A Comunidade de Anapu organiza-se para realizar a 14ª Romaria da Floresta. Os passos das peregrinas e dos peregrinos ligam o município ao emblemático Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança, onde a agente pastoral Dorothy Stang foi morta com seis tiros. Entenda o porquê de o PDS ser um exemplo de resistência das famílias assentadas e da luta pela proteção da Amazônia.
Por Mário Manzi*
Imagens: Juliana Pesqueira e Thomas Bauer
Conheci Dorothy Stang pela tela da TV. Em 2005 a imagem de uma senhora de cabelos brancos caída sobre a terra me apresentava pela primeira vez a figura da agente pastoral, bem como o cenário do Projeto de Desenvolvimento Social (PDS) Esperança. Anapu, no Pará, é o município que abrange a área do PDS, porém, eu viria a conhecer (ou notar) depois, quando, já como jornalista na Pastoral da Terra, eu era recebido com a notícia da prisão de Padre Amaro.
Nestes 14 anos, que tiveram como marcos temporais a execução de Dorothy e a prisão do Padre José Amaro Lopes de Sousa, os PDS Esperança e Virola Jatobá não foram apenas listados como o Projeto de Dorothy. Nestes 14 anos os PDS Esperança e Virola Jatobá foram projetos de vida de muitos. Cerca de 400 famílias constituíram, nas glebas Bacajá e Belo Monte, que abrangem os dois PDS, formas de viver alternativas ao sistema de exploração do agronegócio. E é esta a grande ameaça para os grileiros, madeireiros e latifundiários da região: viver a floresta em um projeto sustentável.
O município de Anapu, segundo os dados do Centro de Documentação da CPT Dom Tomás Balduino, registrou, no ano de 2018, o maior número de assassinatos no país, em decorrência de conflitos pela terra. Ao todo três pessoas foram mortas. Desde o ano 2000, o total de mortes chega a 20, além de 16 tentativas de homicídio e 34 pessoas ameaçadas de morte.
A situação fundiária do município contém um histórico convulsionado desde sua criação, que se entrelaça com a construção da Rodovia Transamazônica, a BR-230. O processo de colonização, por meio do Programa de Integração Nacional, promovido pelo governo federal, a onda migratória paralela à promoção estatal e seguidamente o subsídio da Superintendência de Desenvolvimento Amazônico (SUDAM) foram fatores, que somados, colocaram em disputa dois atores: grandes proprietários em busca de expandir a fronteira agrícola e pequenos produtores, camponeses, com a intenção de usar a terra como modo de subsistência.
“Homens sem terra, para terra sem homens”
O Programa de Integração Nacional (PIN) dedicava uma faixa de 10 quilômetros a cada lado da BR-230, a assentar famílias em lotes de 100 hectares cada.
Destinados à implementação de projetos agropecuários, lotes de 500 a 3 mil hectares foram concedidos, por meio de Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATP). As parcelas deveriam tornar-se produtivas em cinco anos, no entanto, após vistoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), nos anos de 1980 e 1981, foi constatado que muitos deles estavam abandonados, e a grande maioria, mesmo produtiva, não cumpria as regras estabelecidas no processo de concessão das CATP.
Sobre o processo descrito acima, Andreia Barreto, defensora pública sediada no município de Altamira (PA), sustenta: “histórico fundiário não se resolve”. “Fraude envolvendo as CATP’s, grande quantidade de terra na mão de poucos”. A curta, porém precisa exposição é o que leva os movimentos sociais de Anapu, junto à irmã Dorothy e aos agentes pastorais da CPT, a lutarem por projetos de assentamento na região.
Entre as propostas, há também a discussão junto ao Incra sobre um modelo apropriado ao bioma local, a Floresta Amazônica. Esta proposta, concebida pelo nome de Projeto de Desenvolvimento Sustentável ou PDS, no ano de 1994, propunha uma inversão das áreas dedicadas para cultivo e para reserva legal nas áreas de assentamento. Em vez de 20% de reserva, a floresta deveria ocupar 80% da área dos lotes destinados às famílias assentadas, sendo esta área de uso comunal. Os 20% que seriam destinados à reserva, teriam o uso dedicado à roça.
No ano 2002, lotes nas Glebas Bacajá e Belo Monte, no município de Anapu, foram destinados, pelo Incra, à criação de dois PDS, hoje conhecidos como PDS Esperança e PDS Virola-Jatobá. No ano seguinte o instituto iniciava o cadastramento das famílias sem-terra que já ocupavam áreas das glebas e notificava aqueles que não se enquadravam nas normas do PDS.
