Gênero e Biodiversidade: Mulheres, corpos-territórios e dores que transmutam em resistência

“Neste ano, a Campanha da Fraternidade é sobre Ecologia Integral e não tem como falar disso sem observar os problemas que estão ao nosso redor, como o veneno do agrotóxico. Precisamos cuidar da nossa Terra e da biodiversidade” 

Raimunda Ferreira – PA Flores, Uruçuí-PI.

Por Teresinha Menezes | CPT PI e Júlia Barbosa | CPT Nacional

As relações de gênero têm sido construídas, historicamente, com a imposição de lugar do homem e da mulher na sociedade. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, a célebre frase de Simone de Beauvoir, em seu livro “O segundo sexo”, questiona a condição dos sexos nessa construção social dos papeis de gênero, que coloca os homens como sujeitos de direitos, tomadores de decisões, provedores da família e com poderes sobre os corpos, vontades e, até mesmo, os sentimentos e desejos das mulheres, classificando-as como inferiores e descredibilizando suas potencialidades. 

Essa construção social de gênero determina também as micro-sociedades, como as relações familiares, enquanto comportamentos, tarefas, responsabilidades e espaços. “[…] A mulher não tem voz e os filhos também não. Minha mãe, batalhadora, criou as filhas socando o arroz, com muitas dificuldades. Superamos e tivemos várias formações, estes momentos são libertadores”, afirma Valdenice Lopes, agricultora familiar assentada no P.A Oziel Alves Pereira, durante a oficina Raízes da Resistência, realizada em 02 e 03 de abril, em Baliza-GO. Em casa, os homens têm o lugar determinado – da sala para fora da casa – e as mulheres – da cozinha para o quintal -, sempre colocadas para servir. 

Oficina Raízes da Resistência: Gênero, Segurança e Biodiversidade, em Baliza-GO.
Fotos: Simone Oliveira e Leila Lemes – CPT GO

“[…] O serviço da casa não é divido, em casa sou só eu, o marido trabalha fora, mas quando ele chega não me ajuda, é cansativo… nós precisamos de descanso…” –  Gelma Pessoa, moradora da comunidade tradicional Barra da Lagoa, município de Santa Filomena-PI. 

A fala de Gelma, feita durante uma das oficinas realizadas pelo projeto “Gênero e Biodiversidade”, no município de Santa Filomena, no estado do Piauí, espelha a realidade de tantas outras mulheres do Cerrado, que vivem desgastadas pelo acúmulo de trabalho doméstico, dos filhos e da roça, em que elas também contribuem, mas não são reconhecidas nem valorizadas por isso. Maria de Jesus, assentada no P.A. Flores, município de Uruçuí-PI, durante uma discussão promovida pelo projeto, também questiona essa situação – “nós dois vamos trabalhar na roça, aí quando chegamos em casa de tarde, ele vai se sentar na televisão e eu vou cuidar do jantar, isso não tá certo. Por que ele não vai fazer o jantar comigo? Eu também trabalhei na roça!”, contesta. 

Estes são questionamentos que as mulheres fazem cotidianamente, mas sem nenhuma resposta. Além de enfrentarem as desigualdades de gênero em suas famílias, as mulheres do Cerrado sofrem diversas outras violências e violações sobre seus corpos-territórios, causadas pelos projetos de desenvolvimento do capital no campo.

Oficina Quintais produtivos e Sustentabilidade agroflorestal, no Assentamento Flores-Uruçuí e na Comunidade Tradicional Barra da Lagoa-Santa Filomena, no Piauí. Fotos: Teresinha Menezes e Gregório Borges – CPT PI

Corpos-territórios ameaçados pela violência no campo

O agronegócio, a pecuária, a mineração e até mesmo a inércia e morosidade do Estado, entre outros agentes, intimidam, ameaçam a vida, expulsam as famílias e degradam os territórios, contribuindo para a perda da biodiversidade, o aterramento de nascentes e a contaminação do solo, das águas, rios e brejos pelo uso dos agrotóxicos, ampliando os riscos de doenças, sobretudo nas crianças e idosos, que são mais vulneráveis. Todo este contexto violento gera medo, insegurança e adoecimento nas mulheres, que se colocam em linha de frente no enfrentamento. 

“A maioria do tempo só tem mulher na comunidade, porque os homens trabalham fora, na roça ou nas fazendas, e às vezes chegam homens armados aqui no território intimidando as mulheres, e daí a gente fica com medo de perder nossos filhos, nossos pais, maridos, por dias ficamos sem dormir e adoecemos, isso é uma violência!”, denuncia Gelma.

