COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Jovem que sobreviveu ao massacre policial que vitimou 10 pessoas do Acampamento Jane Júlia, na Fazenda Santa Lúcia, em maio deste ano, relembra detalhes daquele dia. Estado do Pará lidera levantamento da CPT sobre massacres no campo. Em 32 anos, ocorreram 26 massacres no estado, que vitimaram 125 pessoas.

 

Reportagem e Imagens: Elvis Marques*

Setor de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT

Dia 24 de maio de 2017, então Acampamento Nova Vida [hoje, Jane Júlia], localizado na Fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco, no Pará. Neste local, no início da manhã, após uma madrugada de terror, nove homens e uma mulher foram assassinados por policiais civis e militares. As vítimas: Jane Júlia de Oliveira, Oseir Rodrigues da Silva, Nelson Souza Milhomem, Weldson Pereira da Silva, Weclebson Pereira Milhomem, Bruno Henrique Pereira Gomes, 20, Hércules Santos de Oliveira, 20, Regivaldo Pereira da Silva, 33, Ronaldo Pereira de Souza, 41, e Antônio Pereira Milhomem, 50. Das 10 pessoas mortas, sete eram da mesma família. Pessoas que foram dominadas, espancadas e executadas pela polícia.

A área da Fazenda Santa Lúcia é alvo de uma ação de reintegração de posse que tramita desde o ano de 2013. No processo, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Marabá, já foram apontadas diversas falhas procedimentais pelo Juízo, dentre elas a não realização de audiência de justificação prévia, ausência de investigação sobre a legitimidade dos documentos apresentados pelos autores, concessão de liminar sem oitiva da parte contrária. Além disso, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) tramita um processo administrativo de compra e venda do imóvel, que já foi vistoriado e avaliado pelo órgão.

Acampado do Jane Júlia há pelo menos 5 anos, o jovem F.D (que não será identificado por motivo de segurança) é um dos sobreviventes do Massacre de Pau D’Arco. Sua vida começou em Brasília, onde morou por 17 anos. Após esse tempo, chegou ao Pará, onde passou a morar com um tio na zona rural. “Tudo lá fui eu que plantei. Eu pegava uma bicicletinha e ia atrás dos vizinhos para pedir mudas. Eu gosto de morar na roça. Gosto de criar galinhas, fazer essas coisas”, conta. A partir disso, a história dele e do acampamento se cruzariam. “Fiquei sabendo de um pedaço de terra, e disse: eu vou lá lutar por ele. Porque na rua é tudo muito ruim. Você chega lá e é um caos só. Não tem emprego para ninguém. No acampamento, eu tenho liberdade, posso plantar minhas coisas”, justifica.

Ao longo de meia década de acampamento, F.D, apesar de muita luta e de ter de reconstruir sua morada e plantar sua roça diversas vezes, não consegue imaginar a vida longe daquela terra. “Quantos barracos eu já fiz, já plantei minhas mandiocas, e o trator passava por cima e arrancava tudo. Eu já criei mais de 90 galinhas no acampamento. Lá fora eu não tenho nada. Então, eu vou lutar por esse pedaço de chão. É lá que eu me sinto bem. Na rua eu me sinto horrível. E no acampamento eu tenho paz”, explica.

E foi neste lugar, onde o jovem encontrara a paz, que, nos dias 23 e 24 de maio de 2017, ele presenciou e sobreviveu ao maior massacre no campo desde Eldorado dos Carajás, ocorrido no ano de 1996, também no estado do Pará. Em entrevista, quase seis meses após o crime, F.D relembrou detalhes do caso. Confira: 

Ocupação – No dia 23 de maio de 2017, por volta de 14 horas, conforme F.D, cerca de 50 pessoas se reuniram e foram para a antiga sede da Fazenda Santa Lúcia. Ao chegar no local, ele afirma que os acampados encontraram tudo destruído. “Aí nós pensamos: vamos ficar aonde aqui?”.

– Foi quando um dos meninos disse, ‘eu conheço ali para baixo. Tem uma matinha e uma água lá. E aí a gente acampa lá até o outro pessoal vir da rua, pois aí quando for de manhã, a gente reúne todo mundo e vem para a sede ver o que a gente faz’. Alguns concordaram. E como outros estavam de moto, não quiseram ficar. ‘Disseram: não vamos dormir no meio deste mato’. E aí ficaram umas 20 pessoas para trás. Eu mesmo fiquei. Então fomos para lá [para uma pequena mata, que fica a aproximadamente 500 metros da antiga sede da fazenda].

