COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

“No ano de 2019, 1.054 trabalhadores e trabalhadoras foram encontrados em situação de escravidão, um número que se mantém na média dos últimos 5 anos, porém abaixo da metade do número registrado entre 2010 e 2014”, analisa, em Nota Pública a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEPEETH), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em virtude do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, lembrado na próxima terça-feira, 28.

¿Estos, no son hombres?¿Esto no entendéis, esto no sentís? 

Frei Antônio Montesino, o.p, dez. 1511, La Española (Santo Domingo) 

Neste momento da vida nacional em que presenciamos ataques e reduções de direitos associados ao desmonte da fiscalização, fica ainda mais fundamental fazer memória, no dia 28 de janeiro, de um evento em que se tentou intimidar a ação da fiscalização do trabalho: o assassinato de 4 servidores públicos, 3 auditores fiscais do trabalho e seu motorista, 16 anos atrás, quando fiscalizavam fazendas da zona rural de Unaí (MG). Tornou-se um apelo para toda a sociedade voltar seus olhos para a trágica realidade do trabalho escravo: um escândalo denunciado desde os primórdios da colonização das Américas e que teima em vigorar em pleno século 21, no Brasil e no mundo. 

Entre 1995 e 2019, fiscais do trabalho encontraram 54.491 pessoas em situação de trabalho escravo no Brasil, segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Governo Federal (SIT). 52.169 delas chegaram a ser resgatadas, entre elas 756 trabalhadores imigrantes de outros países, 177 com menos de 16 anos e 323 jovens de 16 a 18 anos. Em maioria, afrodescendentes. 

Em 2019, 1.054 trabalhadores foram encontrados nessa situação, um número que se mantém na média dos últimos 5 anos, porém abaixo da metade do número registrado entre 2010 e 2014.

Manifestação mais conhecida do tráfico humano, o trabalho escravo nega a dignidade àqueles largados em situação de pobreza por um sistema econômico movido a lucro, implacável, injusto. Para enfrentar a crise ou vencer concorrentes, custe o que custar, empregadores buscam aumentar seus lucros ampliando a exploração da força de trabalho. Unem-se para aprovar políticas públicas que exacerbam o liberalismo econômico e aprofundam as desigualdades, ao reduzir direitos e ao desmontar os mecanismos de controle social e de fiscalização pública, a exemplo do caminho seguido pelo governo Bolsonaro. 

A eliminação do Ministério do Trabalho e a sua incorporação ao Ministério da Economia escancaram a política que se rege por outros interesses que não os de melhorar as condições de trabalho e a vida de trabalhadores e trabalhadoras. Diluído nesta megaestrutura, o antigo MTE virou mera Secretaria Especial, sem peso nem orçamento adequado. Assim se cumpre o sonho de muitas empresas de neutralizar qualquer mecanismo de fiscalização que venha inibir seus mais absurdos propósitos de exploração. 

Parte da atual administração, o setor ruralista sempre atacou a fiscalização do trabalho e seus avançados instrumentos que fizeram do Brasil uma referência na comunidade internacional: um conceito moderno de trabalho escravo, um sistema ágil de fiscalização independente de pressões políticas, um cadastro nacional que dá visibilidade ao problema (lista suja), uma política nacional de erradicação do trabalho escravo com agentes, parceiros e mecanismos de monitoramento. No poder, buscam sufocar esses instrumentos, a começar pela fiscalização do trabalho escravo, minguando recursos humanos e orçamentos. 

Muito está sendo feito para retirar independência, autonomia e protagonismo dos auditores fiscais do Trabalho, por meio de portarias, medidas provisórias ou projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. A propalada Reforma Trabalhista, ao contrário de sua propaganda, retirou direitos da classe trabalhadora, jogando cada vez mais pessoas em um mercado que se beneficia da flexibilização da lei. Trabalhadores convertem-se em “autônomos”, “pejotizados”, “uberizados”, terceirizados à força, precarizados e enfraquecidos na sua capacidade de organização e mobilização. 

