36ª Romaria da Terra e das Águas de Alagoas leva esperança e profecia aos bairros atingidos pelo crime da Braskem
Centenas de pessoas caminharam pelo território marcado pelo impacto do afundamento do solo em Maceió
Por Lara Tapety | CPT NE2
Imagens: Lara Tapety

Centenas de pessoas participaram da 36ª Romaria da Terra e das Águas, na área afetada pelo maior crime socioambiental em solo urbano do mundo, em Maceió (AL). A caminhada, no último domingo (05), percorreu os bairros do Pinheiro, Bebedouro e Flexal, feridos pela mineração de sal-gema, mas que seguem pulsando com a força da memória e da esperança do povo atingido.
Sob o tema “Ecologia Integral: esperança, resistência e profecia” e o lema “E Deus viu que tudo era muito bom (Gn 1,31)… A Braskem afundou sonhos”, a Romaria deste ano uniu espiritualidade e compromisso político, com solidariedade às vítimas da ganância da Braskem, a denúncia do lucro acima da vida e a defesa do direito à justiça socioambiental.
A concentração aconteceu em frente à Casa IBP, no bairro do Pinheiro, onde a pastora Odja Barros saudou os romeiros e romeiras. Ela lembrou a importância de realizar a Romaria no território atingido e fez um chamado à profecia e à fé:
“Eu tenho certeza que a força do povo vai fazer profecia neste território. (…) A nossa romaria deste ano vai ser essa profecia de ressurreição desse território e que a gente leve no coração essa fé e essa profecia!”, animou Odja.



A Braskem afundou sonhos
Entre estandartes com frases como “Não é uma tragédia, é um crime” e faixas que diziam “Maceió afunda em lágrimas” e traziam o tema da romaria, o povo caminhou entoando cânticos e orações, carregando também o peso e a força de uma cidade ferida, mas que continua de pé. Cada canto, cada oração, era também um grito de quem não aceita o silêncio imposto pelas rachaduras, pela impunidade e pelo abandono.
A primeira parada aconteceu em frente à Igreja Batista do Pinheiro, símbolo de resistência do bairro. Lá, antes de rezarem o Pai Nosso, os participantes ouviram a reflexão do pastor Valdenício Santos (Vando), da Igreja Batista da Alegria:
“O povo camponês traz seu exemplo para a cidade para que os sem teto, os despejados e os expulsos de sua casa pela criminosa Braskem vejam na luta do campo um espaço de esperança. Porque o povo de Deus marcha, mas marcha em busca da vitória, marcha em busca da Terra Prometida, porque ‘Deus viu que tudo era muito bom’, e a Braskem quis destruir, quis matar o povo, mas o povo é de Deus e não permite que isso ocorra.”



“A Braskem vai afundar”
A segunda parada foi em frente ao que sobrou do antigo Hospital Sanatório, transformado em ruínas por ser localizado na área afetada pela mineração. Cícero, que vive uma dupla aflição causada pela Braskem, por ter trabalhado no hospital e ser morador do Bom Parto, fez um depoimento profético:
“A Braskem acabou com muitos sonhos. (…) Pacientes chegavam do interior para fazer cirurgias que não tinham condições de pagar no outro hospital, mas, infelizmente, a Braskem afundou o Hospital Sanatório.” Ele completou: “Graças a Deus hoje eu tenho outro emprego. Continuo com aquela força, aquela garra para trabalhar e acredito sim que um dia a gente vai ver a Braskem afundar também.”, afirmou o enfermeiro e professor.
A terceira parada aconteceu na Praça Lucena Maranhão, antiga Praça da Matriz de Bebedouro, onde ficava a Paróquia Santo Antônio de Pádua. Ex-moradores e ex-moradoras recordaram tempos de convivência e alegria em comunidade. O escritor Marcelino Brito, ex-morador do Bebedouro, em um depoimento marcado por memória e saudade, contou sobre a vivência e fez um breve histórico do bairro desde suas origens até os dias atuais.
“Aqui nós edificamos a nossa casa, a nossa família. Meus filhos cresceram nessas terras de Bebedouro. (…) Nós aqui éramos amigos uns dos outros”, relatou Marcelino.



Não é uma tragédia, é um crime
Caminhando e cantando, os romeiros e romeiras seguiram até o Flexal. Ali, o artista Mauro Fabiani apresentou uma performance poética em referência à conexão da lagoa com os territórios afetados, cantando sua música “Meu Lugar” e “Mundaú Grande Bebedouro”, de Altair Pereira.
Nas tendas temáticas, os debates aprofundaram reflexões sobre água, ecologia integral, saúde mental e acolhimento. O filósofo, teólogo e escritor Roberto Malvezzi (Gogó), que atuou por décadas na CPT, conduziu o debate sobre a água como fonte de vida e refletiu a respeito dos impactos do crime.
“Isso que a gente conversou na tenda da água é que um impacto como esse, ambiental, também é social, porque ele pegou a moradia, o emprego, a geração de renda, a saúde emocional, a saúde física… e isso é um desastre socioambiental, porque se provoca no ambiente, mas atinge a comunidade da vida como um todo.”, disse Gogó.