O jovem lembra que isso ocorreu por volta das 16 horas daquele dia, e o objetivo era dormir nesta mata. Cerca de duas horas após isso, os acampados escutaram o barulho de um carro.

– Os meninos falaram assim: ‘deve ser alguém nosso [mais acampados] que está vindo. Aí foram lá ver o Felipe e o Hércules [uma das vítimas]. E viram que era um carro da polícia. Segundo eles, desceram quatro soldados armados. Tipo observando e caçando os lugares’. Eles voltaram para trás [onde estavam os demais acampados] e avisaram que era o carro da polícia. Eles [os policiais] ficaram até umas 07h30 da noite, olhando, olhando. Era como se eles estivessem vendo onde nós estávamos. Depois, nós escutamos quando eles foram embora.

F.D conta que, antes do massacre, a polícia costumava ir até o acampamento e conversar com as pessoas. “Então, a gente não ficou com receio, pensando que iam nos matar. A gente nunca pensava isso”, explica.

As marcas de tiros no local onde 10 trabalhadores rurais foram assassinados. Crédito: Elvis Marques / CPT Nacional

Objetos pessoais das vítimas do Massacre de Pau D'Arco continuam no local onde ocorreu o crime. Crédito: Elvis Marques / CPT Nacional

Já no dia seguinte, 24 de maio, entre 05h30 e 06 horas da manhã, de acordo com F.D, os acampados acordaram com um intenso barulho de veículos.

– [Os policiais] chegaram batendo bastante nas portas. Aí dona Jane [Júlia] disse de novo: ‘deve ser o pessoal chegando [os demais acampados]’. Ela não imaginava que eram as polícias. De novo, os meninos foram ver o que era. Quando eles viram, os policiais já estavam na descida da represa [próximo ao local onde estavam os acampados]. Os meninos voltaram correndo, porque deram praticamente de cara com eles. Eles falam que tinham uns policiais que estavam com capuz.

Naquele momento, conforme relato do jovem, os demais sem-terra ficaram assustados. Liderança do acampamento, Jane Júlia imaginava que a equipe policial estivesse no local “para fazer alguma ação”, lembrou F.D, mas, por precaução, todos e todas saíram do lugar onde haviam passado a noite. Juntaram seus pertences e caminharam por cerca de 300 metros em meio ao capim alto. Desse local, os acampados ouviram os policiais chegarem no acampamento. “A polícia chegou quebrando tudo ali no local. Chutando as panelas”, conta.

 – Tinha uma turma que não tem experiência com essas coisas [acampamento], e aí se assustou, e correu com medo. Foi igual boiada estourada. Foi quando a polícia ouviu realmente onde nós estávamos. Um barulho daquele lá não tinha como não ouvir. E estava começando a fechar o tempo para chover nesse dia.

Jane Júlia, segundo o jovem sobrevivente, ficou preocupada com as pessoas que correram, e chamou os acampados para irem atrás dos demais. “Andamos mais uns 300 metros para frente, e vimos eles debaixo de um Ipê e de uns pés de Babaçu, próximo a represa”, lembra. Mesmo após ouvirem os policiais destruir o acampamento, algumas pessoas ainda não imaginavam o que estava por acontecer.

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Abrigo – Agora, todos estavam reunidos novamente, e uma forte chuva se aproximava. “Vamos dar um tempo aqui. Vai chover também, e eles [policiais] vão embora”, disse Jane, de acordo com o F.D. Nelson [uma das vítimas] estava com uma lona preta, o que serviria de abrigo para todos se cobrirem da chuva.

 – Nessa hora, a polícia já estava nos seguindo, e a gente não sabia. A gente tirou a lona, e jogou por cima de nós. Uns sentaram no chão. Dona Jane sentou em um capacete vermelho. Foi mais ou menos 10 minutos depois que a gente sentou, e começou a chover. Muita chuva, vento e relâmpago. Não dava para ouvir ninguém chegando.

– Eu mesmo só escutei assim: ‘Não corre não senão vai morrer todo mundo. Bando de bandidos’. Não deu chance nenhuma. Ali, como nós estávamos, a polícia chegava e dava para prender todo mundo, sem ter matado ou batido em alguém. E ‘pá, pá, pá’, atirando em nós. Ali foi um susto tão grande que o pessoal se embolou naquela lona. Quando eu fui me levantar, não consegui dar o passo. Quando eu consegui dar um passo para correr, um menino levou um tiro nas costas, e eu tropiquei nele e caí.

