REPORTAGEM ESPECIAL | Do babaçu veio a identidade e o poder de emancipação e organização social dessas mulheres. Conheça a história de luta das quebradeiras de coco babaçu do Maranhão, a força delas no enfrentamento ao latifúndio, ao machismo, às dificuldades impostas pelas condições de vida a que são expostas e a esperança que ainda caminha com elas nessa jornada.
AVE MARIA DAS QUEBRADEIRAS
“Ave Palmeira, que sofre desgraça,
Malditos derrubam, queimam e devastam.
Bendito é teu fruto que serve de alimento
E no leito da morte ainda nos dá sustento.
Santa mãe palmeira,
Mãe de leite verdadeiro.
Em sua hora derradeira,
Rogai por nós quebradeiras”.
REPORTAGEM: Cristiane Passos* / FOTOS E VÍDEO: Thomas Bauer**
Da palmeira do babaçu tudo se aproveita, frutos, folhas, estipe, raízes e flores. Essa árvore, que pode atingir 30 metros de altura, pode ser encontrada no Brasil, mas também em outros países da América do Sul, como Suriname, Guiana e Bolívia. Em nosso país chega a ocupar uma área de aproximadamente 25 milhões de hectares e se espalha, principalmente, pelos estados do Maranhão, Piauí, Pará e Mato Grosso. Além de ser encontrada, também, em menor quantidade, em Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Pernambuco, Rondônia, Tocantins e Goiás. Seu nome vem do tupi-guarani, ibá-guaçu, e significa “fruto grande”, mas para as quebradeiras de coco babaçu, a palmeira é conhecida como mãe. A palmeira faz parte da vida delas, das suas famílias e geriu sua identidade. Em depoimento durante uma reunião, as quebradeiras de coco confidenciaram que “quem passa a vida inteira no cocal conversa com a palmeira e ela responde. Do jeito que a gente está, ela está. Do jeito que a gente sofre, ela sofre também”[1].
De uma árvore completa vem a fonte de renda e complemento na alimentação de diversas comunidades. O babaçu contribui na construção das casas, dele é possível extrair óleo, leite e do mesocarpo, camada intermediária do coco, se faz uma farinha bastante nutritiva. Da mesma forma, ele é fonte de renda por ser matéria prima para a produção de sabão, e seus produtos, como o óleo e a castanha, são comuns na culinária local e mesmo na produção de cosméticos. A árvore oferecida facilmente pelo cerrado, principalmente nas áreas alagadas, tornou-se meio de vida e sobrevivência. Para as mulheres, principalmente, tornou-se identidade e profissão.
O ofício, aprendido de geração a geração, sustenta há séculos famílias esquecidas num Brasil interiorano, de riquezas naturais, abundância de recursos e, também, de especulação territorial e conflitos rurais. A essas mulheres, munidas de seus cofos (cestos feitos de palha de babaçu para carregar os cocos) e machados, coube enfrentar jagunços, cercas, o machismo, e mesmo a pobreza e a negação do Estado em reconhecer seus direitos, ancestralmente adquiridos. Ao assumirem o ofício do babaçu, passaram a se denominar como quebradeiras de coco babaçu. Passaram, então, a se reconhecer e a se organizar enquanto tal. No início não foi fácil, foram muito discriminadas. Algumas tinham vergonha de dizer o que faziam, outras os filhos e filhas também não diziam o que as mães e avós faziam. Mas com o tempo, passaram não só a ter orgulho de sua atividade, mas a defender a importância do que fazem para a economia local e para a sobrevivência das comunidades.
Com o passar do tempo, essas mulheres passaram a reforçar sua identidade coletiva, enquanto se reuniam para quebrar o coco, muitas vezes nos quintais das casas de algumas delas. O momento era compartilhado também pelas angústias que cada uma trazia, as violências do cotidiano do lar, as dificuldades no sustento da família e os desejos de uma vida menos dura pela frente. Nos anos 1980 explodiram os conflitos de terras, disputas que ameaçavam os territórios tradicionais, ocupados por anos e anos pelos mesmo grupos, mas que não possuíam documentação reconhecida judicialmente. Grileiros e fazendeiros, de forma violenta, ameaçavam e expulsavam essas comunidades, cercavam a mata, afastavam as famílias do babaçual, renegavam a elas pequenos pedaços de terra, onde não era possível fazer roça e nem acessar o babaçu. Nesse mesmo período, as quebradeiras ingressaram no movimento sindical e puderam ter contato com mulheres que exerciam o mesmo ofício em outros estados, e muitas delas enfrentavam os mesmos conflitos. Perceberam, então, que não estavam sozinhas. Outras compartilhavam dos mesmos afazeres e, também, dos mesmos problemas. Para, então, a partir dessa união se fortalecerem, foi criado no início dos anos 1990, o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB).
