Escravização e colapso climático caminham juntos

Num sistema de produção que não respeita nem os direitos trabalhistas e humanos, nem as leis de proteção ambiental, trabalhadores e trabalhadoras são vulnerabilizados e empurrados para atividades que destroem ecossistemas. Acompanhe no sexto artigo da série Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra

Trabalhador em carvoaria ilegal na área rural de Moju (PA). Crédito: Fernando Martinho
Trabalhador em carvoaria ilegal na área rural de Moju (PA). Crédito: Fernando Martinho

Brígida Rocha dos Santos* e Francisco Alan Santos Lima**
Para ‘adiar o fim do mundo’ | Vozes da terra na COP30***

Neste exato momento do debate climático, importa refletir sobre a genuína conexão entre crise climática e escravidão contemporânea, uma problemática crucial que tem seu maior impacto em povos e comunidades, em trabalhadoras e trabalhadores, que nunca foram escutados nem consultados.

As atividades econômicas que, sem adequada repressão por parte do Estado, seguem adotando práticas ilegais, são a matriz de uma combinação altamente nociva que, ao mesmo tempo, desumaniza trabalhadores e degrada o meio ambiente. A análise dos relatórios de fiscalização do governo federal mostra que, no Brasil, atividades econômicas que contribuem para a emissão de gases de efeito estufa e, portanto, para as mudanças climáticas, tais como desmatamento, produção de carvão vegetal e pecuária bovina, têm sido historicamente o nicho principal onde foram encontradas pessoas submetidas a formas contemporâneas de escravidão. A ausência de oferta de empregos decentes no campo e na cidade, a histórica exclusão do acesso à terra, a insegurança da vida em territórios cobiçados pela grilagem ou dominados pelo avanço brutal do agro, tudo isso agrega vulnerabilidades em milhares de pessoas cujo recurso essencial é a própria força de trabalho, obrigando-as a aceitarem condições degradantes.

Dados sistematizados pela Campanha Nacional da CPT “De Olho Aberto para não virar escravo”, dão conta de 2.934 pessoas encontradas em trabalho escravo nos primeiros dez meses de 2025. Dessas, 2.819 foram resgatadas em ações coordenadas pela Auditoria Fiscal do Trabalho. O desrespeito aos direitos fundamentais e às garantias de um trabalho digno seguem uma lógica de descarte da vida, que vai desde a degradância das condições de trabalho impostas nas empreitadas, até o trabalho exaustivo, passando pela ausência de pagamentos, o endividamento compulsório ou a privação de liberdade. Essas condições, agregadas a várias outras violações, formam um conjunto que coloca em risco a saúde e a vida desses trabalhadores.

Um exemplo: o desmatamento para a produção de carvão. Além de destruir a mata, a atividade acaba na desumana exploração dos trabalhadores nas carvoarias, onde, em condições precárias, devem carregar pesos extravagantes, subir escadas para encher gaiolas, respirar uma fumaça constante, tudo isso em ritmo degradante e exaustivo, que impacta e compromete os pulmões e a saúde. Recentemente, em Açailândia (MA), o trabalhador Edelson Lacerda morreu após a explosão do forno de produção de carvão vegetal. O acidente dilacerou o trabalhador, levando-o à morte. Cabe perguntar: que ações estão sendo tomadas para que não ocorram outra vez tais “fatalidades”? Como vem sendo tratada a responsabilização por práticas que matam a vida da floresta e das pessoas? Como se processa a reparação dos danos sofridos, coletivos e individuais?

Conforme o Observatório Digital do Trabalho Escravo, as atividades que apresentam maior índice de trabalhadores resgatados do trabalho análogo à escravidão estão enquadradas no setor agropecuário, segmento em grande medida responsável pelo desmatamento de florestas para a abertura de novas pastagens e áreas de plantio. Quanto ao perfil dos trabalhadores resgatados, são homens de 18 a 44 anos, afrodescendentes em sua maioria (pardos, 42%; e pretos, 12%), analfabetos (31%) ou com até o 5º ano incompleto (39%).

Na esteira desse sistema de produção que não respeita nem os direitos trabalhistas e humanos, nem as leis de proteção ambiental, os trabalhadores e trabalhadoras são vulnerabilizados, empurrados para atividades que destroem ecossistemas, o que, por sua vez, gera secas e desertificação. Ou seu contrário: inundações, aumentando a vulnerabilidade social e obrigando a migrações forçadas, o que no fim da linha pode produzir aliciamento e submissão a trabalho escravo.

Existe uma conexão intrínseca entre destruição da floresta amazônica e trabalho escravo. O exemplo do município de São Félix do Xingu, no Pará, é representativo disso: ele é um dos campeões nacionais em área desmatada e, ao mesmo tempo, campeão nacional em número de operações de resgate de trabalho escravo e um dos campeões em número de rebanho de gado. Segundo dados da CPT de 2024, dos 2.185 conflitos no campo registrados no ano em todo o Brasil, mais da metade (1.180) ocorreram na Amazônia Legal. A região, que compreende os sete estados da região Norte, além de partes dos estados do Maranhão e de Mato Grosso, tem sido afetada pelos incêndios criminosos, desmatamento ilegal e violências contra a pessoa, tais como as ameaças de morte e tentativas de assassinato.

Racismo ambiental

Problemáticas como essas são necessárias de serem abordadas não só durante, como também após a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), realizada em Belém.