Violências como as que Gelma e Maria descrevem, infelizmente, têm se intensificado e se tornado frequentes nas comunidades do Cerrado. As violações de direitos perpetradas pelos capitalistas do campo impactam profundamente as mulheres em suas comunidades. De acordo com o relatório Conflitos no Campo Brasil 2024, lançado pela CPT na última quarta-feira (23/04), as principais violências sofridas pelas mulheres do Cerrado no último ano, no contexto dos conflitos no campo no bioma, são Ameaça de morte (13 ocorrências), Ferimento (13), Intimidação (8), Criminalização (7) e Tentativa de assassinato (7). Esses dados expõem a realidade devastadora vivida pelas mulheres camponesas do Cerrado, que resistem em seus territórios, com seus modos de vida, com a resiliência, a sabedoria e a força de serem mulheres. 

Violências cometidas contra as mulheres do Cerrado nos conflitos no campo em 2024.
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino – CPT.

Semear a resistência no Cerrado

Cuidar da terra e das águas, plantar alimentos saudáveis, guardar para si e repassar a seus filhos e filhas a importância da espiritualidade e das tradições, são formas de resistência que fortalecem a permanência na terra e protegem seus modos de vida tradicionais. São elas as guardiãs da biodiversidade, das sementes, das tecnologias ancestrais. São as mulheres que constroem o bem viver, que mantém a saúde de suas famílias, a saúde dos territórios e do planeta, contribuindo com a justiça climática e na manutenção da vida.

As mulheres camponesas plantam para garantir uma alimentação de qualidade e alimentar sua família, os animais, para ter medicamentos com ervas… Também, para vender o excedente e manter suas necessidades de consumo e comercialização. O ato de plantar o que se come ainda garante a segurança e soberania alimentar e nutricional dessas famílias.

“Nós estamos trabalhando durante a quaresma pela Campanha da Fraternidade. Neste ano, a Campanha da Fraternidade é sobre Ecologia Integral e não tem como falar disso sem observar os problemas que estão ao nosso redor, como o veneno do agrotóxico. Precisamos cuidar da nossa Terra e da biodiversidade”, anuncia Raimunda Ferreira – P.A. Flores, Uruçuí- PI.

Reconhecer as violências sofridas e construir estratégias de enfrentamento é uma forma de romper com as cercas das desigualdades de gênero e é fundamental para fortalecer as resistências das mulheres do Cerrado em seus territórios. Durante o XII Encontro das Mulheres Camponesas do Tocantins, entre 7 a 9 de março, as mulheres também reafirmaram suas resistências e modos de vida.

“Nós, mulheres camponesas, seguimos rompendo cercas e silêncios, lutando pelo direito de produzir, decidir e viver com dignidade em nossos territórios. O encontro é um espaço onde reafirmamos a força da nossa organização e a necessidade de seguir unidas na construção de um campo sem violência e sem exploração”, destaca Celiane, vulgo Preta, liderança camponesa do P.A Antônio Moreira da Articulação Camponesa do Tocantins.

 Oficina Gênero e Protocolo de Segurança durante o XII Encontro das Mulheres Camponesas do Tocantins. Fotos: Ludimila Carvalho CPT A-TO.

Ações formativas

Durante o mês de abril, o projeto Gênero e Biodiversidade: Falas das Mulheres do Cerrado promoveu diversas atividades de formação e fortalecimento das mulheres do Cerrado, nos estados de Goiás, Piauí e Tocantins. Oficinas e encontros trabalharam temáticas como gênero, sociobiodiversidade, segurança, quintais produtivos e sustentabilidade agroflorestal, estimulando trocas de experiências e reflexões, valorizando as contribuições e os saberes das mulheres do Cerrado. 

“Esse projeto está sendo ótimo para as companheiras, para todas as mulheres, e vai ajudar muito nos nossos processos de desenvolvimento, contribuindo com a renda e com mais entendimento sobre si e sobre a valorização das mulheres”, afirma Neide Aparecida, agricultora familiar assentada no P.A Oziel Alves Pereira, em Baliza-GO, durante oficina do projeto.

| O projeto Gênero e Biodiversidade: Falas das Mulheres do Cerrado é realizado pela Comissão Pastoral da Terra, por meio da Articulação das CPTs do Cerrado, com o apoio do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos – CEPF Cerrado e o Instituto Internacional de Educação do Brasil – IEB, e tem contribuído com a melhoria da qualidade de vida e autonomia dessas mulheres. Por meio de ações de formação, o projeto articula junto às mulheres elementos importantes das relações de gênero e direitos, qualifica seus conhecimentos e amplia suas potências e oportunidades.

| O Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos – CEPF é uma iniciativa conjunta da Agência Francesa de Desenvolvimento, da Conservação Internacional, da União Europeia, da Fundação Hans Wilsdorf, do Fundo Global para o Meio Ambiente, do Governo do Canadá, do Governo do Japão e do Banco Mundial. Uma meta fundamental é garantir que a sociedade civil esteja envolvida com a conservação da biodiversidade. 

| O Instituto Internacional de Educação do Brasil – IEB atua como a Equipe de Implementação Regional do CEPF. A missão do IEB é fortalecer os atores sociais e o seu protagonismo na construção de uma sociedade justa e sustentável, por meio de formação de pessoas, fortalecimento e articulação de instituições e grupos comunitários, além da geração e disseminação de conhecimentos.

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