– Tinha um matinho perto de mim, uma moita bem grande, aí eu olhei e deu para me socar debaixo dela e ficar ali. Quando eu ouvi o policial falando: ‘não corre não senão morre. Para, para senão morre’. Eu achei que era comigo, aí eu parei e fiquei imóvel. Mas não era comigo.  

Massacre – F.D conta que, quando estava escondido, ouvia os policias baterem nos demais acampados. “Não dava 15 metros de onde eu estava até o local onde eles mataram [os acampados]. E eu estava imóvel. Se eu olhasse para trás, dava para ver tudo o que eles [policiais] estavam fazendo. Mas eu estava em choque e parado, só ouvindo eles pisando, massacrando e batendo nos meninos. E falavam: ‘corre bando de bandido. Nós vamos pegar é todos. E matar todos’”, relembra.

Neste mês de novembro, integrantes de Missão Ecumênica foram até o local onde aconteceu o Massacre de Pau D'Arco. Crédito: Elvis Marques / CPT Nacional

– A dona Jane falava: ‘não faz isso com os meninos não’. Eles [policiais] falavam ‘sua velha, gorda [...], era tu que a gente queria mesmo’. E batiam nela. Depois, atiraram muitas vezes nela. Escutava ela gemendo. Eu escutei os meninos chorando. ‘Não, por favor, a gente não vai correr não, senhor. A gente está quieto’. Os policiais falavam: ‘bota a mão na cabeça seus vagabundos. Deita no chão e bota a mão na cabeça para dormir’.

– E aí começaram a atirar. Atiraram bastante mesmo. E ainda falaram: “velho duro de morrer. Esse velho não morre não. Deixa eu dar mais um [tiro]. Agora é minha vez”. Foi uma sequência de muitos tiros, que eu fiquei sufocado com aquele cheiro de pólvora. Moço, pegaram os meninos ali, espancaram e mataram.

– Eles [os policiais] riam, mais riam. E gritavam ‘tá vendo, nois (sic) pegou’. E atiravam.

Fuga – Algum tempo depois, F.D precisou rastejar em meio ao mato para fugir dos policiais e da morte. “Me machuquei todo. Quando eu saí, a polícia tinha passado na minha frente. Foi quando eu parei de novo e vi eles, mas estavam de costas. Eu passei devagarinho por eles para o outro lado, e fiquei lá quieto”, revela. E foi neste local que o jovem encontrou Celso, outro sobrevivente, que estava ferido por um tiro na cabeça. “Quando ele me viu, ficou com medo, achando que era alguma polícia. A gente ficou lá nesse capim e a polícia atirando”. Não distante dali, em uma lama, estava a esposa de Celso.  

Posteriormente, F.D encontrou outro companheiro, o Bento. Isso, segundo o jovem, ocorreu por volta das 18 horas do dia 24. “Era muita chuva, ela não parou. Aquele lamaçal, a água correndo por cima dele, e ele na lama. A gente não dava conta de tirar ele, e ele desmaiava em nosso colo. A gente não dava conta”, explica o sem-terra.

– Aí pensamos [F.D e Celso], vamos sair para fora [do mato]. Foi quando a gente se perdeu. Escureceu e muito trovão. Era 01h00 da manhã [já do dia 25 de maio] quando conseguimos sair de lá [da área da fazenda]. Eu vi a hora porque encontrei uma menina e ela me falou.

De acordo com F.D, quando os dois chegaram na Colônia, um pequeno povoado na região, ele encontrou uma mulher conhecida, que rapidamente o abraçou e também mostrou uma foto do massacre: “olha aqui [mostrou no celular], os meninos morreram tudo”, disse ela.  

– Mas ninguém lá [do povoado] queria ajudar. Diziam que a polícia tinha passado por lá e dito: ‘se ajudarem alguém [do acampamento] vão presos’. Aí eu pedi só uma água mesmo, e eu continuei andando com o Celso.

Mais adiante, F.D e Celso decidiram se separar, por questão de segurança.

História que se repete – A história mostra que esse tipo de crime relatado por F.D sempre ocorreu no campo brasileiro. Entre os anos de 1985 a 2017, a CPT registrou 46 massacres que vitimaram 220 pessoas em nove estados brasileiros. E é o Pará que lidera o ranking de massacres no campo – são 26 massacres nesses 32 anos, que vitimaram 125 pessoas. O estado concentra mais da metade do total de massacres e cerca de 58% do total de vítimas.

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