarem tomar a posse da terra, em disputa entre os índios Cinta Larga e fazendeiros denunciados desde 1975 por lotear as terras para práticas de desmatamento e para a entrada de posseiros. Os posseiros mortos foram José Carneiro, Claudinei Elias de Morais, Josias Ribeiro Gomes, Valdemir Pereira, Davi de Jesus Gomes e Diomar Ferreira Maia. No decorrer dos anos diversos indígenas foram mortos em armadilhas. Após este massacre, a Justiça Federal estabeleceu liminar que anulava as permissões para exploração da reserva indígena por madeireiras que, mesmo assim, chegaram a construir pontes sobre o rio Aripuana para passagem de madeira.6
Gráfico 1: Dados do CEDOC/CPT e gráfico do autor.
Para o professor Ariovaldo Ubelino de Oliveira, nos anos noventa que começou a emergir “uma nova componente política na luta pela terra, que é a denúncia da grilagem pelos latifundiários. Em Corumbiara foi assim: as terras do fazendeiro que se dizia proprietário já deveria ter sido retomada pelo Estado porque ele não cumpriu o que a Lei, que permitiu o acesso àquela terra, instituía.”. Dentro do MST, as lideranças de Santa Elina defendiam uma radicalização da luta, dos partidários do antigo lema das Ligas dos anos sessenta, retomado pelo MST em 1988: “Reforma Agrária: na lei ou na marra”.7
Também em Santa Elina parte uma política cada vez mais agressiva de intervenção das forças do Estado contra os sem-terra, que têm que enfrentar não mais apenas os jagunços do latifúndio, mas diretamente o próprio Estado ao lado deles. Como ficou comprovado pela diversidade dos pistoleiros, fazendeiros, policiais e até policiais de férias que participaram do massacre de Corumbiara, como cita o importante relatório de 2004 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.8
Do antigo grupo do MST mais radicalizado de Santa Elina surgiu o Movimento Camponês de Corumbiara, em fevereiro de 1996, e mais tarde destes, a Liga dos Camponeses Pobres LCPT-RO, em 1999, que sem esperar mais pelo Incra, nem pelo governo, partem para divisão autônoma em lotes das áreas ocupadas.
O acirramento da violência no início do século XXI
Compunham estes grupos na luta pela terra formam boa parte dos camponeses assassinados depois do ano 2000. Após picos de aumento de assassinatos em Rondônia nos anos 2002 e 2003, cada vez mais, são lideranças próximas ao LCP as vítimas.
Assim, no dia 20/11/2008, em Porto Velho (RO), em novo massacre, pistoleiros mataram três trabalhadores rurais sem-terra: Evandro Dutra Pinto, Edmilson Gomes de Oliveira e Adauto da Silva Filho. O conflito ocorreu na Fazenda Mutum, ocupada pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP) dois meses antes, quando também um ataque de policiais militares afligiu as mais de 30 famílias presentes com ameaças, tortura e prisões ilegais, criminalizando e insultando os camponeses.9
Em 27 de maio de 2011 é assassinado um dos principais sobreviventes de Corumbiara, Adelino Ramos, o Dinho (conhecido em Santa Elina como “Buritis”) em Vista Alegre do Abunã, Porto Velho. Adelino era a principal liderança que personalizou o Movimento Camponês de Corumbiara (MCC), que praticamente terminou de se extinguir com a morte dele.
Em 2012, no contexto do debate do Novo Código Florestal, registram-se 8 assassinatos em Rondônia. A atitude da LCP de apoiar os acampamentos “mais combativos” e a estratégia do autocorte, com terceirização da segurança e ocupação das fazendas, marcam a estratégia de ocupação de terras da primeira quinzena do século XXI, que provocam também o aumento da reação dos fazendeiros e da criminalização dos sem-terra, convertendo Rondônia no estado do Brasil com mais assassinatos registrados pela CPT em 2015.
Figura 1:Fonte Cedoc/CPT com gráfico do autor
O assassinato de camponeses de 2015, 2016 e 2017 ocorrem maioritariamente na região de Buritis e de Ariquemes, no Vale do Jamari, e pelo menos vinte deles são de componentes da LCP ou de pessoas próximas ao movimento, como Renato Nathan (2012), Enilson Ribeiro dos Santos, e o casal conhecido como Paulo e Edilene (2016).