Entrada
A primeira vez que pisei o solo de Anapu foi na rodoviária da cidade. Após percorrer o trecho da BR-230 desde a cidade de Altamira, saí da van com a mala na mão. Uma névoa de poeira fina cobria a rodovia já asfaltada naquele ponto. Ainda processava todo o trajeto. Eu havia viajado pela Transamazônica, um trecho que ouvia e via apenas pela TV, nas notícias sobre os conflitos e sobre os atolamentos típicos do inverno Amazônico. No trecho, passei pela hidrelétrica de Belo Monte. Que, já em funcionamento, compunha a paisagem do Rio Xingu.
Belo Monte, Xingu, Transamazônica, Dorothy Stang, eram nomes e termos que viviam até aquele momento no meu imaginário de espectador. A floresta Amazônica sobre a qual sempre ouvia, eu ainda não havia conhecido de perto, pé no chão e vistas próximas. O que ocorreria apenas na minha terceira ida à região.
“a terra tem que ser para sempre, por isso a gente tem que tratar a terra com carinho”
Morta com seis tiros no lote 55 do PDS Esperança, no dia 12 de fevereiro de 2005, a agente pastoral da CPT, Dorothy Stang, era, até então, uma ameaça aos grileiros, grandes fazendeiros e madeireiros da região. A ameaça se abreviava na ação de defender os pequenos agricultores e por isso defender a floresta. O excerto que consta neste intertítulo é de Dorothy. Preservar a floresta é, consequentemente, preservar a vida daqueles que tratam da terra com carinho.
O projeto de vida, de cuidar da terra para que ela sempre dê frutos, era a grande ameaça que Dorothy e os camponeses assentados do PDS carregavam e carregam. E foi por isso que seis tiros tiraram a vida de Dorothy no dia 12. Assim como ela, o PDS resiste, na memória e no modo de vida das 400 famílias que se dividem no Esperança e no Virola Jatobá.
Onde Dorothy morreu há uma lápide, cheia de plantas, flores – cuidada por aqueles que tiram da floresta o sustento, a sobrevivência. Em uma árvore próxima, uma placa dedica a ela homenagem. Está, contudo, crivada de balas. A memória de Dorothy assombra os inimigos do povo.
No Esperança o cheiro das amêndoas de cacau fermentadas são o receptivo aos chegantes. A planta é cultivada em meio à floresta. O manejo da Amazônia naquele recorte também dedica-se à lavoura de urucum, pimenta e açaí. Na roça, que cabe nos 20% dos lotes, são cultivadas mandioca, lavoura branca (aquela que precisa ser plantada todos os anos, como arroz e milho), e árvores frutíferas.
Conforme descreve um dos moradores do PDS Esperança, a floresta é “Para quem não tem ganância”. Para quem tem, o cenário é o monótono cultivo de soja ou pasto para gado.
Já no Virola Jatobá, além da lavoura branca, também são cultivados alimentos como mandioca, caju, maracujá, abacaxi, pimenta e café.
Assentados
Os assentamentos não se resumem aos PDS. Na região, a equipe da CPT em Anapu contabiliza 2.281 famílias assentadas. Destas, 400 se inscrevem na área do PDS. Nesse exitoso exemplo de reforma agrária, por que seriam os PDS o grande alvo dos grileiros, madeireiros e fazendeiros da região?
A resposta está na Floresta. Conservar 80% das áreas de cada lote é promover o manejo sustentável, o que significa não desmatar – extrair da floresta insumos de sobrevivência sem deitá-la por completo, como fazem os inimigos do povo, é manter nos lotes uma reserva de riquezas para que a subsistência seja fundamental à permanência dos pequenos camponeses e seus descendentes, uma vez que eles não se alimentam do monocultivo, mas da diversidade.
A riqueza desses lotes, medidas pela quantidade de madeira que pode ser extraída e convertida em dinheiro e em seguida transformada em pasto inóspito à subsistência humana, são o cofre que os fazendeiros, grileiros e madeireiros querem saquear. Essas famílias sem suas terras também se transformam em bolsões de mão de obra que podem ser explorados por esses atores, na busca por subsistência. A floresta é uma ameaça aos inimigos do povo.
Vida à venda
As ameaças ao PDS são personificadas no processo de fuga de famílias. “Vender às pressas por conta das ameaças de morte”. É o que descreve outro morador do Esperança. A fuga não é vista com maus olhos, uma vez que são inevitáveis perante a lei da força. O estado está distante dali. O Incra e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não mais realizam vistorias frequentes nos dois projetos, o que favorece a ação dos grileiros e madeireiros.