O MIQCB surgiu a partir de um trabalho conjunto de uma rede de organizações, como associações, clubes, cooperativas, grupos de mulheres, entre outros, que lutavam e lutam pela preservação dos babaçuais, pela garantia dos direitos das quebradeiras de coco à terra e território, pelo acesso livre às palmeiras de babaçu, por políticas governamentais voltadas para o extrativismo e, também, pela equidade de gênero.
O estado do Maranhão, o que possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dentre os que se destacam pela presença da palmeira em sua vegetação e um dos menores do Brasil, 0,68, concentra boa parte das quebradeiras de coco babaçu. Extremamente empobrecido por anos seguidos de exploração e má administração pública, o estado amarga outros índices devastadores para sua população. O Maranhão ainda sofre com problemas de saneamento básico, desnutrição infantil e baixa renda per capita. Ele apresenta altos índices de desnutrição entre as crianças de zero a cinco anos, e o segundo maior índice de mortalidade infantil do país. Apenas metade da população do estado tem acesso à rede de esgoto e quase 40% da população não tem acesso a água tratada. Não é de se espantar que o estado possua a segunda pior expectativa de vida do Brasil[2]. Desassistida pelo Estado e vulnerabilizada, a população maranhense busca alternativas e formas de sobrevivência em outros estados, e isso fez com que o estado seja o local de onde mais saem trabalhadores que acabam sendo escravizados na contemporaneidade.
O município de Dom Pedro, de apenas 65 anos, localizado no Centro Maranhense, não foge à regra. Com quase 23 mil habitantes, possui um IDH médio de 0,63, e fazia parte de Codó, um dos cinco municípios com maior número de residentes resgatados do trabalho escravo. A região enfrenta a mesma dificuldade que o resto do estado, assim como as quebradeiras mantêm a mesma luta e resistência que as demais espalhadas em outras regiões do Maranhão. Mesmo com as dificuldades e a dura escrita da história, o Estado também é marcado por revoltas populares e processos de resistência. A comunidade do Centro dos Pretinhos ilustra bem isso.
O coco babaçu é o futuro!
Os primeiros latifundiários a ameaçar a comunidade Centro dos Pretinhos foram os “Tonicos”, depois veio o Curió, atual vice-prefeito de Dom Pedro. A comunidade tem cerca de 200 anos. Vive hoje imprensada entre a cerca e a estrada. Francisca Sheila, de 23 anos, é a atual presidente da Associação de Quebradeiras de Coco da Comunidade. Ela é filha e neta de quebradeiras. Apesar de dizer que a mãe não desejava que ela seguisse essa atividade, foi ela mesma quem a ensinou como quebrar coco, “porque não sabemos do amanhã e da precisão que vamos ter, então ela me ensinou pois achou que eu tinha que saber”. E ela não apenas seguiu como hoje é uma liderança das mulheres locais.
Quando a Associação começou, mais ou menos em 2013, eram 15 quebradeiras associadas, hoje são apenas sete. Mas toda a comunidade quebra coco, mesmo que o faça em casa. A diminuição das associadas apenas mostra o receio de algumas mulheres em ter seu nome vinculado a iniciativas de organização popular, que acabam despertando o ódio dos latifundiários contrários ao livre acesso das quebradeiras aos babaçuais. “Algumas de vocês ainda vão acordar com a boca cheia de formigas”, elas ouviram algumas vezes. Não se deixaram esmorecer. Pelo contrário, se organizaram, passaram a andar em grupo e não deixaram de entrar nos babaçuais. As não associadas também as seguem. Não querem seus nomes como prova de resistência, mas seguem resistindo, pois assim fazem as mulheres dessa região. A elas pouca coisa assusta e menos coisas ainda as impedem de fazer o que querem. As histórias são contadas por elas e protagonizadas por elas e suas ancestrais. Vemos poucos homens na comunidade, e a eles, elas pouco se referem. Muito falaram apenas de um homem quebrador de coco, como elas, que quebra o dobro da quantidade de cocos que elas quebram, mas deixam claro que ele cata somente os melhores cocos para quebrar, deixando os piores para elas.