Durante a tenda, um pescador e uma marisqueira relataram as perdas na Lagoa Mundaú, onde a contaminação pela mineração e o surgimento do “sururu branco” (espécie exótica invasora) colocam em risco o sustento das famílias.
“Teve peixe que desapareceu totalmente. Acabou o Mororó. Tem áreas ali que a gente não pode nem chegar porque tem umas bóias. A fonte de renda dos pescadores acabou. Sururuzeiro, aqui não tem mais um. Quando vai pegar o sururu, precisa ir lá para a Ponte Divaldo Suruagy. E aqui, nas mediações dessa miserável, acabou. Diz o governo que está tudo certinho, o prefeito diz que está uma maravilha. A gente está nessa miséria com essa praga da Braskem”, relatou o pescador.
Na tenda “Ecumenismo e as relações afetivas: como isso afeta nossa saúde mental”, conduzida pelo Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), o padre Raul Moreira lembrou que o crime da Braskem afetou não apenas os cinco bairros oficialmente atingidos, mas também todo o entorno. Ele fez referência ao caso de Dona Pureza e sua filha, vítimas de depressão e isolamento após o desastre, como exemplo da dor profunda que ultrapassa o material.
Em memória das 17 vidas perdidas por suicídio, fruto do sofrimento e do desamparo provocados pela tragédia, o padre Raul apontou que o impacto da mineração vai muito além das rachaduras visíveis:
“Há uma gama de reparações que os bens materiais não trarão de volta. Não vai trazer Dona Teresa de volta, não vai trazer sua filha. Quantas pessoas em depressão vão morrer porque não estão mais no seu chão?”
Após as reflexões, crianças e adolescentes da Chã do Bebedouro dançaram e apresentaram uma oração com o anseio das pessoas atingidas por serem ouvidas e reconhecidas como gente que sonha, luta e sente. Os versos ecoaram entre os romeiros e romeiras: “Senhor da vida, escuta o clamor que vem das terras afundadas, das casas que viraram lembrança, das ruas onde a infância já não corre mais.”


Celebração e comunhão
A celebração eucarística, presidida pelo arcebispo metropolitano de Maceió, Dom Beto Breis, e cocelebrada pelos padres Francisco Teixeira, da Paróquia Santo Antônio de Pádua (Bebedouro), e Raul Moreira, da Paróquia São José Operário (Fernão Velho), contou ainda com a presença do diácono permanente da Arquidiocese de Maceió, André Soares.
Os religiosos participaram ativamente da preparação da romaria, motivando as comunidades ao longo das semanas que antecederam o evento.
Durante a Santa Missa, Dom Beto ressaltou a importância de transformar a dor em compromisso e esperança, destacando o sentido espiritual e profético da romaria diante do sofrimento das famílias atingidas:
“Que bom estarmos aqui nesta 36ª Romaria da Terra e das Águas, fazendo ecoar o grito de tantas famílias atingidas por um projeto de morte mineradora, que há quatro décadas vem cavando, como se diz aqui, cavando sonhos. Mas aqui é um lugar para sonharmos juntos. Neste ano jubilar, sonhar firmado numa esperança. Naquela esperança que não decepciona”, afirmou.
O arcebispo destacou que o Flexal vive o isolamento e o esquecimento impostos pela destruição dos bairros vizinhos, mas que a presença das centenas de pessoas foi um gesto de comunhão e resistência.
Ao final da celebração, o coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Carlos Lima, fez os agradecimentos e realizou a leitura da Carta da romaria, documento que sintetiza o espírito da caminhada e o clamor do povo atingido.
“Aqui fica nosso grito, nosso choro, nossa indignação! Queremos uma terra sem males: ecologia integral, nossa casa comum geme, como em dores de parto.”, diz o texto.