Assentados em Santa Elina, em 2011
A chegada do PT ao governo federal em 2003 não significou o esperado assentamento de mais famílias pela reforma agrária, ao contrário, acampamentos à beira da estrada languidescem entre cestas básicas e ajudas compensatórias. Do MCC foram alguns dos maiores assentamentos os criados no governo do PT em Rondônia, como o Flor do Amazonas, em Candeias do Jamari, e o Joana d Arc, em Porto Velho.
A área de Santa Elina tinha sido reocupada novamente em maio de 2008, logo depois de anúncio do INCRA de ter realizado acordo para compra da fazenda. A ocupação realizada pela Associação CODEVISE (Comitê em Defesa das Vítimas da Santa Elina), apoiada pela Liga dos Camponeses Pobres, dificultou o processo de vistoria do INCRA e desatou um tenso conflito com outros grupos de sem-terra dos acampamentos Rio das Pedras, Zigolândia e Cambará, apoiados por sindicato da Federação dos Trabalhadores de Rondônia, Fetagro. Todos eles representando remanescentes da Massacre de Corumbiara de 1995.
Assim, finalmente em 2011, dezesseis anos após o massacre, foi cumprido ao final do mandato a promessa de Lula de entregar Santa Elina para reforma agrária, com assentamento de umas 400 famílias. A área, que primeiro foi entregue pelo estado aos latifundiários na época de FHC, posteriormente foi comprada com uma desapropriação milionária. Segundo a AGU (Advogacia Geral da União): "O imóvel foi declarado de interesse social para fins de reforma agrária em 2010 por decreto do presidente Lula. Em julho deste ano (2011), o Incra realizou o pagamento das terras, desapropriando 14.550 hectares, avaliados em aproximadamente 53 milhões de reais". O INCRA sempre declarou que as famílias remanescentes do massacre teriam prioridade no assentamento, nos projetos de Assentamento Água Viva e Maranatá, duas das três fazendas em que foi desmembrada a fazenda Santa Elina.10
Juízo, anistia e sem indenizações para os atingidos
O julgamento dos fatos do Massacre de Corumbiara aconteceu em Porto Velho entre 14 de agosto e 6 de setembro de 2000, em oito grupos de audiências, e foram julgados 12 policiais e dois trabalhadores rurais, resultando condenados os dois últimos e 4 dos policiais.
Os recursos dos sem-terras a instâncias superiores do Judiciário não tiveram êxito, mas a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), no Relatório 32/04,11 condenou o Brasil pelo episódio e recomendou que medidas de reparação fossem tomadas.12 Um dos trabalhadores condenados, o Pantera, esteve fugitivo por anos, até que o CCJ aprovou em 24 de abril de 2013 una anistia a sem-terras, que acabou se estendendo também aos policiais condenados pelo Massacre.
Foi em base a este relatório da OEA que em janeiro de 2020, depois de 25 anos, a justiça reconheceu a morte do jovem Darli Martins que estava na Fazenda Santa Elina durante o Massacre de Corumbiara, em 1995.13 Porém as reparações adequadas às vítimas ou seus familiares, recomendadas pela OEA em 2004, nunca foram cumpridas.
Os casos das vítimas e as sequelas do massacre foram relatados numa audiência pública na Assembleia Legislativa de Rondônia, em 29 de setembro de 2013, que reuniu representantes do Poder Público e órgãos de fiscalização, além dos trabalhadores sobreviventes do massacre, porém com ausência de representantes do Executivo estadual.14
Em dezembro de 2014 foram consideradas prescritas pelo juiz Danilo Augusto. “Ele declarou que não houve crime contra a humanidade, ou seja, que não houve morte, desaparecimento e tortura. Além disso, considerou que o caso foi prescrito. Mas, não vamos desistir, porque não podemos permitir que fique impune a violência que o Estado cometeu contra simples agricultores e os familiares deles”, disse na época Fábio Menezes – presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Rondônia (Fetagro).