Não cansam de repetir que do babaçu tudo se aproveita, quebra-se o coco, tira-se a castanha para extrair o óleo ou fazer azeite, e também produzir sabão, da casca faz-se carvão. É um trabalho conjunto, como conjuntas são as dificuldades e os enfrentamentos do dia a dia.
A comunidade possui cerca de 50 famílias. Enclausurados entre cercas e estradas, não possuem espaço para fazerem roça. Após a retomada do que chamam de Centrão, iniciaram lá a roça, onde plantam arroz, feijão, milho, abóbora, fava, melancia, entre outras coisas. Criam também galinha e assim vão garantindo o sustento da comunidade, tendo o coco de babaçu como de fundamental importância na economia familiar. Ainda têm dificuldades a serem resolvidas, não conseguem produzir óleo de babaçu suficiente para a produção de sabão, pois possuem apenas duas forrageiras pequenas, aparelho necessário para moer a amêndoa torrada, transformando-a em pó. Para um equipamento industrial maior, capaz de garantir a produção do óleo, lhes pediram o valor de cem mil reais. O responsável pelo maquinário vê no coco babaçu o futuro. É através dele, pelo menos, que tem enriquecido às custas das comunidades que sobrevivem do extrativismo do coco na região. E além do maquinário, também produz o óleo, o qual as quebradeiras do Centro dos Pretinhos são obrigadas a comprar por não conseguirem produzir o seu próprio e tampouco pagar o valor que o visionário ferragista pediu por ele. O futuro que ele vê tão próximo no babaçu, talvez seja para o alcance fácil de poucos.
O “Centrão” de tudo
Uma das piores formas de se tentar matar um povo é lhe negar o direito à sua memória, e isso pode ser feito de diversas formas. “Nós nunca tivemos aqui um cemitério... nossos mortos foram sendo enterrados na cidade ou em pedaços por aqui, onde fosse possível... Nas terras que sabemos que foram nossas e não sabemos como explicar como perdemos, o Centrão, nós sabemos que tem algumas pessoas enterradas lá, mas não sabemos quem são e os lugares mesmo”, contou dona Maria Celsa. A comunidade não sabe ao certo quando e como perdeu essa área, de quem são os corpos que lá foram plantados e em que anos, assim como não sabem explicar as outras áreas próximas que lhes foram tiradas em anos seguintes, sem explicação. Aos antigos podem lhes faltar memória por um importante condicionamento, o medo. As ameaças constantes que essas comunidades sofreram e sofrem, seguidamente, vão minando forçadamente suas memórias. Da mesma forma, o impedimento de terem seu próprio cemitério, que poderia significar uma prova antropológica incontestável de presença e permanência em território tradicional, vem como mais um exemplo de usurpação de inúmeros de seus direitos, dentro deles o direito à preservação de sua memória ancestral.
O Centrão dista cerca de 10 quilômetros da comunidade, caminho que as mulheres percorrem a pé para catar coco babaçu. A área também foi espremida entre cercas e estrada, mas possui muito babaçu. Por conta da distância, elas costumam catar e quebrar o coco lá mesmo, passam o dia, cozinham, muitas vezes com as crianças junto, e retornam com as castanhas e o carvão. Um dos latifundiários próximo da área chegou a colocar novamente uma cerca, mesmo após a retomada do território, feita há um ano, para impedir o acesso ao Centrão. As próprias mulheres tiraram a cerca. Ele não voltou a coloca-la.
As mulheres chegam a quebrar uma média de seis a oito quilos de coco babaçu por dia, cada uma. Elas contam que antes da criação da Associação, quando ainda tinham receio de acessar os babaçuais dentro das cercas, chegaram a arrendar as terras para poderem catar os cocos de babaçu. Pagavam em média mil e quinhentos reais pelo arrendamento, o que era assumido por no máximo três mulheres por vez. E mesmo assim, o acesso aos pés de babaçu era limitado. Um modelo exploratório totalmente incompatível com a realidade dessas comunidades. Elas pagavam por medo um valor que muitas vezes mal conseguiam juntar, em um período que a amêndoa do coco babaçu no mercado era vendida a vinte centavos o quilo. Elas lembram com tristeza desse período.
