Tambores silenciados, silenciosos, proféticos…

Tambor está velho de gritar
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
Corpo e alma só tambor
Só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

(José Craveirinha, poeta moçambicano)

Por Rubem Siqueira | CPT Bahia

Manifestação com tambores durante o Encontro da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, em 2019. Foto: Andressa Zumpano / Acervo CPT

A Festa de São Benedito, em Aparecida (SP), acontece há 115 anos. É a “maior manifestação folclórica religiosa do estado de São Paulo [pelo] seu caráter coletivo e profano, expresso por meio de cantos e danças, em contraste com a fé silenciosa, individual e recatada do culto à Padroeira do Brasil e das comemorações tradicionais da Igreja Católica”1. Remonta ao tempo da escravidão, nas primeiras décadas do século XVIII, permitida pelos senhores dos cafezais do Vale do Paraíba do Sul aos escravizados/as que os acompanhavam na celebração da Páscoa na cidade, muito próxima, de Guaratinguetá. Por isso, acontece na semana seguinte à Páscoa. O culto ao santo negro milagreiro, filho de escravizados, ajudaria a apaziguá-los… Em Aparecida, também visitada na mesma ocasião, a festa começou em 1909, com a criação de sua própria Irmandade de São Benedito, e superou a original.

Filho da terra, acompanhei, depois de muitos anos, a de 2024, no primeiro fim de semana de abril. As tradicionais manifestações da festa são as apresentações das dezenas, ou mais de centena de congadas, catopês e moçambiques, na praça da igreja, dia e noite. Também acompanham a procissão, a corte do rei e da rainha à frente do andor, a missa conga campal, a subida do mastro enterrado com os votos dos fiéis, a cavalgada, a distribuição dos doces que lembram o santo padroeiro dos cozinheiros, os bonecos João Paulino e Maria Angu que fazem a alegria da criançada e de seus pais também. Uma novidade mais recente: no sábado, as congadas, catopês e moçambiques, há dias na cidade, acolhidos por famílias e pela prefeitura municipal, no seu maior encontro no Brasil, visitam o Santuário Nacional de Nossa Senhora, tocando, dançando e cantando. Era notável a vibração emocionada dos brincantes de todas as cores, idades e identidades. Assistiam, separados da multidão, alguns padres e até um bispo.

Chegada a hora da missa transmitida pela TV Aparecida, o padre pedia insistentemente que parasse o cortejo batuqueiro, mas os brincantes não lhe dão ouvidos. Neste momento, ficam evidentes o limite e até a incompatibilidade das expressões religiosas que aí passam a ser conflituosas. 

Lembrei-me da “Noite dos Tambores Silenciosos”, na segunda-feira do carnaval do Recife (PE). No estreito Pátio do Terço, à frente da igreja de Nossa Senhora do Terço, no bairro central de São José, dezenas de nações de maracatus, maioria ligada a terreiros de Xangô – religião afro-pernambucana semelhante ao Candomblé baiano –, reúnem-se e passam a noite desfilando, dançando, cantando e rezando ao som dos tambores, em louvor a seus orixás e a sua protetora Nossa Sra. do Rosário, em memória de seus ancestrais, historicamente silenciados, desde o tempo da escravidão. O local, a certa distância das avenidas centrais da festa momesca dos senhores, teria sido usado para quarentena e comércio de escravizados recém-chegados de África e onde ossadas foram desenterradas2.

O que proclamam insistentemente os tambores em uma e outra situação? Tambores que reproduzem em uníssono as batidas dos corações, por uma só alma que, do chão da terra percutida, exalta o certo e o melhor da humanidade e os ecoa por toda vida planetária.  Gritam a igualdade, a justiça e o direito, num horizonte ainda distante, para as populações negra, indígena e branca empobrecida, irmãs de sina, na cidade, no campo, nas águas e nas florestas, e nas igrejas também. Para resistir, essa gente-tambor lança mão do que tem de mais profundo, sua religiosidade ancestral, corpórea, visceral, fundamental de sua trajetória, que não cede, mesmo quando parece ceder. Assim, enfrenta o sistema dominante que se faz sempre e de novo colonial, norte-centrado, a submeter gente e natureza ao individualismo possessivo e catastrófico, que não se dobra nem à iminência de uma hecatombe final. São a esperança.

Esta gente-tambor, em vão silenciada, alinha-se com a melhor tradição profética do cristianismo, da percepção do filho de Nossa Senhora – Aparecida, do Rosário ou do Terço – Jesus de Nazaré, Deus feito gente-tambor, cuja utopia do Reino não se rende aos subterfúgios e às seduções do Templo, do Mercado e do Quartel. Tambor: profecia da unidade cantada e dançada, na alegria do Reinado de Jesus, como em João 17,21: “Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste”.

Texto publicado originalmente na edição nº 265 do Jornal Pastoral da Terra

  1. CARVALHO, Herbert. Cem anos de fé e resistência cultural. SESC/SP – Serviço Social do Comércio / São Paulo, 03/09/2008. Disponível em: https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/compartilhar/5155_CEM+ANOS+DE+FE+E+RESISTENCIA+CULTURAL. Acesso em 25 ago 24. ↩︎
  2.  SECRETARIA DE CULTURA. Noite dos Tambores Silenciosos reúne ancestralidade e resistência no Pátio do Terço. Recife, Prefeitura Municipal, 2024. Disponível em:  https://www2.recife.pe.gov.br/noticias/11/02/2024/noite-dos-tambores-silenciosos-reune-ancestralidade-e-resistencia-no-patio-do. Acesso em 14 out 24. ↩︎

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