Famílias são pressionadas a venderem a floresta. Árvores inteiras são entregues aos madeireiros no preço fixado por eles próprios, variando de 50 a 60 reais por árvore. O capim, que invade as roças, é lançado por aviões, em uma batalha para matar de fome os pequenos camponeses. O fogo também é outra arma usada contra as famílias dos PDS’s. “A culpa é do Incra que se afastou daqui”.
Os madeireiros avançam sobre a floresta. Eles desmatam e extraem ilegalmente a madeira. E quando é realizado o manejo, com extração de apenas algumas árvores da reserva, a madeira retirada pode, também, ser alvo do ataque dos madeireiros, como ocorreu em setembro de 2018, quando árvores foram retiradas por meio do manejo, pela comunidade dos PDS, mas foram, em seguida, incendiadas pelos madeiros.
A resistência nos PDS ocorre no enfrentamento aos sujeitos que têm respaldo financeiro e político, entretanto muitas das famílias do Esperança e do Virola, são forçadas, após 10, 12 anos de vida junto à terra e à floresta, a deixarem seus lotes, sob a mira de armas ou ante as ameaças que não cessam. Famílias vulnerabilizadas desde a chegada à região, quando, motivadas pelo sonho de conquistar a terra chegaram às margens da Transamazônica, sem estrutura de trabalhar o solo e com precárias condições de sobrevivência. Essas famílias resistem historicamente e têm hoje, no enfrentamento a esses sujeitos, a esperança de continuarem no território que conquistaram/constituíram e do qual cuidam.
Para que o PDS siga como alternativa sustentável é preciso que Incra e Ibama cumpram seus respectivos papéis no Virola e no Esperança, que impeçam a entrada dos madeireiros, e a exploração irrefreada da madeira contida na Floresta, bem como que mitiguem a venda dos lotes para os fazendeiros e madeireiros da Região.
No Esperança, por exemplo, a tardança do Incra levou os moradores a acamparem por nove meses nas entradas do PDS com a finalidade de coibir a retirada ilegal das árvores e cobrar do órgão a construção de guarita de segurança, tendo, apenas após todo esse tempo, logrado êxito. A ação, no entanto, não pôde ser aplicada no Virola, dado que a área possui uma série de acessos vicinais, fato que estimula a ação desses invasores ou mesmo daqueles posseiros que não estão comprometidos com a proposta de exploração característica do PDS.
“Aqui é um assentamento diferenciado”
A sustentabilidade que permeia o Esperança e o Virola Jatobá está posta como ameaça. Mas é o elemento humano que dá vida a esses dois espaços, que são mais que isso, são territórios. A terra vivida pelas pessoas assentadas faz do PDS um exemplo alternativo de sobrevivência.
Romaria
Desde o ano de 2006 a comunidade de Anapu realiza a Romaria da Floresta, que entre os dias 18 a 21 de julho de 2019 terá sua 14a edição. Ao todo são percorridos 55 quilômetros. Os passos das peregrinas e dos peregrinos ligam o município de Anapu ao emblemático PDS Esperança, onde Dorothy foi morta com seis tiros.
Em 2018, porém, a comunidade, com medo da constante violência, decidiu realizar a Romaria na área urbana do município, mas agora retornam, insurgentes, a caminho do PDS, deste projeto de vida para essas centenas de famílias.
“E para que eles não fiquem diante da morte com o sentimento de que tudo tem que acabar, que não tem mais que continuar, que tem que abandonar a luta, que tem que desistir dos seus sonhos dos seus projetos, e que não vale a pena lutar por direitos, então a mística [da Romaria] é justamente este mistério, um mistério que faz você despertar mesmo com a dor, mesmo com o sentimento de que não terá mais aquele companheiro presente fisicamente.”
A fala de Roselene Silva, assessora do Ministério Público Federal (MPF) em Belém, e que acompanha junto ao procurador Felício Pontes a situação da violência decorrente da disputa fundiária em Anapu, traduz o sopro vital da resistência das camponesas e dos camponeses do PDS, que têm na Romaria da Floresta uma ocasião própria para lembrar as e os mártires da terra e despertar, a partir da luta das e dos que já se foram, e manter de pé a persistência em resistir.
Por isso a Romaria constitui-se como um momento emblemático de percorrer a pé os mais de 50 quilômetros, em três dias, de um solo coberto de sangue, mas coberto sobretudo de vidas que se dedicam a cultivar a terra respeitando a Floresta. A ver a Floresta, não como ameaça, todavia como uma reserva de riquezas para as próximas vidas humanas, as próximas gerações que precisarem se alimentar de Amazônia.
*Jornalista da Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Contribuíram: Juliana Pesqueira e Thomas Bauer.