“Era muita humilhação. A gente era muito humilhada. Tinha que pagar para pegar o coco e mesmo assim tratavam a gente como se a gente fosse roubar algo, e a gente só catava o coco, não fazia mais nada nas terras”, lembra dona Maria Celsa. Dos 50 anos de vida, 43 foram catando coco e faz questão de reforçar “sou quebradeira de coco e tenho muito orgulho de dizer isso!”.
Hoje não pagam o arrendamento e a amêndoa chegou a ser vendida a três reais o quilo. Agora está mais ou menos R$ 2,50, o preço varia de região para região. Mas não reclamam, dizem que a vida está boa. Um sonho de dona Maria Celsa é ver a lei do babaçual livre aprovada. “Ah, o meu sonho é esse, ver essa lei aprovada. Ver que a nossa luta deu resultado e que a lei vai estar valendo”.
Os fazendeiros estão desmatando a região e plantando capim para fazer pasto. As quebradeiras veem com preocupação esse novo cenário. “Derrubaram as árvores que tinham aqui, as frutas que tinham aqui, agora plantam esse capim e ele fica muito alto. Quando a gente vai entrar na mata ele atrapalha, esconde as cobras e o ‘pelinho’ dele quando pega nas pernas coça muito. Às vezes o ‘pelinho’ voa e entra dentro das nossas casas e é uma coceira só”. Além disso, como contou Francisca Sheila, a comunidade se sente aprisionada com tantas cercas em volta de seu território.
As ameaças são constantes. Quando não contra a vida, contra o território das quebradeiras. Os fazendeiros insistem em expandir a cerca, a cada renovação dela, alguns metros são perdidos nos territórios da comunidade. Ao mesmo tempo, tudo o que a comunidade constroi em seu benefício, vira alvo do interesse deles. Em dezembro de 2016 foi realizado no Centro dos Pretinhos, o Encontrão da Teia dos Povos Tradicionais. Para essas mulheres foi um marco em suas trajetórias. Elas puderam ouvir que elas não estão sozinhas na luta. Elas não são apenas sete quebradeiras de coco, elas são milhares, pois são parte dessa teia dos povos e a luta é feita por todos e todas, e para todos e todas. “Foi a melhor coisa que aconteceu aqui!”, disse Sheila, presidente da Associação. Para o Encontrão foi construído um grande barracão para abrigar as atividades. O espaço vai poder satisfazer outros anseios da comunidade, como a possibilidade de criação de um local para abrigar a memória das quebradeiras de coco, que querem deixar sua história e seu legado para a comunidade, independente se a atividade da quebra do coco deixe de existir ou não. A prefeitura de Dom Pedro, cujo vice-prefeito é o latifundiário Curió, circunvizinho da comunidade, é importante lembrar, quis se apropriar do barracão, dizendo ser este um espaço da prefeitura.
As 60 famílias da Comunidade Cajá, na Vila São Pedro, também enfrentaram e enfrentam as mesmas dificuldades das demais. Apesar disso, repetem que hoje a vida é melhor. Antigamente, sem o acesso livre ao babaçual, precisavam arrendar dos fazendeiros a área onde ficavam as palmeiras. Pagavam valores absurdos para a realidade que viviam. As mulheres lembram com muita tristeza desse período. Era um tempo de muita humilhação, como dizem. “Não vou entrar na sua casa para pegar um quilo de sal que seja, ou qualquer outra coisa para roubar. Mas o coco eu tenho que apanhar para criar meus três filhos. Não estou roubando nada!”, falou uma delas. Dona Maria Celsa, do Centro dos Pretinhos, também lembrou desse tempo, “para nós estávamos roubando e éramos humilhadas todo o tempo. Agora que sabemos que podemos entrar e pegar os cocos é bem melhor”. Mas como disse Francisca Sheila, “já conseguimos fazer o mais importante, que foi derrubar a cerca na nossa mente e nos nossos corações. Conseguimos tirar essa ideia de que nós estávamos erradas e fazendo algo errado. Esse foi o passo mais importante que demos”.