Essa situação tende a fazer com que cresça a exploração e, por conseguinte, os casos de trabalho escravo, exacerbando ao mesmo tempo sua invisibilidade. Nesses casos, a habitual ausência de registro em carteira de trabalho é acompanhada da imposição de condições degradantes, insalubres, que colocam em risco a saúde e a vida da pessoa: alimentação precária, ausência de água potável, negação de alojamento decente, falta de equipamentos de proteção, etc. Ameaças, isolamento geográfico, endividamento e violência física ainda são utilizados para manter o trabalhador amarrado, frustrado do seu direito de ir e vir. Violência e exploração sexual também chegam a ser parte deste trágico cenário. 

A permanência da escravidão contemporânea decorre diretamente da violência e da discriminação estrutural e histórica a que são submetidos grupos importantes da sociedade brasileira, como bem expressou a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, ao condenar o Estado Brasileiro no caso da Fazenda Brasil Verde, 3 anos atrás, proibindo inclusive ao Brasil qualquer retrocesso. 

Hoje, no Brasil, segundo a PNAD¹, cerca de 14 milhões de pessoas enfrentam o desemprego total e quase 5 milhões já caíram no desalento, palavra inventada para maquiar a desesperança que habita quem já desistiu de procurar, em vão, algum emprego. Um público particularmente exposto à pior exploração é o dos migrantes, especialmente dos imigrantes, em fuga das graves crises econômicas, bélicas ou ambientais em seus países. Chegam a um Brasil tido como acolhedor, porém com estruturas hostis e pouco abertas aos princípios da solidariedade, incluindo ondas de discriminação e xenofobia. 

O trabalho escravo viola a grandeza da pessoa humana e destrói a imagem que Deus imprimiu em seus filhos e filhas. Ele recusa a liberdade, em seu sentido amplo, àqueles vulneráveis entre os vulneráveis, que Cristo justamente veio para libertar (Gl 5,1). Ele se constitui em uma das piores ofensas aos direitos e à dignidade da pessoa humana. Quando a resposta do governo se resume em impunidade e desmonte de políticas garantidoras de direitos, é nosso próprio Estado democrático de direito que é ferido mortalmente. 

No dia 28 de janeiro e na semana nacional do combate ao trabalho escravo, importa destacar o compromisso de todas as pessoas que, no serviço público e na sociedade civil, continuam se esmerando na prevenção e na repressão ao trabalho escravo, e na busca por vida digna aos que sobreviveram à exploração. 

A Comissão Pastoral da Terra e a Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano, da CNBB, denunciam esse modelo que concentra riqueza às custas do suor de trabalhadores e trabalhadoras. Nos colocamos ao lado daqueles que têm sido protagonistas na luta contra a escravidão, na promoção de transformações sociais estruturais, visando à construção de uma economia e de uma sociedade que promovam a igualdade e a justiça, inclusive ambiental. 

O pior cego é aquele que não quer enxergar. Sigamos inspirados pela coragem profética que moveu Dom Pedro Casaldáliga (que completará 92 anos no próximo dia 16 de fevereiro, naquele mesmo espírito de “romper todas as cercas”), quando, em 1971, denunciou ao mundo as práticas de escravidão em vigor no Brasil. 

Igual ao samaritano do evangelho, deixemo-nos abrir o olho, sentir em nossa carne a dor alheia, e tomar atitude, para ninguém virar escravo neste chão, como nos convida a próxima Campanha da Fraternidade. 

Não nos calemos diante das injustiças, prossigamos, aqui e agora, como sonhadores e construtores de utopia, deste outro mundo possível, conforme ao sonho do Deus dos pobres, o Deus de Jesus-Cristo! 

Brasília, 24 de janeiro de 2020 

Comissão Pastoral da Terra & Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano

______

¹ Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua.

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