O Brasil e o resto do mundo precisam urgentemente avançar na construção e implementação de políticas públicas, sociais e de infraestrutura, que considerem as mudanças climáticas e um dos seus efeitos mais perversos: o racismo ambiental. Este designa o que ocorre quando, por ação ou omissão, o poder público, instituições ou empresas negligenciam as condições de risco de vida das populações de baixa renda, em sua maioria negras aqui no Brasil, que se encontram em áreas de risco de desastres ambientais. Promover a justiça climática, assim, passa a ser uma forma de combater a escravidão. Políticas públicas como as de ordenamento territorial, reforma agrária, regularização fundiária, construção de moradias dignas, prevenção de desastres ambientais, promoção do trabalho digno e de produção a partir da agroecologia e da agricultura familiar, têm que ser priorizadas pelos estados, sobretudo em regiões mais vulneráveis.

O Brasil é referência internacional positiva no combate ao trabalho escravo. Porém ainda precisa de um longo caminho para consolidar seu protagonismo na agenda climática e se tornar, para o presente e o futuro, uma referência no combate aos crimes ambientais e na implementação de soluções que possam inibir a mercantilização da natureza.

Em todo esse processo é necessário escutar os territórios e respeitar a ancestralidade dos diversos povos que milenarmente preservam e cuidam da “Casa comum”. As falsas soluções climáticas vendidas por grandes corporações na perspectiva da redução das emissões de gases de efeito estufa, como a compra de créditos de carbono, têm gerado conflitos nos territórios, pois a maioria das empresas não respeita as escutas desses territórios, uma violação aos protocolos de consulta criados à luz da Convenção 169 da OIT. Não se encontrarão equidade e justiça climática sem a participação das vítimas das mudanças climáticas e, como costumam ser, também da escravidão.

Não é possível proteger os biomas, repletos de saberes e sabores culturais, sem proteger os territórios e os corpos dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas, sem respeitar as vidas. O cuidado com as pessoas é inseparável do cuidado com os ecossistemas: isso se torna ainda mais significativo lá onde a floresta não é considerada como recurso para explorar, mas como um ser (ou vários seres) com quem se relacionar.

Sindicatos e confederações de trabalhadores e trabalhadoras participam da Marcha Global pelo Cima durante a COP 30, reivindicando que “Não haverá futuro para a Amazônia sem trabalho decente.”
Crédito: Carlos Henrique Silva
Sindicatos e confederações de trabalhadores e trabalhadoras participam da Marcha Global pelo Cima durante a COP 30, reivindicando que “Não haverá futuro para a Amazônia sem trabalho decente.”
Crédito: Carlos Henrique Silva

Ao deixar Belém, os povos e as coalizões presentes na COP30 levaram ainda um longo percurso a ser trilhado. Se avanços significativos já foram feitos no combate ao crime que consiste em manter pessoas em condição análoga à de escravo, o mesmo não aconteceu na parte ambiental. Precisamos dar passos mais largos e marcar grandes progressos diante dos índices alarmantes do desmatamento na Amazônia e das formas extremas de degradação que afetam vários biomas no Brasil e outras partes do mundo.

Assim como foi a caminhada pelo clima que uniu povos do mundo inteiro na COP30, é necessário fortalecer cada vez mais o esforço global para a proteção das pessoas e de todos os seres que habitam nosso planeta. No que tange à relação da escravidão com o meio ambiente, é preciso intensificar o rastreamento das cadeias produtivas envolvidas e vedar qualquer financiamento a atividades e empresas que se utilizam de práticas criminosas. Impõem-se, ainda, políticas de proteção ambiental e do clima realmente eficazes, para que agendas e compromissos assumidos pelos países não se configurem em promessas meramente vazias.

Os povos – que, em Belém, investiram ruas, casas e vários espaços – trouxeram experiências de quem vive de perto violações e violências multiformes associadas à crise climática. Porém, a força dos encantados e encantadas que anima essas pessoas em seus territórios mostra que a luta segue em pé, que os povos existem e resistem, cuidam dos ecossistemas, plantam, celebram rituais e tradições, respeitando o tempo e os diversos modos de vida. E assim mantêm viva a alegria de viver. Que as fortes palavras do saudoso Papa Francisco na exortação apostólica Querida Amazônia continuem nos animando para continuar caminhando e cantando as nossas lutas e que a nossa grave preocupação pela vida do planeta nunca nos tire a alegria de esperançar.

*Brígida Rocha dos Santos é assistente social, agente da CPT Maranhão, integra a Campanha Nacional da CPT “De Olho Aberto para Não Virar Escravo” e a Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-MA). Graduada em Serviço Social, especialista em gestão pública, graduanda do curso Direito.

**Francisco Alan Santos Lima é educador popular, membro da coordenação colegiada da Comissão Pastoral da Terra do Pará e articulador das CPTs da Amazônia. Graduado em Serviço Social e especialista em Elaboração e Gestão de Projetos Sociais. Atuando na CPT no acompanhamento e atendimento de territórios em conflitos no campo; no atendimento às vítimas de trabalho escravo e na atenção aos  defensores/as de Direitos Humanos como suplente no Programa de Proteção a DDH do Pará.

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***Idealizada e organizada pela Comissão Pastoral da Terra com o apoio de parceiros da luta camponesa, a série ‘Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra’se propõe a articular debates importantes rumo à COP 30: conflitos no campo, os impactos do agro-hidro-minero-negócio e do capitalismo “verde” sobre a natureza e a humanidade e a defesa da sociobiodiversidade. Os artigos trazem as experiências, saberes e as saídas insurgentes para a crise climática construídas nos territórios e comunidades camponesas, tradicionais e originárias do Brasil; e se alimentam dos dados de conflitos no campo produzidos há quarenta anos pela CPT.

Publicado originalmente em Le Monde DiplomatiqueBrasil

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