Muitas vezes quando já estavam retornando dos babaçuais com os cofos cheios de cocos, ao encontrar os fazendeiros ou funcionários das fazendas no meio do caminho, eles as obrigavam a derrubar os cocos na estrada e seguir sem nada. Os tempos são outros e as lutas também são outras. Apesar da organização das mulheres, os enfrentamentos ainda são muitos. Na comunidade Cajá, por exemplo, os fazendeiros dos arredores estão derrubando as palmeiras para fazer pasto e colocando veneno com óleo queimado na raiz das pindobas (mudas de babaçu) para matar a planta, mas o próprio gado deles começou a comer essas raízes e morrer envenenado. É bom lembrar que é crime ambiental matar as mudas dessa palmeira, bem como derrubá-las, no Maranhão, de acordo com a lei estadual 4734/86.
Confira o vídeo:
As comunidades tradicionais do Maranhão e o efeito Sarney
Tendo como parte do cenário natural do cerrado maranhense os produtos extrativistas, esses tornarem-se inevitavelmente o meio de vida e ao redor do qual as comunidades tradicionais desenvolviam suas atividades, construíam sua ancestralidade e modos tradicionais de vida e sobrevivência da comunidade. Mesmo com a aproximação do processo de mecanização do campo, e o desenvolvimento da indústria algodoeira na região, essas comunidades mantinham-se e desenvolviam-se dentro desse espectro de fartura de terras e integração com o meio ambiente local. Até a mão do então governador, José Sarney, assinar sua Lei de Terras, liberando a ofensiva do latifúndio, facilitando mais ainda a grilagem no estado e abrindo espaço para todo tipo de violência contra as comunidades tradicionais e contra seus territórios.
A lei 2979/1969, o Estatuto da Terra do Maranhão, popularmente conhecida como a Lei de Terras de Sarney, tinha como objetivo incentivar a apropriação de terras, via sociedade anônima, independente das pequenas propriedades que estivessem no caminho.
Essa lei contribuiu muito para o avanço da pecuária no Maranhão, pois acabou legitimando a distribuição de milhares de hectares de terras públicas a particulares, bem como incentivos fiscais dos mais diversos para que esses “empreendedores” prosperassem. Os territórios das comunidades tradicionais, bem como sua prática extrativista em áreas comum, sem delimitação territorial, foram colocados em risco diante da ofensiva do capital rural, à serviço dos interesses de Sarney. O processo de organização dessas comunidades, a junção de forças com outras entidades sociais já bem estabelecidas, contribuiu para que elas ganhassem força para se auto identificarem enquanto quebradeiras de coco, enquanto comunidades tradicionais, e enquanto detentoras de direitos, os quais deveriam ser respeitados tanto pela esfera pública quanto pela privada.
Não foram anos fáceis. De acordo com os relatos de Dona Maria Celsa, foi o período em que sua família perdeu suas terras. Junto a isso houve uma queda na produção de amêndoas de babaçu. O medo e a escassez da “mãe palmeira” fez muitas famílias migrarem. A busca pelo território livre e pelo babaçual livre, portanto, sempre esteve no horizonte dessas mulheres e de suas comunidades.
Os golpes e contravenções no caminho
A luta pelo território sempre foi uma luta transversal à luta pelo acesso livre ao babaçual, e tem sido um dos pontos centrais de atuação dessas mulheres atualmente. Ariana Gomes, assessora de projetos do MIQCB, explica melhor a luta das quebradeiras nos dias de hoje: “a gente tem várias linhas de frente de trabalho, o principal de hoje e de sempre, é a luta pela regularização dos territórios de babaçuais. Hoje muita mais forte essa discussão por conta da necessidade que elas sempre tiveram dentro das comunidades, a questão da lei do babaçu livre é uma questão que está sendo repensada a metodologia, a importância dessa lei para as comunidades... a gente trabalha também na linha da produção no sentido de melhorar a renda das famílias, porque uma das questões envolvidas é essa da produção e comercialização para o fortalecimento da renda, mas principalmente para o fortalecimento nutritivo dessas famílias. Então a gente trabalha nessa linha de produção e comercialização dos produtos do babaçu, e temos também como um ponto muito forte o acesso aos mercados institucionais, que é o PNAE, o Programa Nacional da Alimentação Escolar, o PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, e por último a política de garantia do preço mínimo do babaçu que é a PGPM-Bio. E a preservação da floresta de babaçu, claro, e de todos os recursos naturais que estão dentro dessas comunidades quebradeiras de coco”.