O Deputado Lazinho da Fetagro declarou na ocasião “Ao Estado de Rondônia é atribuída toda a responsabilidade” (...) “Portanto, a indenização pleiteada é legítima, quando se comprova que houve uma conduta excessiva dos policiais que tinham condições de executar a ordem judicial de forma pacífica, sem que o resultado fosse o massacre. Os agricultores não tiveram nenhuma reação; eles estavam totalmente indefesos. A ação foi iniciada durante a madruga e se estendeu durante todo o dia. Esses danos precisam ser reparados. É mais do que justo, mesmo sendo 19 anos depois. Na ocasião havia muitas crianças que hoje já são jovens; pessoas que morreram durante a investida; pessoas que morreram ao longo desses anos vítimas de graves sequelas. Há pessoas que a gente não consegue nem conversar sobre o assunto – são vítimas que ainda estão psicologicamente abaladas. A indenização pleiteada no processo além de ser uma necessidade e uma obrigação do Estado é para subsidiar tratamentos de saúde para essas pessoas”. 15
Apenas 07 menores de idade que na época tinham entre 03 e 14 anos, conseguiram num primeiro julgamento, realizado no ano de 2016, indenização por danos morais no valor de R$ 10 mil para cada um deles, com decisão favorável em Brasília em Julho de 2020. Segundo o advogado Neumayer de Souza, a decisão de prescrição dos adultos foi apelada e há mais de quatro anos se encontra em grau de recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ), aguardando julgamento.16
Os conflitos Agrários na Gleba Corumbiara e no Cone Sul de Rondônia continuam
A Gleba Corumbiara envolve 18 municípios, em terras públicas acobertadas pelas CATPs um milhão e 55 mil hectares, somente em Vilhena 155.000 hectares: Chupinguaia, 263.000 hectares; 186.000 hectares em Pimenta Bueno, e em Parecis, 174.000 hectares. Terras públicas com ocupantes e também com grandes grileiros pretendendo regularização fundiária.17
São numerosas as disputas entre pequenos agricultores e posseiros com grandes grileiros e/ou supostos titulares das CATPs, muitas delas canceladas administrativamente pelo Terra Legal, em função do não cumprimento de cláusulas resolutivas. Esta situação continua acirrando conflitos na imensa Gleba Corumbiara onde, segundo dados preliminares do “Atlas de Conflitos Sócioterritoriais da Panamazônia”, a CPT registrou 46 conflitos ativos entre 2017 e 2018 nos municípios de Cerejeiras, Cabixi, Chupinguaia, Corumbiara, Espigão d'Oeste, Pimenta Bueno, Pimenteiras do Oeste e Vilhena.
Alguns em situação de mais risco neste momento, como as 70 famílias da Associação de Pequenos Produtores Rurais da Linha Oitenta e Cinco, nos Lotes 62, 63 e 64 da Gleba Corumbiara, setor 7, na Linha 85, no Distrito de São Lourenço, em Vilhena, também conhecidos como Fazenda Vilhena. Local que registrou diversas mortes e massacres em 2015 e em 201718 e que onde atualmente há denúncias de atuação de milícias armadas e uma polêmica ameaça de despejo, recorrida pela Defensoria Pública de Vilhena.
*agente da CPT/RO e membro da Equipe de Articulação das CPTs da Amazônia.
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1 https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massacres-no-campo/112-rondonia/3952-corumbiara-1995
2 https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/2661-corumbiara-caso-enterrado
3 http://www.funai.gov.br/index.php/ascom/475-filmes-sugeridos/1224-corumbiara
4 https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massacres-no-campo/112-rondonia/3951-jaru-1987
5 https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massacres-no-campo/112-rondonia/3950-pimenta-bueno-1987
6 https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massacres-no-campo/112-rondonia/3949-vilhena-espigao-1987
7 A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos sociais, conflitos e Reforma Agrária
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino, A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos sociais, conflitos e Reforma Agrária, dez 2011. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142001000300015&lng=pt&tlng=pt
8 https://cidh.oas.org/pdf%20files/Brasil%2011.556%20Corumbiara%20PUBL%20Port.pdf
9 https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massacres-no-campo/112-rondonia/3953-porto-velho-2008
10 https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/918-apos-dezesseis-anos-familias-serao-assentadas-em-corumbiara
11 https://cidh.oas.org/pdf%20files/Brasil%2011.556%20Corumbiara%20PUBL%20Port.pdf
12 https://www.camara.leg.br/noticias/402093-ccj-aprova-anistia-a-sem-terras-e-policiais-do-massacre-de-corumbiara/
13 https://www.vilhenanoticias.com.br/destaques/depois-de-25-anos-justica-reconhece-morte-de-rapaz-que-sumiu-no-massacre-de-corumbiara/
14 https://amazonia.org.br/2013/09/mpfro-apoia-v%C3%ADtimas-do-massacre-de-corumbiara/
15 https://www.diariodaamazonia.com.br/massacre-de-corumbiara-e-prescrito/
16 https://www.diariodaamazonia.com.br/massacre-de-corumbiara-vitimas-menores-da-epoca-serao-indenizadas
17 Dados citados pelo Professor Afonso da Chagas, da UNIR Porto Velho, em seminário sobre regularização fundiária de 31/07/2020.
18 https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massacres-no-campo/112-rondonia