E termina como um chamado coletivo à responsabilidade e à reconstrução: “Queremos ser ouvidos, atendidos, recebidos, respeitados. Somos cidadãos, somos irmãos. Não viemos nos calar. Pedimos apoio aos poderes públicos. Nos comprometemos em ajudar, participar e construir soluções.”
Entre os rostos emocionados, a romaria também tocou profundamente quem veio de fora do território, como Ana Paula, da Cáritas Arquidiocesana de Maceió.
“A gente se emociona quando se coloca no lugar de tantas que perderam tanta coisa. Muitos que perderam não só sua casa, mas até pessoas da família. Escutei o depoimento de uma senhora que perdeu seu esposo e hoje ela está em tratamento de um câncer com muita dificuldade, por estar isolada aqui. O seu marido ficou deprimido com tudo isso, faleceu em depressão. Então, mesmo não estando nesse lugar, eu me coloco no lugar de todas essas pessoas que estão sofrendo tanto”.
A partilha que alimenta a esperança
A Cozinha Solidária do MST foi responsável por servir refeições para centenas de romeiros e romeiras. Primeiro, café da manhã com pé de moleque e beijú na chegada ao Flexal, além do chá e café preparados pelos moradores da localidade; depois da celebração, uma deliciosa vaca atolada foi partilhada em tigela de casco de coco e colher de madeira, com o mesmo cuidado e solidariedade que marcam as lutas do movimento. Mais do que refeição, foi um gesto simbólico de comunhão: alimentar o corpo e o espírito de quem segue em marcha.


Caminho de fé, resistência e compromisso
A Romaria da Terra e das Águas reafirmou o compromisso histórico da CPT e das comunidades de fé com as causas da justiça social, da ecologia integral e da dignidade humana. Foi uma caminhada que atravessou bairros destruídos, mas também reacendeu a chama da esperança, uma esperança teimosa, que insiste em brotar mesmo sobre a terra rachada.
A 36ª edição foi uma realização da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Arquidiocese de Maceió, Paróquia Menino Jesus de Praga, Paróquia Santo Antônio de Pádua, Igreja Batista do Pinheiro, CEBs, Cáritas Maceió e Associação Amici di Joaquim Gomes, com apoio da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) por meio do Fundo Nacional de Solidariedade (FNS) da Campanha da Fraternidade.
Confira a Carta da 36ª Romaria da Terra e das Águas na íntegra:
36ª Romaria da Terra e das Águas
Maceió, 05 de Outubro de 2025
“Deus viu que tudo era muito bom!”
Ecologia integral: esperança, resistência e profecia.
Somos Povo de Deus a caminho, em marcha, em solidariedade com todos os irmãos e irmãs atingidos pelo crime ambiental da Braskem. Aqui acontece o maior crime ambiental em solo urbano do País, bairros literalmente destruídos, gente fora de casa e vidas historicamente interrompidas! Aqui a ganância e a irresponsabilidade perduram! Aqui a terra, as águas e os irmãos choram, gritam, protestam, rezam, clamam aos céus por justiça, por vida, por segurança, por responsabilizações, por justa reparação.
Desde 2018 estamos sofrendo. Afundando em lágrimas: A mineradora Braskem destruiu vidas, sonhos, famílias, nossas casas, nossos trabalhos, nossa fraternidade, nossos direitos! Nem ir e vir podemos mais! Muito menos nossa integridade e habitabilidade domiciliar! É uma afronta aos direitos individuais dados pela Constituição Federal do nosso País!
Muitos irmãos e irmãs ainda estão por aqui: Flexais, marques de Abrantes, Bom Parto, Pinheiro, Saem e tantas outras áreas próximas. Isolamento social, insegurança estrutural e psicológica, temor de afundamento do solo, abandono do poder público, falta de informações e esclarecimentos verdadeiros.
Os flexais estão praticamente intransitáveis. Sem acesso: ruas e calçadas destruídas ou fechadas, muita maquiagem em toda essa situação, promessas vazias, “acordos” impositivos, silêncio dos meios de comunicação, leniência dos grandes e poderosos.
Aqui fica nosso grito, nosso choro, nossa indignação! Queremos uma terra sem males: ecologia integral, nossa casa comum geme, como em dores de parto. Como Igreja nos calamos em saída, no encontro do outro que sofre para ouvir, somar esforços, sonhar juntos, cobrar das autoridades, Prefeitura, Governo do Estado, Ministério Público, Ministério Federal e Estadual, Poder Judiciário, Defesa Civil, Igreja, Associações e de todos que se solidarizam com a dor dos irmãos e irmãs.
A Braskem destruiu! Resistimos: O senhor é nossa força. Em nossa fraqueza sua força se revela.
Queremos ser ouvidos, atendidos, recebidos, respeitados. Somos cidadãos. Somos irmãos. Não viemos nos calar. Pedimos apoio aos poderes públicos. Nos comprometemos em ajudar, participar, construir soluções, por exemplo: ruas pavimentadas, serviços médicos e educacionais, transporte público, segurança, limpeza, trabalho e etc.
Somos o povo de Deus, Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Bebedouro, partes do Farol olhem por nós, vinde e vede! Assim agradecemos a todos que estiveram, estão e estarão aqui, mesmo que ausentes. Que nosso grito ecoe aos quatro cantos do mundo e chegue aos ouvidos das autoridades.
Sim, esperança, resistência e profecia! Viva o povo de Deus! Viva toda luta! Toda Romaria! Toda esperança em dias melhores.
De fato Deus viu que tudo era muito bom…