Tais programas do governo têm contribuído enormemente na comercialização dos produtos das quebradeiras, bem como na complementação de renda das famílias dessas mulheres. Porém, processos burocráticos, contravenções e mesmo desvios promovidos por intermediários desses processos, tem dificultado o acesso a esses programas ou simplesmente impedido as mulheres de se manterem como beneficiárias desses projetos. A PGPM-Bio, por exemplo, que é a política de garantia de preços mínimos para produtos da sociobiodiversidade, assegura o preço de mais de 15 produtos extrativistas. Sempre que uma ou um extrativista vender seu produto por um preço abaixo do preço mínimo, a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) paga essa diferença.
Além do babaçu, figuram entre esses produtos o açaí, a andiroba, o baru, a borracha, o cacau, a castanha do Brasil, a carnaúba, a juçara, o pequi, o umbu, entre outros. As quebradeiras de coco babaçu são cadastradas nesse programa, uma a uma. A Associação que as representa recebia de um intermediário o valor pago pela Conab, e redistribuía o subsídio para cada quebradeira. As quebradeiras vendiam a castanha para a associação e recebiam, por intermédio desse programa, a diferença do valor de mercado. Após os desvios por parte desse intermediário, que atuava no estado do Maranhão, o programa foi suspenso na região.
“O MIQCB participou das discussões, da criação dessa política, mas nós não temos estrutura para conseguir acessar. Em 2014 e 2015, nós tivemos um acesso muito bom dessas políticas, chegando a quase um milhão de reais que as mulheres estavam acessando. Só que nós temos muitas demandas e poucas pessoas para realizar essas ações. Desde 2017 nós não conseguimos acessar nem um real dessas políticas da subvenção. O programa não está suspenso, nós que não estamos conseguindo acessar. Aqui no Maranhão tem um índice muito alto de fraude, no início do ano uma representante do Ministério do Meio Ambiente entrou em contato pois caso não se resolva essa situação, o programa será suspenso. Mas aí a gente não participou de nenhuma discussão a respeito disso. Aqui no Maranhão pelo fato de ser o estado que mais acessa essa política, o índice de fraude é absurdo por parte dos atravessadores, que tentam se dar bem em cima do trabalho das quebradeiras. Inclusive a própria CPT e o MIQCB fizeram uma denúncia a respeito de uma pessoa que estava explorando e desviando o dinheiro desse recurso destinado às mulheres quebradeiras, através dessa política”, explicou Ariana.
Esse desvio é feito de várias formas, como explica a assessora do MIQCB, “muitas vezes os intermediários fazem alteração da Nota, porque é de acordo com a Nota Fiscal apresentada. Por exemplo, se a mulher tinha quebrado mil quilos de coco naquela temporada, ele colocava que a mulher tinha quebrado dois mil. E ele ficava com metade disso e mais a metade do valor, e as vezes nem repassava o valor para a mulher”. Sobre a necessidade de um intermediário nesse processo, Ariana esclarece, “tem uma demanda de documentação, e a maioria das mulheres nas comunidades não tem estrutura de computador, com internet, e alguém que possa organizar essa documentação para que elas possam acessar o programa. E aí, por conta dessa fragilidade, essas pessoas fazem todo esse processo legal de documentação e enviam para a Conab. Só que ele envia a documentação em nome das mulheres, então não tem como a Conab dizer que não vai pagar, porque era tudo em nome da associação das mulheres ou no próprio nome individual delas”.
Para Márcia Palhano, coordenadora da CPT no Maranhão, a estrutura com excesso de burocracia nos órgãos competentes acaba proporcionando essas brechas. “O fator burocrático facilita isso. E as limitações que elas têm mesmo de entender e compreender como tudo isso funciona. E tem também uma contribuição do Estado, que não fiscaliza, pois ele é um atravessador, mas tem vários iguais a ele e tem várias mulheres que podem não ter recebido. Não existe um controle do estado a respeito disso, o que dá mais facilidade para pessoas como ele de acabarem se aproveitando da falta de conhecimento dessas comunidades”.
Ariana concorda com a coordenadora da CPT, e avalia que o Estado poderia estar, também, fortalecendo as entidades que acompanham e apoiam essas comunidades, para que elas não acabem vítimas de estelionatários. “É uma fragilidade que começa do próprio Estado, porque assim, é um recurso que não é para as próprias mulheres mesmo acessarem. Porque dizem que tem oito milhões para elas acessarem, mas não tem um real para apoiar as outras organizações que assessoram essas mulheres e que poderiam estar mais próximas nesse processo, para fazer com que essa política chegue nessas comunidades, e ainda não tem uma fiscalização rígida, como nesse caso por exemplo, a própria Conab, que é o órgão que faz a liberação, depois que fizemos essa denúncia, deveria ter fiscalizado e atestado o desvio. Não só não fizeram, como até hoje a pessoa não sofreu nenhuma penalidade. Isso porque fizemos a denúncia na polícia federal, imagine esses outros casos que a gente não consegue reunir provas concretas para efetivar uma denúncia. E a Conab sabe que existem essas fraudes. As mulheres estão na luta para a conquista da terra, para o acesso livre aos babaçuais e aos programas de comercialização, mas na hora de efetivar a política pública, dependem do fator externo que é o Estado”.
“A importância do babaçu para nós é a mesma importância da vida. Pois sem o babaçu, não temos vida! O babaçu é o meu orgulho de vida. Foi ele que me deu o pouco saber que eu tenho. Foi ele que sempre me vestiu, que sempre me calçou, e para mim o maior orgulho do mundo é ser quebradeira de coco e filha de quebradeira de coco”. Flaviana Silva, Centro dos Pretinhos – Dom Pedro (MA) |
O que diz a legislação sobre o acesso ao babaçu?
A partir da luta das quebradeiras de coco, o poder Executivo se mobilizou para tentar fazer com que o legislativo agisse e atendesse às necessidades dessas mulheres e das comunidades das quais elas fazem parte. Em 2003, foi criado um projeto de lei que, resumidamente, estendia a Lei do Babaçu Livre para toda a área dos babaçuais e ainda previa a proibição da derrubada da palmeira nos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará, Mato Grosso e Goiás. O projeto, número 747-A, era de autoria da deputada federal Terezinha Fernandes (PT-MA) e acabou sendo arquivado em janeiro de 2007. No mesmo ano o deputado federal Domingos Dutra apresentou o projeto de lei 231-B, com o mesmo teor do de Terezinha. Ele acabou tendo o mesmo destino e foi arquivado em 2015.
Na contramão da esfera federal, nos estados a legislação avançou um pouco mais. Lago do Junco foi o primeiro município do Maranhão que contou com uma lei do babaçu livre, aprovada em 1997. No total, 13 cidades de três estados (oito no Maranhão, quatro no Tocantins e um no Pará) também editaram leis municipais com base no livre acesso aos babaçuais.[3] A lei garante às quebradeiras de coco e às suas famílias o direito de livre acesso e de uso comunitário dos babaçus, mesmo se esses estiverem dentro de propriedades privadas, além da restrição quanto à derrubada da palmeira.
Do cerrado para a Europa através do babaçu
Lago do Junco não foi pioneiro somente em relação à legislação do babaçu, mas também no empreendedorismo do babaçu para a indústria de cosméticos. Distante 300 quilômetros de São Luís, o município abriga a Cooperativa dos Produtores do Lago do Junco (Coopalj), que possui 160 associados. A cooperativa produz o óleo de babaçu que encantou a companhia inglesa de cosméticos The Body Shop. Um paulista comprou o óleo e mostrou para um executivo inglês, então funcionário da The Body Shop, que já rodava o mundo em busca de fornecedores de produtos naturais para seus produtos, a partir de um programa chamado Community Trade. A empresa chegou a comprar 80% da produção de óleo da cooperativa. Extraído de forma manual e natural, o óleo puríssimo é considerado pelo executivo de excelente qualidade, tanto para o uso quanto para o meio ambiente. |
Violência e suicídios rondam as comunidades
“O que mais incomodou os poderes do governo estadual, tanto na esfera do legislativo, do executivo, quanto do judiciário, foi o empoderamento dessas comunidades. Nós fizemos muito trabalho de formação, de conscientização e isso, consequentemente, ajudou as pessoas a entenderem, compreenderem e se apropriarem do discurso sobre os direitos que elas possuem, sobre o lugar que elas ocupam na sociedade. Nunca essas comunidades haviam ocupado a Câmara municipal, nunca elas haviam estado nesse espaço, que é delas, é do povo. E isso incomodou... incomodou muito os poderes locais”, relatou Márcia Palhano, da CPT. Por causa desse trabalho, tanto ela quanto outras pessoas que acompanhavam as quebradeiras de coco, passaram a sofrer ameaças de morte constantes na região. Márcia chegou a sofrer uma agressão física ao acompanhar o grupo de quebradeiras em uma audiência pública para discutir a Lei do Babaçu Livre.
Em março deste ano, a coordenadora geral do MIQCB, Francisca Nascimento, sofreu uma tentativa de assassinato, no município de São João do Arraial, no Piauí. Francisca foi abordada por uma vizinha, em frente à sua casa, que a questionou sobre o pagamento de uma cerca, retirada durante um mutirão comunitário, que envolveu mais de 20 comunidades, para que elas tivessem acesso ao açude Santa Rosa. Francisca informou que a decisão foi tomada pela comunidade. O esposo da vizinha, então, atacou a coordenadora com uma faca. Ela conseguiu se desvencilhar e fugir com a sua irmã na garupa de uma moto. Segundo relatos do Movimento, as ameaças começaram ano passado, quando a comunidade se organizou e revitalizou uma fonte natural de água, o açude Santa Rosa, destruído por um fazendeiro da região.
Além da violência mediante o avanço das lutas por direitos das quebradeiras de coco e das comunidades das quais elas fazem parte, outra mazela vivida por elas é consequência da violência estrutural a que essas comunidades são acometidas, o suicídio. Ao final das visitas às comunidades de quebradeiras em Dom Pedro, fui informada de que no Centro dos Pretinhos, nos últimos tempos, quatro homens cometeram suicídio. Durante os dias que passei com as quebradeiras, em nenhum momento, mesmo quando indagava da participação dos homens no processo de trabalho com o coco babaçu, esse fato foi relatado. Talvez pela pouca intimidade adquirida nesse espaço de tempo ou pela própria dificuldade em lidar com a questão, pouco compreendida pela comunidade até o momento, conforme fui informada.
O sociólogo Durkheim, ao analisar o suicídio, tentou levantar fatos sociais que poderiam vir a potencializar essa prática dentro de uma sociedade. Ele identificou, principalmente, o que ele considerou de três tipos de suicídio, o anômico, o altruísta e o egoísta. O anômico, que ele descreve ser comum em situações de anomia social, principalmente quando um grupo social é acometido por grandes mudanças, como uma crise econômica, desemprego ou perda do poder aquisitivo, pode explicar os casos do Centro dos Pretinhos. Durkheim dizia que nesse caso, forças desagregadoras da sociedade fazem com que o indivíduo se sinta perdido ou sozinho, mesmo sem esperança e perspectiva. É possível ver a falta de perspectiva, principalmente, entre os homens das comunidades visitadas.
Enquanto as mulheres estão organizadas, empoderadas por uma identidade tradicional e em conjunto lutando por seus direitos e sustento, os homens não encontram espaço nessa conjuntura reservada para eles. Encurralados em pequenos lotes de terras, não conseguem produzir, ter roças, criar animais, como antes faziam. A crise econômica, da mesma forma, diminuiu a oferta dos “bicos” que ocupavam esses homens e davam a eles a oportunidade de contribuir com algo em casa. Rapidamente, a partir da força e organização dessas mulheres, essas comunidades, pequenos núcleos sociais, tornaram-se matriarcais. Os homens não souberam lidar com isso. Os que não usaram do subterfúgio da violência ou mesmo do feminicídio, acabaram tirando a própria vida.
O adoecimento pela falta de perspectivas não é novidade entre os povos camponeses. Indígenas têm visto o suicídio aumentar cada vez mais entre suas etnias, principalmente entre aquelas mais vulnerabilizadas. Sob a proteção da grande mãe palmeira, o babaçu, as mulheres conseguiram encontrar sua perspectiva, a força da união deu a elas as ferramentas de luta de que precisavam. Há um longo e duro caminho a ser percorrido, mas a certeza que elas têm é que vão continuar caminhando, juntas, e quebrando coco.
*Assessora de comunicação da CPT Nacional / **Agente da CPT Bahia
[1] Pequenos Projetos Ecossociais de quebradeiras de coco babaçu – reflexões e aprendizados. ISPN,
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Maranh%C3%A3o
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Quebradeiras_de_coco_baba%C3%A7u